sexta-feira, 31 de outubro de 2008

Amar é uma decisão



 Daniel Gerhartz

Certa vez um jovem foi visitar um sábio e falou-lhe sobre as dúvidas que tinha a respeito de seus sentimentos por uma bela moça. O sábio escutou-o, olhou-o nos olhos e disse-lhe apenas uma coisa:
- Ame-a.
Disse o rapaz:
- Mas, ainda tenho dúvidas...
- Ame-a -, disse-lhe novamente o sábio.
E, diante do desconcerto do jovem, depois de um breve silêncio, finalizou:
- Meu filho, amar é uma decisão, não um sentimento. Amar é dedicação e entrega. É um verbo, e o fruto dessa ação é o amor. O amor é como um exercício de jardinagem. Por isso, arranque o que faz mal, prepare o terreno, semeie, seja paciente, regue e cuide. E esteja sempre preparado, porque haverá pragas, secas e excesso de chuvas, mas nem por isso abandone o seu jardim. Ame, ou seja: aceite, valorize, respeite, dê afeto, ternura, admire e compreenda. Ou, simplesmente, ame.

Quando tudo for pedra, atire a primeira flor.
Quando tudo parecer caminhar errado, seja você o primeiro passo certo.
Se tudo parece escuro, se nada puder ser visto, acenda você a primeira luz, traga para a treva, você primeiro, a pequena lâmpada.
Quando todos estiverem chorando, tente você o primeiro sorriso; talvez não na forma de lábios sorridentes, mas na de um coração que compreenda, de braços que confortem. Se a vida inteira for um imenso não, não pare você na busca do primeiro sim, ao qual tudo de positivo deverá serguir-se.

Quando ninguém souber coisa alguma, e você souber um pouquinho, seja o primeiro a ensinar, começando por aprender você mesmo, corrigindo-se a si mesmo. Quando alguém estiver angustiado à procura, consulte bem o que se passa, talvez seja em busca de você mesmo que este seu irmão esteja. Daí, portanto, o seu deve ser o primeiro a aparecer, o primeiro a mostrar-se, primeiro que pode ser o único e, mais sério ainda, talvez o último.

Quando a terra estiver seca, que sua mão seja a primeira a regá-la. Quando a flor se sufocar na urze e no espinho, que sua mão seja a primeira a separar o joio, e arrancar a praga, a afagar a pétala, a acariciar a flor. Se a porta estiver fechada, de você venha a primeira chave. Se o vento sopra frio, que o calor de sua lareira seja a primeira proteção e mão primeiro para levantar quem caiu. Sua atenção primeiro para aquele que foi esquecido e primeiro abrigo. Se o pão for apenas massa e não estiver cozido, seja você o primeiro forno para transformá-lo em alimento.
Não atire a primeira pedra em quem erra. De acusadores o mundo está cheio! Nem, por outro lado, aplauda o erro. Dentro em pouco, a ovação será ensurdecedora. Ofereça sua mão primeiro para levantar quem caiu. Sua atenção primeiro para aquele que foi esquecido.

Seja você o primeiro para aquele que não tem ninguém.
Quando for espinho, atire a primeira flor.
Seja o primeiro a mostrar que há caminho de volta, compreendendo que o perdão regenera, que a compreensão edifica, que o auxílio possibilita e que o entendimento reconstrói.
Atire você, quando tudo for pedra, a primeira e decisiva flor.



(Extraído por cópia livre da revista Terceiro Milênio, sem indicação de autor - A Flor da Vida Editora - Ano 5 – número 59 – novembro de 2006 – Brasília-DF).

quinta-feira, 30 de outubro de 2008

Adeus

Obra: Burial of Saint Cecilia in the catacombs of Rome (1852) [Detail] Federico de Madrazo y Kuntz (1815 - 1894) 
Adeus! e para sempre embora,
Que seja para nunca mais:
Sei teu rancor - mas contra ti
Não me rebelarei jamais.

Visses nu meu peito, onde a fronte
Tu descansavas mansamente
E te tomava um calmo sono
Que perderás completamente:

Que cada fundo pensamento
No coração pudesses ver!
Que estava mal deixá-lo assim
Por fim virias a saber.

Louve-te o mundo por teu ato,
Sorria ele ante a ação feia:
Esse louvor deve ofender-te,
Pois funda-se na dor alheia.

Desfigurassem-me defeitos:
Mão não havia menos dura
Que a de quem antes me abraçava
Que me ferisse assim sem cura?

Não te iludas contudo: o amor
Pode afundar-se devagar;
Porém não pode corações
Um golpe súbito apartar.

O teu retém a sua vida,
E o meu, também, bata sangrando;
E a eterna idéia que me aflige
É que nos vermos não tem quando.

Digo palavras de tristeza
Maior que os mortos lastimar;
Hão de as manhãs, pois viveremos,
De um leito viúvo despertar.

E ao achares consolo, quando
A nossa filha balbuciar,
Ensiná-la-ás a dizer “Pai”,
Se o meu desvelo vai faltar?

Quando as mãozinhas te apertarem
E ela teu lábio -houver beijado,
Pensa em mim, que te bendirei
Teu amor ter-me-ia abençoado.

Se parecerem os seus traços
Com os de quem podes não mais ver,
Teu coração pulsará suave,
E fiel a mim há de tremer.

Talvez conheças minhas faltas,
Minha loucura ninguém sabe;
Minha esperança, aonde tu vás,
Murcha, mas vai, que ela em ti cabe.

Abalou-se o que sinto; o orgulho,
Que o mundo não pôde curvar,
Curvou-se a ti: se a abandonaste,
Minha alma vejo-a a me deixar.

Tudo acabou - é vão falar -,
Mais vão ainda o que eu disser;
Mas forçam rumo os pensamentos
Que não podemos empecer.

Adeus! assim de ti afastado,
Cada laço estreito a perder,
O coração só e murcho e seco,
Mais que isto mal posso morrer.

Lord Byron

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

Impactos ambientais da produção de carne


Pecuária e desmatamento; pesca industrial e colapso de espécies oceânicas; aqüicultura e destruição de manguezais; suinocultura e poluição de lençóis freáticos; criação de animais para consumo humano e aquecimento global. Essas e outras relações perigosas estão presentes no caderno “Impactos ambientais do uso de animais para alimentação”, produzido pela Sociedade Vegetariana Brasileira (SVB). Com o respaldo de fontes como FAO, ONU, WWF e IBGE, o caderno revela em que medida a produção industrial de carnes compromete a sustentabilidade em nosso planeta.

domingo, 26 de outubro de 2008

Antoine Joseph Wiertz


Olhe seu corpo em um espelho: compreenderá que é mortal; passe seus dedos sobre as costelas, como sobre um bandolim, e verá o quanto está perto do túmulo. É porque estamos vestidos que nos julgamos imortais: como se pode morrer quando se usa gravata? O cadáver que se endominga já não se reconhece e, imaginando a eternidade, apropriando-se da ilusão. A carne cobre o esqueleto, a roupa cobre a carne: subterfúgios da natureza e do homem, trapaças instintivas e convencionais: um senhor não pode estar cheio de lama nem de poeira… Dignidade, honorabilidade, decência - tantas fugas ante o irremediável. E quando você coloca chapéu, quem diria que residiu em entranhas ou que os vermes se banquetearão com sua gordura?


Emil Cioran. in Breviário da Decomposição

segunda-feira, 20 de outubro de 2008

Qualquer coisa

(26/2/1973)

Conto inédito de Caio Fernando  Abreu
O conto não foi publicado em livro.

Amor de...Para o Lico, sem dor

Fica parado à porta e eu nem vejo, estou de costas fazendo coisas como escrever, limpar cinzeiros ou olhar o céu pela janela. Fica parado à porta uma porção de tempo, e eu nem vejo, mas dura pouco. Em seguida algum toque quente como um olhar fixo começa a me queimar a nuca, então abandono o que eu estou fazendo, seja o que for, e não sei bem se me volto lenta ou rapidamente, para surpreendê-lo no momento exato de baixar os olhos e afastar a mão apoiada na parede, como se recém chegasse e não estivesse parado ali uma porção de tempo, olhando. Sei que está azul, ou verde, ou branco, talvez os três juntos, talvez outros ainda, talvez nenhum: mas me volto rápida ou lentamente, e nesse movimento qualquer coisa que tenho entre as mãos cai ao chão, e antes de dizermos qualquer coisa há a necessidade quase milenar de curvar-se para apanhar o objeto caído, um livro, um cigarro, provavelmente um estrela. E só depois ou durante o tempo em que vêm subindo no ar as mãos douradas segurando essa coisa qualquer é que nos olhamos e começa a entrar no mar sem medo antigo, e pela primeira vez a água não parece fria nem escura, nem arde nos olhos quando mergulho. Mergulho fundo para voltar em seguida à tona, mas não consigo, qualquer coisa como algas ou raízes ou peixes ou mesmo estrelas me prendem a esse fundo de fogo claro. E me debato sem vontade, sabendo que além da superfície há um dia esmaecido, que ainda é outono e um pajem caminha num parque qualquer, todas as tardes com um livro ou uma folha nas mãos douradas e sozinhas. Mas é azul à minha volta, e embora me doa esse azul entrando pelos sentidos, é ali que quero ficar agora, naquele fundo claro de fogo, com algas de madrepérola aprisionando meus tornozelos, alguns tesouros além, navios piratas, ouros, terras, sereias. Faço um movimento brusco e venho à tona como se voltasse a mim, e vou saindo lentamente do azul, sento na areia áspera e fico olhando a superfície que volta a ser polida e fria como vidro. Antigo medo, que me encara com olhos que guardam algas de madrepérola no claro fogo do fundo, e que recusa me matar de azul, porque talvez eu não suportasse, e não posso morrer porque é preciso, ainda, sacudir a areia da roupa branca e estender a mão para o livro, cigarro ou estrela que sobe em outras mãos douradas. E sorrir, então, e dizer bom-dia, boa-tarde, talvez boa-noite, e convidar a sentar, como se costuma nessas situações, e explicar sempre que não há muito onde sentar, e espalhar cinzeiros, fechar a porta, escolher rapidamente um disco lento e abandonar a coisa que estivesse fazendo para sentar no canto oposto da cama, talvez cruzar as pernas, acender um cigarro, abrir um livro, olhar uma estrela e falar ouvir durante horas coisas duras e inúteis, e de repente me perceber novamente deslizando para um mar aberto feito boca, convite na esquina, veludo atrás de vidraça, e não ceder porque não seria de esperar que eu cedesse agora, nessas situações, embora me consuma, e penso. Então sorrir e afastar com delicadeza as inúteis durezas até que nos aproximemos das tardes no parque, e era sempre outono. E de repente como girar numa roda louca que jogo de novo eu mesmo neste mesmo parque, com este mesmo livro ou esta mesma folha onde vou desenhando devagar uma estrela enquanto o cigarro queima em fogo claro, e depois ler ou ficar à toa olhando os verdes fumando à espera que um pajem passe de mãos sozinhas que faça encher de encantos as algas de madrepérola me seguram pelos pulsos e eu não resisto e já não importam os parques os pajens as folhas os livros os cigarros as estrelas as guitarras a loucura dos líquidos derramados sobre o tapete que tudo absorve há dezesseis anos: apenas essas algas nos meus pulsos e os tesouros as sereias os reis com suas capas de arminho os atlantes os castelos e parques sem adolescentes sem folhas nem livros em árvores sem esperas e bancos despidos de inscrições parques verdes de paz e uma coisa grita pouco abaixo do meu centro escuro mas eu a trato como o lenhador à serpente entanguida eu a levo para casa preparo fogo e alimento e abro as janelas e portas para voltar correndo às algas de madrepérola que agora se afrouxam e me soltam lentamente para me abandonar outra vez na mesma praia de areia seca olhando esse mar frio que se recusa a me matar de azul e me dói exatamente como se eu fosse um menino pobre a quem se mostrassem um doce da janela de um carro em alta velocidade. Vou escrevendo poemas como Anchieta pelo corrimão branco da escada e abro uma porta escura para a rua cheia de cotovelos, dentes rangendo, hesitações, temores, diplomas e [ilegível]. Depois volto devagar por um caminho que já não consigo decifrar, e me perco em labirintos pela sala vazia, ligodesligo ingridbogarthumphreybergmannobjeto qualquer caído há pouco, um livro, um cigarro, provavelmente um estrela.


Caio Fernando  Abreu

(texto não revisado)

Tarde no Mar



A tarde é de oiro rútilo: esbraseia 
O horizonte: um cacto purpurino. 
E a vaga esbelta que palpita e ondeia, 
Com uma frágil graça de menino, 

Poisa o manto de arminho na areia 
E lá vai, e lá segue ao seu destino! 
E o sol, nas casas brancas que incendeia. 
Desenha mãos sangrentas de assassino! 

Que linda tarde aberta sobre o mar! 
Vai deitando do céu molhos de rosas 
Que Apolo se entretém a desfolhar... 

E, sobre mim, em gestos palpitantes, 
As tuas mãos morenas, milagrosas, 
São as asas do sol, agonizantes... 

Florbela Espanca

terça-feira, 14 de outubro de 2008

Amor

Portrait, Oil on Canvas, by An He


O ser busca outro ser, e ao conhecê-lo
Acha a razão de ser, já dividido.
São dois em um: amor, sublime selo
Que à vida imprime cor, graça e sentido

"Amor” - eu disse - e floriu uma rosa
embalsamando a tarde melodiosa
no canto mais oculto do jardim
mas seu perfume não chegou a mim.


Carlos Drummond de Andrade

A uma prostituta respeitosa


Tranquilize-se, fique à vontade comigo

- eu sou Walt Whitman,

Liberal e saudável como a Natureza!
Antes que o sol a rejeite,
Antes que as águas se neguem
A rebrilhar por você
Ou as folhagens a sussurar por você,
Minhas palavras não se negarão
A rebrilhar e a sussurar por você.
Garota minha, eu marco com você
Um encontro bem marcado,
E encarrego você de fazer todos os preparativos
Para estar bem em forma
Ao encontrar-se comigo;
E encarrego você de ser paciente e perfeita
Até a hora, eu saúdo você
Com um olhar cheio de significados
Para você não se esquecer de mim.


Walt Whitman

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

A religiosa

- Então, isto é assim tão comum nas casas religiosas? Pobre da minha superiora! Em que estado caiu!
- É terrível, e temo que piore. Não foi feita para esta vida e, mais cedo ou mais tarde, o resultado é este. Quando nos opomos à tendência geral da natureza, essa imposição desvia-nos para afetos desordenados, que são tão mais violentos quanto mais mal fundados; é uma espécie de loucura.
- Ela está louca?
- Sim, está e ficará ainda mais.
- E acha que essa é a sorte que espera todos aqueles que abraçam uma vida para a qual não foram chamados?
- Não, não todos. Há os que morrem antes; há os que têm um caráter flexível, e que acabam por aceitar; e há os que têm esperanças vagas que os sustêm por uns tempos.
- E que esperança pode haver para uma religiosa?
- Esperança? A primeira é conseguir revogar os votos.
- E quando essa já não existe?
- Então, esperam encontrar, um dia, as portas abertas, esperam que os homens se arrependam da extravagância de encerrarem pessoas vivas e jovens em sepulcros e que os conventos sejam abolidos, esperam que o fogo queime a casa, que as paredes da clausura caiam, que alguém as socorra. Todas estas suposições fervilham na cabeça e sem sequer nos darmos conta, ao passear pelo jardim, verificamos se as paredes são muito altas; na cela, agarra-se nas barras da grade e sacodem-se distraída e suavemente; se as janelas dão para a rua, olha-se sem cessar; se se ouve alguém passar, o coração palpita e suspira-se em silêncio por um libertador; se há algum tumulto cujo rumor penetre na casa, surge a esperança; pensa-se numa doença, que nos aproximará de um homem ou que nos faça ir tomar águas.
- É verdade, é verdade - gritei eu -, lê no fundo do meu coração; eu tive e ainda tenho essas ilusões.
- E quando as perdemos, através da reflexão, pois estas saudáveis emanações que o coração envia para a razão dissipam-se de vez em quando, então vê-se toda a profundidade da nossa própria miséria; detestamo-nos a nós mesmos e aos outros; chora-se, geme-se, grita-se e sente-se a aproximação do desespero. Nessa altura, umas vão a correr atirar-se aos pés da superiora, à
procura de consolo; outras prostram-se na cela ou aos pés do altar e pedem ajuda ao céu; outras rasgam as roupas e arrancam os cabelos; outras procuram um poço profundo, janelas altas, uma corda, e às vezes encontram-nos; outras, depois de se terem atormentado durante muito tempo, caem numa espécie de embrutecimento e perdem o juízo; outras, cuja saúde é débil e delicada, consomem-se em languidez; a algumas o equilíbrio transtorna-se, a imaginação perturba-se, e ficam furiosas. As mais felizes são aquelas a quem as ilusões consoladoras renascem e se deixam embalar por elas quase até à hora da morte; a vida dessas passa-se, alternadamente, entre o erro e o desespero.
- E as mais desgraçadas - acrescentei eu com um profundo suspiro -, as que passam sucessivamente por todas essas fases... Ah padre! Como lamento tê-lo ouvido!
- E por quê?
- Eu não me conhecia, mas agora conheço-me, e as minhas ilusões durarão muito menos.


A religiosa, Denis Diderot

sábado, 11 de outubro de 2008

Warning



When I am an old woman,
I shall wear purple
With a red hat which doesn’t go,
and doesn’t suit me.
And I shall spend my pension
on brandy and summer gloves and satin sandles,
And say we’ve no money for butter.
I shall sit down on the pavement when I’m tired
and gobble up samples in shops
and press alarm bells
and run with my stick along public railings,
and make up for the sobriety of my youth.
I shall go out in my slippers in the rain
and pick flowers in other people’s gardens
and learn to spit!
You can wear terrible shirts and grow more fat
and eat three pounds of sausages at ago,
or only bread and pickles for a week,
and hoard pens and pencils
and beermats and things in boxes.
But now we must have clothes that keep us dry,
and pay our rent
and not swear in the street,
and set a good example for the children.
We must have friends to dinner
and read the papers.
But maybe I ought to practice a little now?
So people who know me
are not too shocked and surprised
when suddenly I am old,
And start to wear purple!

..........

AVISO

Quando ficar velha, quero vestir roxo com chapéu vermelho, que não combina e fica ridículo em mim.

Vou gastar minha pensão em uísque, luvas de verão e sandálias de cetim e dizer que não tenho dinheiro para a manteiga.

Vou sentar-me no meio-fio quando estiver cansada, comer todas as ofertas do supermercado, tocar as campainhas dos vizinhos, arrastar meu guarda-chuva nas grades da praça, e só assim me sentirei vingada por ter sido tão séria durante a minha juventude.

Vou andar de pantufas na chuva, arrancar flores do jardim dos outros, e cuspir no chão.

Vou usar roupas horríveis, engordar sem culpa, comer um quilo de salsicha no almoço, ou passar uma semana só na base de pão e picles.

Vou juntar caixinhas, lápis e rótulos de cerveja.

Mas enquanto ainda sou jovem, preciso de um tipo de roupa que me proteja da chuva, tenho que pagar o aluguel, não posso dizer palavrão na rua, devo dar bom exemplo às crianças, preciso ler jornal, estar informada, convidar meus amigos para jantar.

Por isso, quem sabe...
Eu não deva começar a treinar desde agora?
Assim ninguém vai ficar chocado quando de repente, eu ficar velha e começar a usar roxo


Jenny Joseph

quinta-feira, 9 de outubro de 2008


Se você quer ser minha namorada
Ah, que linda namorada
Você poderia ser
Se quiser ser somente minha
Exatamente essa coisinha
Essa coisa toda minha
Que ninguém mais pode ser

Você tem que me fazer um juramento
De só ter um pensamento
Ser só minha até morrer
E também de não perder esse jeitinho
De falar devagarinho
Essas histórias de você
E de repente me fazer muito carinho
E chorar bem de mansinho
Sem niguém saber por quê

Porém, se mais do que minha namorada
Você quer ser minha amada
Minha amada, mas amada pra valer
Aquela amada pelo amor predestinada
Sem a qual a vida é nada
Sem a qual se quer morrer

Você tem que vir comigo em meu caminho
E talvez o meu caminho seja triste para você
O seus olhos tem que ser só dos meus olhos
Os seu braços o meu ninho
No silêncio de depois
e você tem que ser a estrela derradeira
Minha amiga e companheira
No infinito de nos dois


Vinícius de Moraes

quarta-feira, 8 de outubro de 2008

Mulheres de aço e de flores - Pe. Fábio de Melo



"De aço e de flores. O aprimorado da vida ainda insiste em nascer dos contrários. As mulheres sabem mais sobre isso. Elas experimentam na carne o destino de serem como Deus, em pequenas partes. Geram o mundo; embalam os destinos e entrelaçam num mesmo tecido as cores da fragilidade e da força. Elas são de aço. Elas são de flores."

"Recordo-me. A jabuticabeira florida era epifania de uma felicidade de época. Alegrias com cores de novembro. Chuvas torrenciais que nos permitiam prazeres delicados. Observar a metamorfose das flores em frutos era satisfação sem preço. A natureza costurada de regras consumava diante de nossos olhos o ditado bíblico, de que debaixo do céu há um tempo para cada coisa. Era o tempo alinhavando os destinos das floradas, enquanto no silêncio do coração uma primavera fora de hora insistia em lançar pequenos brotos."

São histórias sensíveis e fortes de mulheres comuns... É uma leitura introspectiva que expõe virtudes  e também limites, porque baseia-se no sentimento, nas nossas contradições, dúvidas, falta de coragem, ousadia, fé, etc. qualquer mulher se identificará com algumas das personagens expostas no livro..

Em "Mulheres de Aço e Flores", Pe. Fábio de Melo, buscou na realidade, a inspiração para suas histórias, conseguindo explorar de forma singular, vários aspectos do comportamento feminino em situações do dia-a-dia. Mulheres que vivem realidades muito diferentes, desde a costureira que quer realizar todos os seus sonhos, a partir dos tecidos que trabalha; da louca que não quer compromissos e até uma mulher que faz relação da culinária com a vida.

Pe. Fábio de Melo




"O discurso religioso é um dos mais perigosos. Pode fazer muito mal, se mal compreendido. Dogmas são verdades estabelecidas, mas não totalmente compreendidas, e a palavra tem que estar comprometida com a reta versão"


"Não tenho medo de ser polêmico. Só tenho medo de não ser autêntico. Não me sinto menos padre por me vestir como um jovem nos dias de hoje. Sou padre, esta é minha condição. De calça jeans e camiseta, sou padre, com as vestes do altar, sou padre, de boné e bermuda, sou padre. Foi Jesus mesmo quem nos ensinou que as aparências não são o retrato de nossa verdade."

Da Congregação Dehoniana, mais conhecida como Sagrado Coração de Jesus, Fábio de Melo veio de uma família de regentes e compositores e logo colocou seu talento a serviço da religião. É um padre sem paróquia. Seu trabalho é de comunicação, principalmente junto aos universitários. Consiste em tirar o discurso das sacristias, utilizando-se da arte e da cultura como uma porta para trazê-lo junto da humanidade, ultrapassando a fronteira do catolicismo e de forma a acrescentar algo à vida das pessoas. Segundo ele, o cotidiano é o lugar da realização de Deus.

INSPIRAÇÕES

"Eu sou um contador de histórias ...
gosto de me aventurar no universo das palavras
gosto de vê-las clamando por minhas mãos,
desejosas de saírem da condição de silêncio.
Escrever é uma forma de desvendar o mundo"

"Tem dias que eu não quero dizer nada!
quero apenas o direito de ficar
calado sem ter de explicar
o porquê de estar assim"

"Se pela força da DISTÃNCIA
tu te ausentas ...
pelo poder que há na SAUDADE
voltarás."

"Eu sei que o sofrimento tem visitado o teu coração,
não tenho muito o que dizer e é bom que seja assim.
Existem acontecimentos que não combinam com as palavras.
Foram feitas para o silêncio.
É neste momento que nós recorremos aos símbolos,
às realidades que falam sem precisar dizer.
Trouxe flores ..."

"Amar ...
O coração muda de cor
conjugação muda de tempo
e o que é de fora fica de dentro

Amado ...
O coração mudou de lado
navegação mudou de mar
e o que era ímpar virou par.

Amante ...
o coração cruzou a ponte
tornou-se vértice o horizonte
e o antes distante ficou logo ali."

"Nós sempre precisamos de amigos; gente que seja capaz de nos indicar direções, despertar o que temos de melhor e ajudar a retirar os excessos que nos tornam pesados. É bom ter amigos. Eles são pontes que nos fazem chegar aos lugares mais distantes de nós"

"Às vezes a gente só precisa abrir os olhos pra perceber que nós temos pessoas muito preciosas do nosso lado que a gente até então não sabia. Demora o jeito de olhar para as pessoas, que você vai descobrir seus amigos de verdade."

"Não há amor fora da experiência do cuidado.
A vida requer cuidado, os amores também"

"Ninguém ama sem morrer um pouco,
mas ninguém é amado sem ressuscitar também.
Por isso precisamos dos dois movimentos do amor.
Na morte, o empenho que nos prepara como humanos,
Na ressureição, delícia de já poder sentir na carne
o surpreendente sabor daquilo que já é eterno"

"Ainda que a colheita de hoje não seja muito feliz
ainda que haja muito o que fazer
ainda que haja muito o que plantar nessa vida,
ao invés de ficar parado no que você fez de errado,
olhe para a frente, e veja o que ainda pode ser feito ...
a vida não terminou ..."

terça-feira, 7 de outubro de 2008

Para um roxo dia de sol de fevereiro

"Que a mim pois seja dado saborear o momento, antes que ele se propague pelo restante do mundo!" Virginia Woolf



Este vazio de amor todos os dias: a cabeça pesada ao meio-dia, a boca amarga, um cheiro de sono e solidão nos cabelos, uma xícara de café bem forte espantando os arcanos da madrugada, e muitos cigarros, as roupas, o espelho, os colares, as pulseiras. Procuro e não acho. Mas saio para a rua todo de roxo, a barriga de fora.
O sol bate forte na cabeça. O sol bate forte e reflete na calçada e dissolve o corpo em gotas pegajosas escorrendo nojentas e brilhantes pelos braços e pelas pernas por baixo do roxo até cair sobre o asfalto formando pequenas poças que logo se evaporam subindo pelos raios do sol cor de cenoura de fevereiro para novamente descer do alto despertando o suor roxo adormecido no meu corpo.
E na esquina riem. Eu não ligo, mas riem e falam baixinho entre si, homens dispostos na calçada com as camisas abertas entre as verduras da tenda da esquina, os homens de pelos aparecendo pelas aberturas da camisa cochicham entre si e riem. Mas eu piso firme e ergo a cabeça e dentro do meu roxo caminho só-rindo entre as verduras e os cochichos, e ninguém entende: mas silenciam e principiam a rir baixo, apenas para eles, e não têm coragem de dizer nada. Eu passo por seu silêncio irônico e perplexo, a minha bolsa oscila, é como se o sol coroasse minha cabeça e ninguém soubesse ao certo se rir ou calar, de espanto, porque nunca naquela rua passou alguém coroado por um sol roxo de fevereiro.
Depois são os corredores e as escadas e o balcão claro do bar e os grupos de pessoas que não distingo umas das outras, mas vou sorrindo, sou um projétil orientado até certo ponto, depois dele, e é agora o depois dele vou furando o desconhecido, violentando o mistério, vou penetrando no incompreensível, e sorrio para o inesperado, o corpo ereto projetado, e alguém me faz uma saudação oriental na porta de entrada e eu sorrio ainda mais largo: é alguém semelhante a um cão são bernardo, falta apenas o barrilzinho de chocolate, desses abençoados que riem o tempo todo e o tempo todo cantam e dizem coisas e soltam notas musicais por entre os pelos espessos da barba e do cabelo grande.
E entro na sala e sinto que os olhares se debruçam sobre mim e cumprimento alguns e outros e não penso nada: gozo a glória deste momento e sei que brilho mesmo sem saber para onde vou. E tombo sobre a mesa e tento arranjar no rosto um ar compungido, qualquer coisa modesta e bucólica, à beira do perdão, um olhar no horizonte nas janelas do arquivo, para que me amem, para que se condoam, para que não se ofendam com meu sol de hoje.
Mas hoje. Hoje não. É impossível perdoar no meio destas máquinas histéricas e destas pessoas que tão pouco sabem de si destas calças desbotadas do feltro verde do jornal mural das vozes que passam misturando marchas de carnaval john lennon e carlos gardel é impossível sofrer entre os telefones que gritam e o suor que escorre e as laudas numeradas e as pilhas de jornais e livros e a porta que vezenquando abre libertando vanderléias comerciais e meninos de roupas coloridas e ar desvairado.
E hoje não. Que não me doa hoje o existir dos outros, que não me doa hoje pensar nessa coisa puída de todos os dias, que não me comovam os olhos alheios e a infinita pobreza dos gestos com que cada um tenta salvar o outro deste barco furado. Que eu mergulhe no roxo deste vazio de amor de hoje e sempre e suporte o sol das cinco horas posteriores, e posteriores, e posteriores ainda.


Caio Fernando Abreu

segunda-feira, 6 de outubro de 2008

Notícia sobre a criança



a mulher com morte cerebral
deu à luz
a uma criança

de novo:
a mulher com morte cerebral
deu à luz
a uma criança

outra vez:
a mulher com morte cerebral
deu à luz
a uma criança

morte: erro do pensamento
realiza a poesia
anterior à escrita
superior a notícia

de novo:

criança, permanência do pensamento
realiza a poesia
anterior à escrita
superior a notícia

outra vez:

a morte deu à luz
a uma vida
anterior à poesia
superior a notícia
e a luz se fez


Antonio Calloni, 
do livro "Paisagem vista do trem"

sexta-feira, 3 de outubro de 2008

[33] O Livro do desassossego

Avi Belaish

Nos primeiros dias do outono subitamente entrado, quando o escurecer toma uma evidência de qualquer coisa prematura, e parece que tardamos muito no que fazemos de dia, gozo, mesmo entre o trabalho quotidiano, esta antecipação de não trabalhar que a própria sombra traz consigo, por isso que é noite e a noite é sono, lares, livramento. Quando as luzes se acendem no escritório amplo que deixa de ser escuro, e fazemos serão sem que cessássemos de trabalhar de dia, sinto um conforto absurdo como uma lembrança de outrem, e estou sossegado com o que escrevo como se estivesse lendo até sentir que irei dormir.

Somos todos escravos de circunstâncias externas: um dia de sol abre-nos campos largos no meio de um café de viela; uma sombra no campo encolhe-nos para dentro, e abrigamo-nos mal na casa sem portas de nós mesmos; um chegar da noite, até entre coisas do dia, alarga, como um leque [que] se abra lento, a consciência íntima de dever-se repousar.
Mas com isso o trabalho não se atrasa: anima-se. Já não trabalhamos; recreamo-nos com o assunto a que estamos condenados. E, de repente, pela folha vasta e pautada do meu destino numerador, a casa velha das tias antigas alberga, fechada contra o mundo, o chá das dez horas sonolentas, e o candeeiro de petróleo da minha infância perdida brilhando somente sobre a mesa de linho obscurece-me, com a luz, a visão do Moreira, iluminado a uma eletricidade negra infinitos para além de mim. Trazem o chá — é a criada mais velha que as tias que o traz com os restos do sono e o mau humor paciente da ternura da velha vassalagem — e eu escrevo sem errar uma verba ou uma soma através de todo o meu passado morto. Reabsorvo-me, perco-me em mim, esqueço-me a noites longínquas, impolutas de dever e de mundo, virgens de mistério e de futuro.
E tão suave é a sensação que me alheia do débito e do crédito que, se acaso uma pergunta me é feita, respondo suavemente, como se tivesse o meu ser oco, como se não fosse mais que a máquina de escrever que trago comigo, portátil de mim mesmo aberto. Não me choca a interrupção dos meus sonhos: de tão suaves que são, continuo sonhando-os por detrás de falar, escrever, responder, conversar até. E através de tudo o chá perdido finda, e o escritório vai fechar… Ergo do livro, que cerro lentamente, olhos cansados do choro que não tiveram, e, numa mistura de sensações, sofro que ao fechar o escritório se me feche o sonho também; que no gesto da mão com que cerro o livro encubra o passado irreparável; que vá para a cama da vida sem sono, sem companhia nem sossego, no fluxo e refluxo da minha consciência misturada, como duas marés na noite negra, no fim dos destinos da saudade e da desolação.


Bernardo Soares
O livro do desassossego

quarta-feira, 1 de outubro de 2008

Amor, que o gesto humano na alma escreve

arthur braginsky


Amor, que o gesto humano na alma escreve,
Vivas faíscas me mostrou um dia,
Donde um puro cristal se derretia
Por entre vivas rosas e alva neve.

A vista, que em si mesma não se atreve,
Por se certificar do que ali via,
Foi convertida em fonte, que fazia
A dor ao sofrimento doce e leve.

Jura Amor que brandura de vontade
Causa o primeiro efeito; o pensamento
Endoidece, se cuida que é verdade.

Olhai como Amor gera, num momento
De lágrimas de honesta piedade,
Lágrimas de imortal contentamento.


Luis de Camões