segunda-feira, 19 de dezembro de 2022

[48] -


 Para compreender, destruí-me. Compreender é esquecer de amar. Nada conheço mais ao mesmo tempo falso e significativo que aquele dito de Leonardo da Vinci de que se não pode amar ou odiar uma coisa senão depois de compreendê-la.

A solidão desola-me; a companhia oprime-me. A presença de outra pessoa descaminha-me os pensamentos; sonho a sua presença com uma distração especial, que toda a minha atenção analítica não consegue definir.


Bernardo Soares (Fernando Pessoa)

O Livro do Dessassossego 

sábado, 17 de dezembro de 2022

Eric Wallis 

 

arte é vida,

também, sabe

solidão é vida,

meditação é vida,

fingimento é vida,

suposição é vida, 

contemplação é

vida, linguagem é

vida.


Philip Roth

ennio montariello

 

às vezes sou

manancial entre pedras

e outras vezes uma árvore

com as últimas folhas

mas hoje me sinto apenas

como lagoa insone

como um porto

já sem embarcações

uma lagoa verde

imóvel e paciente

conformada com suas algas

seus musgos e seus peixes

sereno em minha confiança

acreditando que em uma tarde

te aproximes e te olhes

te olhes ao olhar-me.


Mario Benedetti

O engano



Sou tua, Deus o sabe porquê, já que compreendo 

Que haverás de abandonar-me, friamente, amanhã, 

E que embaixo dos meus olhos, te encanto 

Outro encanto o desejo, porém não me defendo. 


Espero que isto um dia qualquer se conclua, 

Pois intuo, ao instante, o que pensas ou queiras 

Com voz indiferente te falo de outras mulheres 

E até ensaio o elogio de alguma que foi tua. 


Porém tu sabes menos do que eu, e algo orgulhoso 

De que te pertence, em teu jogo enganoso 

Persistes, com ar de ator do papel dono. 


Eu te olho calada com meu doce sorriso, 

Não és tu o que me engana, quem me 

engana é meu sonho.

 

Alfonsina Storni

 

Emile Vernon


Se puderes aceitar a nudez 

como uma graça ou uma pobreza

talvez encontres

as linhas de força inexplicadas.

Se com o teu peso irremediável,

proferires a palavra que mal pousa

poderás sustentar a magnética felicidade

desse instante, 

ameaçado mas vivo,

do indecifrável silêncio da nudez.


António Ramos Rosa


 


Um bago de uva? Não, o bico do teu seio!

Casimiro de Brito

 

Dylan John Lisle 

  

Se não me sentem o coração cegos estão.

Casimiro de Brito

 


O amor é uma chaga invisível. Interior.

Casimiro de Brito

 


Todos os meus dias são transes,

E todas as minhas noites, sonhos,

Por onde teus olhos cinzentos pousam

E por onde teus passos leves roçam

Em danças etéreas,

Em fluxos eternos


Edgar Allan Poe

 



Não te chamo para te conhecer

Eu quero abrir os braços e sentir-te

Como a vela de um barco sente o vento


Não te chamo para te conhecer

Conheço tudo à força de não ser


Peço-te que venhas e me dês

Um pouco de ti mesmo onde eu habite


Sophia de Mello Breyner Andresen

Particularidades



Muitas vezes, a sós, eu me analiso e estudo,

os meus gostos crimino e busco, em vão, torcê-los;

é incrível a paixão que me absorve por tudo

quanto é sedoso, suave ao tato: a coma... os pêlos...


Amo as noites de luar porque são de veludo,

delicio-me quando, acaso, sinto, pelos

meus frágeis membros, sobre o meu corpo desnudo

em carícias sutis, rolarem-me os cabelos.


Pela fria estação, que aos mais seres eriça,

andam-me pelo corpo espasmos repetidos,

às luvas de camurça, aos boás, à pelica...


O meu tato se estende a todos os sentidos;

sou toda languidez, sonolência, preguiça,

se me quedo a fitar tapetes estendidos.


 Gilka Machado, in "Estados da alma: poesias"

Crepúsculo

Christian Schloe

Teus olhos, borboletas de ouro, ardentes

Borboletas de sol, de asas magoadas,

Pousam nos meus, suaves e cansadas

Como em dois lírios roxos e dolentes...


E os lírios fecham.... Meu amor não sentes?

Minha boca tem rosas desmaiadas,

E a minhas pobres mãos são maceradas

Como vagas saudades de doentes...


O silêncio abre as mãos... entorna rosas...

Andam no ar carícias vaporosas

Como pálidas sedas, arrastando...


E a tua boca rubra ao pé da minha

É na suavidade da tardinha.

Um coração ardente palpitando...


FLORBELA ESPANCA, in A Mensageira das Borboletas

Charles James Lewis

 “A linguagem é uma pele: esfrego minha linguagem no outro. É como se eu tivesse palavras ao invés de dedos, ou dedos na ponta das palavras. Minha linguagem treme de desejo. A emoção de um duplo contacto: de um lado, toda uma atividade do discurso vem, discretamente, indiretamente, coloca em evidencia um significado único que é “eu te desejo”, e liberá-lo, alimentá-lo, ramificá-lo, fazê-lo explodir (a linguagem goza de se tocar a si mesma); por outro lado, envolvo o outro nas minhas palavras, eu o acaricio, o roço, prolongo esse roçar, me esforço em fazer durar o comentário ao qual submeto a relação.”

 Roland Barthes em Fragmentos de um discurso amoroso

NESTA NOITE, NESTE MUNDO



Nesta noite neste mundo

as palavras do sonho da infância da morte

nunca é isso o que queremos dizer

a língua natal castra

a língua é um órgão de conhecimento

do fracasso de todo o poema

castrado pela sua própria língua

que é o órgão da re-criação

do re-conhecimento

mas não é o da re-surreição

de algo parecido com negação

do meu horizonte de maldoror com o seu cão

e nada é promessa

entre o dizível

que equivale a mentir

(todo o que se pode dizer é mentira)

o resto é silêncio

só que o silêncio não existe


não

as palavras

não fazem o amor

fazem a ausência

se digo água, beberei?

se digo pão, comerei?


nesta noite neste mundo

extraordinário silêncio o desta noite

o que se passa com a alma é que não se vê

o que se passa com a mente é que não se vê

o que se passa com o espírito é que não se vê

de onde vem esta conspiração de invisibilidades?

nenhuma palavra é visível


sombras

recintos viscosos onde se esconde

a pedra da loucura

corredores escuros

eu os percorri a todos

oh fica um pouco mais conosco!


minha pessoa está ferida

minha primeira pessoa do singular


escrevo como quem sacou uma faca na escuridão

escrevo como estou dizendo

a sinceridade absoluta continuaria sendo

o impossível

oh fica um pouco mais conosco!


as degenerações das palavras

desabitando o palácio da linguagem

o conhecimento entre as pernas

que fizeste do dom do sexo?

oh meus mortos

eu os comi e me engasguei

não posso mais de não poder mais


palavras dissimuladas

tudo se desliza

para a negra liquefação


e o cão de maldoror

nesta noite neste mundo

onde tudo é possível

salvo

o poema


falo

sabendo que não se trata disso

sempre não se trata disso

oh ajuda-me a escrever o poema mais desnecessário

                que não sirva nem para

                 ser imprestável

ajuda-me a escrever palavras


 Alejandra Pizarnik

 


que a mulher que amo seja pra sempre amada

mesmo que distante

pois metade de mim é partida

a outra metade é saudade.


Oswaldo Montenegro

sexta-feira, 16 de dezembro de 2022

 

Arthur Braginsky 


Ah! Se me ouvisses falando!

(E eu sei que às dores resistes)

Dir-te-ia coisas tão tristes

Que acabarias chorando.


Que mal o amor me tem feito!

Duvidas?! Pois, se duvidas,

Vem cá, olha estas feridas,

Que o amor abriu no meu peito.


Passo longos dias, a esmo.

Não me queixo mais da sorte

Nem tenho medo da Morte

Que eu tenho a Morte em mim mesmo!


Augusto dos Anjos in: Canto Íntimo

O teu abraço

Lauri Blank.

 

Nada como o teu abraço, esse sorriso

que permanece brilhando nos meus músculos

com a luz da fogueira dos afectos e o fascínio

singular que têm as coisas íntimas, deslumbramento

silencioso entre a respiração e a música.

O teu abraço é o início do mundo e, ainda

que a tua boca me nomeie e me perturbe, é

contra o meu peito que te sinto minha,

porque são os meus braços ansiosos

que melhor te reconhecem.


Joaquim Pessoa

 glossário de transnominações em que não

se explicam algumas delas (nenhumas) - ou menos


 Duma Arantes


Boca, s. f.

Brasa verdejante que se usa em música

Lugar de um arroio haver sol

Espécie de orvalho cor de morango

Ave-nêspera!

Pequena abertura para o deserto


Manoel de Barros

 



Se de tudo fica um pouco,

mas por que não ficaria

um pouco de mim? no trem

que leva ao norte, no barco,

nos anúncios de jornal,

um pouco de mim em Londres,

um pouco de mim algures?

na consoante?

no poço?


Carlos Drummond de Andrade 


 "Os livros são abelhas que levam o pólen de uma inteligência a outra." 


- James Russell Lowell.


 saber que algumas dores

irão doer para sempre

é uma espécie de cura


zack magiezi

 


“Qual o homem no mundo que, sem vocação interior, dedica-se a um ofício, uma arte ou qualquer meio de vida, não achará como tu insuportável sua profissão? Aquele que nasceu com talento para algum talento, nele encontra sua mais bela existência! Não existe coisa alguma nesta terra sem dificuldade! Só o impulso interior, o amor e o desejo nos ajudam a superar os obstáculos, a abrir caminhos e a elevar-nos acima do estreito círculo onde outros miseravelmente se debatem! Para ti, os palcos nada mais são que palcos, e os papéis, o que para um escolar é sua tarefa! Vês o público como ele mesmo se imagina ser nos dias de trabalho. Pois, para ti, tanto faz estar sentado atrás de uma escrivaninha, debruçado sobre livros quadriculados, registrando contribuições ou usurpando as diferenças. Não sentes esse todo a arder coeso, que só o espírito descobre, concebe e realiza; não sentes que lateja nos homens uma centelha melhor que, não encontrando alento nem ânimo, é soterrada pelas cinzas das necessidades quotidianas e da indiferença, e, ainda assim, por mais tarde que seja, nunca é abafada. Não sentes em tua alma força alguma para avivá-la, nem em teu coração a riqueza necessária para alimentar aquilo que despertaste. A fome te impele, os transtornos te são adversos e não consegues compreender que em qualquer condição social espreitam esses inimigos, que só a alegria e a serenidade podem vencer. Fazes bem em aspirar aos limites de uma ocupação vulgar, pois como poderias desempenhar com acerto alguma outra que exige gênio e coragem? (…) Se se movessem vivamente em tua alma as imagens de homens laboriosos, se aquecesse teu peito um fogo compassivo, se se propagasse por todo teu ser esta inclinação que emana do mais profundo, se fosse agradável ouvir os sons de tua garganta, as palavras de teus lábios, se te sentisses forte o bastante em ti mesmo…, e certamente procurarias lugar e ocasião de poder sentir-te também nos outros!”

Goethe, J. W. Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister. 

quarta-feira, 14 de dezembro de 2022

 


Eu sou a poeira no raio solar.

Eu sou o sol circular.

Para os pedaços de pó eu digo, Fiquem.

Para o sol, Continue a viajar.

Eu sou a neblina da manhã,

e o suspirar da tardinha.

Eu sou o vento no topo do bosque,

e a arrebentação ao pé do penhasco.

Mastro, leme, timoneiro, e barco,

Sou também o recife de corais onde naufragaram.

Eu sou uma árvore com um papagaio treinado em seus galhos.

Silêncio, pensamento, e voz.

O ar musical saindo de uma flauta,

a faísca de uma pedra, uma oscilação

num metal. Tanto a vela,

quando a mariposa alucinada ao redor.

A rosa, e o rouxinol

perdido em sua fragrância.

Eu sou todas as ordens do ser, a galáxia circundante,

a inteligência evolucionária, a ascensão,

e a queda. O que é,

e o que não é. Você quem sabe

Jalal ud-Din, Você, o uno

em tudo, me diga quem

Eu sou. Diga eu

Sou Você.


Rumi

 


Eu vejo minha beleza em você. 

Eu me torno um espelho, incapaz de fechar os olhos 

para a sua saudade. 

Meus olhos lacrimejam, junto aos seus, na luz da manhã. 

Minha mente, a cada momento, dá a luz: 

sempre concebendo, 

sempre no nono mês, 

sempre no ponto de chegada. 

Como posso suportar isso? 

Nós nos tornamos as palavras que saem de nossos lábios: 

uma lamentação que vem de dentro 

e ecoa na distância.


Rumi

terça-feira, 13 de dezembro de 2022

 


Encontrei-te só e nua. E de mim te vesti 

e assim te acompanhei.


Casimiro de Brito

CAIXA-PRETA

fabian perez


Sou um homem.

Portanto,

mais que palavra.

Não pronuncio

o sentimento

apenas como palavra.

O que foi dito,

ao entardecer,

não se confirma

na madrugada.

O que foi visto,

no sonho,

não se confronta

com a realidade.

Sou um homem.

Portanto,

uma surpresa.


Damário Cruz

RESOLUÇÃO



Essa dor

não me resolve,

esse poema

não te resolve.

O que nos une

é alguma coisa

acima do sim,

é alguma coisa

acima do não

(se por acaso

a palavra amigo

é prisioneira

no coração do homem).


Essa dor

não me resolve,

esse poema

não te resolve.

O que nos une

é a cumplicidade

em caminhar sobre pedras,

é o compromisso

em cavalgar sobre peitos

(se por acaso

a palavra amigo

é prisioneira

no coração do homem).


Somos esta coragem

em insistência humana,

somos esta covardia

sem existência humana.

O que nos une

é essa dor mesmo,

é essa mesma poesia

em roçar os dedos

na mão do outro.


Damário Dacruz

domingo, 11 de dezembro de 2022

Mão Única


- é proibido

voltar atrás

e chorar


Orides Fontela


 “O verdadeiro amor não é apenas um sentimento, é uma ação.”

Bell Hooks


 A paixão amorosa é uma amizade (uma conciliação a dois) levada até à loucura. É mais do que viver o instante sem porém deixar de gozar e de sofrer cada nuance do instante. Amor é o desejo que me causa a tua beleza total, sempre movendo-se, e que respeito. Quero dizer: se a mulher que amo já não me ama com igual intensidade devo partir porque na minha concepção amor é o que se vive entre iguais, ao mesmo tempo, ainda que lhes seja imposta uma separação. Se me dizes que o amor é irreal e fantasmagórico e que tens medo ao mesmo tempo que te abres, tudo bem; se te fechas também estará bem pois o amor é um pássaro, ou devia ser, só preso à sua liberdade. Por isso estou sempre a dizer-te adeus, e tu a mim.

Casimiro de Brito


 É natural que eu lhe tenha dito depois de nos termos amado — ou enquanto nos amávamos: estamos no paraíso. Com palavras, com um olhar escavado, com o sexo pulsando dentro dela. Mas depois fui expulso, todos os dias a exclusão, a expulsão. O exílio. Os outros a entrarem dentro de nós, pela memória e pelo desejo surdo, e a separarem-nos um do outro. Ele existe, o paraíso, mas está sempre no fio da navalha ou ao fim do corredor. Seja no corpo ou na palavra. Quem não enlouquece?

Casimiro de Brito


 O sexo é um festim; amar, uma cerimónia.


Casimiro de Brito

 


Ah mas a floresta, o caos, o vosso corpo desenfreado, nunca deixou de existir. Um jardim do Oriente, desse Oriente de onde me vem o maior caos, a paciência e a fuga, a dor e o gozo, o desejo indecifrado. Um de nós vai meter-se no primeiro avião. Um de nós leva ao outro a carne que escorre directamente do sol.

Casimiro de Brito


  
Cuidado. O amor

é um pequeno animal

desprevenido, uma teia

que se desfia

pouco a pouco. Guardo

silêncio

para que possam ouvi-lo

desfazer-se. 


Casimiro de Brito 

quinta-feira, 8 de dezembro de 2022

 




poema nenhum, nunca mais

será um acontecimento:

escrevemos cada vez mais

para um mundo cada vez menos


Alberto da Cunha Melo

quarta-feira, 7 de dezembro de 2022

Caravelas


Cheguei a meio da vida já cansada

De tanto caminhar! Já me perdi!

Dum estranho país que nunca vi

Sou nesse mundo imenso a exilada.


Tanto tenho aprendido e não sei nada

E as torres de marfim que construí

Em trágica loucura as destruí

Por minhas próprias mãos de malfadada!


Se eu sempre fui assim este Mar morto:

Mar sem marés, sem vagas e sem porto

Onde velas de sonhos se rasgaram!

Caravelas doiradas a bailar...


Aí quem me dera as que eu deitei ao Mar!

As que eu lancei à vida, e não voltaram!..


Florbela Espanca

terça-feira, 6 de dezembro de 2022


 “Grief, I’ve learned, is really just love. It’s all the love you want to give, but cannot. All that unspent love gathers up in the corners of your eyes, the lump in your throat, and in that hollow part of your chest. Grief is just love with no place to go.”

Jamie Anderson

sábado, 26 de novembro de 2022



 “ainda dá tempo pra tudo, basta a gente querer”

Ainda dá tempo pra tudo.

Pode o céu estar fechado neste instante, mas uma hora abre, não falha. Pouco importa sua idade: você está vivo. Então ainda dá tempo para você reatar, dá tempo para você terminar uma relação ruim e começar outra, dá tempo de pedir perdão ou de colocar uma pedra sobre o assunto que incomoda, dá tempo de ter um relacionamento mais leve e prazeroso, e indo além das questões amorosas: dá tempo de conhecer a Ásia, de escrever suas memórias, de mergulhar no mar à noite, de aprender a cozinhar, de falar italiano, de fazer diferença, de começar uma coleção. Se me permite uma sugestão: colecione inúmeras ”primeiras vezes”. Todas as primeiras vezes que você tem evitado porque não simpatiza com mudanças.

Aqui entra a segunda parte da frase: basta a gente querer.

É a parte mais difícil: querer. Porque querer dá trabalho. Querer convoca à ação. Te arranca debaixo das cobertas. Querer pressupõe suor, planejamento, esforço, risco. O querer te cobra, te aponta o dedo, e aí, criatura? Quis tanto e não batalhou? Querer te chama para o combate. E lá vai você.

Queira. Não se contente com o que já tem. Ou com o que nunca teve. Queira mais, queira melhor, queira o impossível, queira sem garantia de ser bem sucedido, simplesmente queira tanto, mas tanto, a ponto de emitir sinais – alguém há de captá-los.

Recado para os cansados: ainda dá tempo. Para os desiludidos: ainda dá tempo. Para os frustrados: ainda dá tempo. Para os desistentes: tente um pouco mais. Você respira? Então ainda dá.

Martha Medeiros



 já matei alguns sentimentos

mas foi em legítima defesa


Zack Magiezi


Às vezes não basta

Em noites como essa

Os barulhos da cidade incomodam

É sábado

Algo borbulha dentro de você

Como se a vida e as funções biológicas

Estivessem lhe cobrando movimento

Uma vida plena

Yoga ou sei lá o que

Melhor procurar o conselho da galera que ensina a gente a viver

Nada basta

Vejo dancinhas, vejo adultos dublando vozes de crianças

O foda é saber que boa parte dessa galera também é triste em uma noite como essa

Todos somos

Há noites que sabem bater pesado

Aquilo ainda está em você

O sentimento de vazio e autoengano

E você só pensa em que não pensa mais em ti

Sente aquela vontade de atravessar uma maldita tela

E dizer o que deveria ser dito

Mas você ia ficar mais fodido porque veria que seu esforço não deu em nada

Às vezes você só quer alguém que realmente aprecie a sua companhia

É como se elas nos devolvessem para o nosso corpo

Saca

Sentar em uma mesa de bar, falar da vida

Mas algumas vezes estamos em um não lugar, um limbo

E vemos as pessoas que escolhemos para sempre

Amores, amigos, afetos

Vivendo a vida, seguindo em frente e sem você

Hoje conversando com um amigo eu disse

O bom de envelhecer é que você aprende a ver quem são as pessoas que estão realmente com você até o fim

Pena que ainda existe afeto pelas pessoas que decidiram ir

Não passamos mais nem pelo pensamento ou lembrança delas

Mas sobrevivemos

Mesmo amputando pessoas, dores fantasmas

Essa é uma verdade

Em noites como essa

Mesmo se você estiver em uma festa cercado de gente

Ou no bar mais instagramável

Nos apps buscando um match

Na Timeline

Ou no quarto olhando pela janela

Tentando tirar esse vazio

Você chega a uma conclusão censurável

Às vezes o amor-próprio não basta

Ninguém gosta de admitir isso

Às vezes você queria que uns olhos atentos olhassem para você

Mas só há uma cidade com um silêncio insuportavelmente barulhento.


Zack Magiezi

sexta-feira, 25 de novembro de 2022


Os tristes dizem que os ventos gemem; Os alegres acham que cantam.

Zalkind Piatigorsky , O caminhante

Um contributo à estatística


De cada cem indivíduos


os que sabem tudo melhor

— cinquenta e dois;


inseguros de cada passo

— quase todo o resto;


prontos para ajudar

desde que não demore muito

— até quarenta e nove;


sempre bons,

porque não sabem ser de outro jeito

— quatro, bem, talvez cinco;


dispostos a admirar sem inveja

— dezoito;


vivendo em constante medo

de alguém ou de algo

— setenta e sete;


com aptidão para a felicidade

— vinte e poucos no máximo;


inofensivos individualmente,

ferozes na multidão

— por certo mais que a metade;


cruéis

quando as circunstâncias exigem

— melhor não saber

nem por aproximação;


gatos escaldados

— não muitos mais

do que os não escaldados;


os que não levam nada da vida além de coisas

— quarenta,

embora eu quisesse estar enganada;


encolhidos, doloridos

e sem lanterna na escuridão

— oitenta e três,

mais cedo ou mais tarde;


dignos de compaixão

— noventa e nove;


mortais

— cem de cem.

Número que até aqui segue inalterado.


Wislawa Szymborska

terça-feira, 22 de novembro de 2022

sexta-feira, 18 de novembro de 2022

VIAGEM NO TEMPO




Percorro a casa. Os claros

espaços dos antepassados.


As vigas. Os caibros. As telhas.

As vértebras das teias


de aranha. Por aqui

as serpentes dos pântanos


deixaram fragmentos

de astúcia e morfina.


Vestígios de borboletas

mortas vivem nas gavetas.


Dos ponteiros do relógio

pingam as gotas das horas.


Por todos os cantos

da casa a memória sangra.


Francisco Carvalho

 



Não busques a paixão.

Ela, que não sabes onde está,

te encontrará


Casimiro de Brito

 


A crítica é um contrassenso: é preciso ler, não para compreender outrem, mas para compreender a si mesmo.

Emil Cioran (In: "Confissões e Anátemas")

 



Secreto como um seixo, e oferecido

Com a branda ternura que o envolve.

É este o corpo de luz anunciada .

Quantos anos viveste, em sombra ausente,

Geraram longamente a hora, o gesto

Que da noite do seixo, alma da pedra

Lança o grito solar como um protesto 


José Saramago, Provavelmente alegria



 The home is the center of life. It is a refuge from the grind of work, the pressure of school, and the menace of the streets. We say that at home, we can “be ourselves.” Everywhere else, we are someone else. At home, we remove our masks.

The home is the wellspring of personhood. It is where our identity takes root and blossoms, where as children, we imagine, play, and question, and as adolescents, we retreat and try. As we grow older, we hope to settle into a place to raise a family or pursue work. When we try to understand ourselves, we often begin by considering the kind of home in which we were raised. 


~Matthew Desmond (Book: Evicted) 

VUELTA


ah, esse tempo e essa distância.

tu a quantos passos dos meus dedos,

do meu alcance,

dos meus segredos e da minha sanha.

tu que me tens fácil

e me ganhas em palavras comezinhas,

amiúde em tua voz e nela envoltas

que nem percebo-as minhas.

traídas no teu timbre

e de mim subtraídas,

o teu chamado eu ouço

no teu chamado eu fico.

 

e assim o ambiente tu preparas,

trazendo, a cada instante,

somente o que a ele é necessário;

já eu, pelo contrário,

ou trago tudo ou nada trago:

ou te como de beijos

ou te devoro de ausências.

 

mas sabes o meu preço:

declinas o teu colo,

solfejas um bolero,

e dizes o que eu quero

na espera que ofereço

(e mais esperaria,

 que esse tempo não se conta),

e tu, num faz-de-conta,

nos lábios que a custo movimentas,

lançando-me palavras

castas e sedentas,

certeiras e fugidias,

com as quais, sabes, me adias

e com elas me demoro

porque tanto me inebria.

 

mas, é pouco. pensas.

 

não sei como,

mas, aos poucos,

lentamente,

todo o ambiente olorizas.

um cheiro não guardado nos perfumes

e às flores, certamente, ocultado;

e eu, embriagado,

sabendo-te culpada da fragrância,

mais me aproximo

e inútil escondo a ânsia

de vestir-me do teu corpo,

de beber a tua pele,

cada pêlo e cada poro,

cada curva, toda parte,

eu inteiro, tu completa.

 

e como não convém dizer segredos

a olhos que não sejam teus e meus,

deixemos que adivinhem o percurso

da vuelta e reencontro

do meu toque, meu olhar,

no presente derradeiro que me deste:

tu inteira,

epicentro desse cheiro.

 

 

Antoniel Campos



Todo lo que de vos quisiera

es tan poco en el fondo

porque en el fondo es todo,


como un perro que pasa, una colina,

esas cosas de nada, cotidianas,

espiga y cabellera y dos terrones,

el olor de tu cuerpo,

lo que decís de cualquier cosa,

conmigo o contra mía,


todo eso es tan poco,

yo lo quiero de vos porque te quiero.


Que mires más allá de mí,

que me ames con violenta prescindencia

del mañana, que el grito

de tu entrega se estrelle

en la cara de un jefe de oficina,


y que el placer que juntos inventamos

sea otro signo de la libertad.


Julio Cortázar