quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

Ildiko-Neer



Qualquer tempo é tempo.
A hora mesma da morte
É hora de nascer.

Nenhum tempo é tempo
Bastante para a ciência
De ver, rever.

Tempo, contratempo
Anulam-se, mas o sonho
Resta, de viver



Carlos Drummond de Andrade

O que leio nos teus olhos

 Benedikt Rest



O que leio nos teus olhos:
o que um deus distraído escreve na linha
do horizonte, e passa para o outro lado
do verso;
um orvalho que escorre da folha
onde o poema nasce, e cai como lágrima
na terra fértil da inspiração;
um cair de pálpebras quando o sol
do amor se atravessa à tua frente, e o seu brilho
te ofusca;
e o espelho em que o amor se reflete
quando o olhas de frente, e descobres nele
o teu rosto.


Nuno Júdice 
jaroslav monchak



Abraçava-me à noite nítida,
à alta, à vasta noite estrangeira,
e aos seus ouvidos sucessivos murmurava:
“Não quero mais dormir, nunca mais, noite, esparsas
nuvens de estrelas sobre as planícies detidas,
sobre sinuosos canais, balouçantes e frios,
sobre os parques inermes, onde a bruma e as folhas ruivas
sentem chegar o outono e, reunidas, esperam
sua lei, sua sorte, como as pobres figuras humanas.”

E aos seus ouvidos sucessivos murmurava:
“Não quero mais dormir, nunca mais, quero sempre
mais tempo para os meus olhos, - vida, areia, amor profundo... –
conchas de pensamentos sonhando-se desertamente.”

E a noite dizia-me: “Vem comigo, pois, ao vento das dunas,
vem ver que lembranças esvoaçam na fronte quieta do sono,
e as pálpebras lisas, e a pálida face, e o lábio parado
e as livres mãos dos vagos corpos adormecidos!
Vem ver o silencio que tece e destece ordens sobre-humanas,
e os nomes efêmeros de tudo que desce à franja do horizonte!
Oh! Os nomes... – na espuma, na areia, no limite incerto dos mundos,
plácidos, frágeis, entregues à sua data breve,
irresponsáveis e meigos, boiando, boiando na sombra das almas,
suspiro da primavera na aresta súbita dos meses...”

E a linguagem da noite era velhíssima e exata.
E eu ia com ela pelas dunas, pelos horizontes,
entre moinhos e barcos, entre mil infinitos noturnos leitos.

Meus olhos andavam mais longe do que nunca,
voavam, nem fechados nem abertos,
independentes de mim,
sem peso algum, na escuridão,
e liam, liam, liam o que jamais esteve escrito,
na rasa solidão do tempo, e sem qualquer esperança
- qualquer. 



Cecília Meireles 




(...) ainda me vês Kadoshi-melindre dissolvência-veu dourado? Um ronco um som pastoso, um borbulhar de víscera. E assim podeis notar que this town is full of nobles here and there, que apenas eu caminho pela casa sem certeza de nada, vasculho os cantos, demoro-me sob os arcos, farejo os buracos, que... há muito tempo ando querendo usar o punhal contra mim mesmo, pegar esse rosado intenso que se agita quando amas além de uma certa medida e colocá-lo sobre a mesa frente a frente: coração de Kadosh, soturno e tumultuado, que percurso é o teu, que nome dás às coisas, que asa-coisa te faz mais manso, mais viscoso? És tu que procuras o Sem-Nome, o Mudo Sempre, o Tríplice Acrobata? Grande pena de ti, de mim também porque és meu mas não cabes em mim, e porque é tão necessário que eu te coloque dentro de outro peito, de um que seja extremo e descampado e livre, e não dentro do meu, porque até agora persigo a quem não vejo, persigo apenas a ideia que tenho de um grande perseguido e suspeito que ele pode estar em cada canto, que ele por alguma razão, em algum momento será submisso a Um instante, e eu devo estar lá quando esse tempo solitário e ardente se fizer, tempo de mim colado ao Sem-Nome, tempo torvelinho. Coração de Kadosh, às vezes digo a esse perseguido que não sei: se fosses todo perfeito eu não seria indigno de ti, se fosses equilíbrio, esplêndida balança, há muito tempo que seríamos um etc. etc. Lamúrias. Basta. Indecências. Devo voltar ao de cada dia, nabos cenouras beterrabas, os ministros depois da festa, arrotos caganeiras, a missão especial foi adiada, até quando devo conviver com tantos? O da Agricultura me pergunta: devo plantar cana ou bocas de leão ou tílias ou goiabas australianas, ou canaleiras ou cerejas das Antilhas? E eu, Kadosh, devo dizer ao mundo que a educação é o berço? Devo dar cama ao indigente, ao louco e afixar normas de bem procriar? Que direção queres dar ao teu governo Kadosh? Devemos dizer que és manso ou atrabiliário? Que procuras um possível contorno, um alguém dissimulado, astuto, um corpo sem carne que vives te queixando do Sem-Nome, ou queres dar a impressão de guerreiro indomável, de homem como alguns, sólido objetivo consoante?

Hilda Hilst, kadosh

Marguerite Duras, O amante




Estou com um vestido de seda natural, gasto, quase transparente. Tinha sido antes de minha mãe; um dia ela deixou de usá-lo porque achava claro demais e me deu. É um vestido sem mangas, muito decotado. Daquele tom amarelado que a seda natural adquire com o uso. Tenho-o na lembrança. Acho que ele me cai bem.

Uso um cinto de couro na cintura, talvez de meus irmãos. Não me lembro dos sapatos que usava naquele tempo, só de certos vestidos. Na maior parte do tempo, uso sandálias de lona sem meias. Falo da época anterior ao colégio de Saigon. A partir de então, naturalmente sempre uso sapatos. Naquele dia, eu devia estar usando aqueles famosos sapatos de salto alto em lamê dourado. Não vejo que outra coisa poderia estar usando naquele dia, portanto eu os uso. Saldo de liquidação que minha mãe me comprou. Uso esses sapatos de lamê dourado para ir ao liceu. Vou ao liceu com sapatos de noite enfeitados com pequenos desenhos de strass. É por minha vontade. Só me suporto com esse par de sapatos, e ainda agora é o que quero, são os primeiros sapatos de salto alto da minha vida, lindos, eclipsaram todos os anteriores, aqueles para correr e brincar, baixos, de lona branca.

Não são os sapatos que compõem o que há de insólito, de inaudito, na aparência da menina naquele dia. O que há naquele dia é que a menina está usando um chapéu masculino com as abas retas e lisas, um feltro macio cor de pau-rosa com uma larga fita preta.

A ambiguidade determinante da imagem está nesse chapéu. 

Como ele chegou até mim, esqueci. Não imagino quem poderia ter me dado. Acho que foi minha mãe que comprou, a pedido meu. Única certeza, era um saldo de liquidação. Como explicar essa compra? Nessa época, nenhuma mulher, nenhuma moça usava chapéu masculino na colônia. Nenhuma nativa tampouco. O que deve ter acontecido é que experimentei esse chapéu, à toa, de brincadeira, olhei-me no espelho da loja e vi: sob o chapéu masculino, a ingrata magreza da forma, essa imperfeição da infância, se tornou outra coisa. Deixou de ser um dado brutal, fatal, da natureza. Tornou-se, pelo contrário, uma escolha oposta a ela, uma escolha do espírito. De repente eu quis essa magreza. De repente eu me vejo como outra, como outra seria vista, de fora, posta à disposição de todos, à disposição de todos os olhares, na circulação das cidades, dos caminhos, do desejo. Pego o chapéu, não me separo mais dele, eu o tenho, tenho esse chapéu que me faz sentir inteira com ele, não o deixo mais. Quanto aos sapatos, deve ter sido meio parecido, mas depois do chapéu. Eles contradizem o chapéu, tal como o chapéu contradiz o corpo franzino, portanto são bons para mim. Também não os deixo mais, vou a todos os lugares com esses sapatos, esse chapéu, na rua, toda hora, em todo lugar, vou à cidade.


Marguerite Duras, O amante

Monólogo




4 ou 5 versos sem
destino o vão 
resvalar dos lábios no
nada

minha ternura toda
desperdiçada



Adair Carvalhais Jr.

terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Sables mouvants

Saharoza



Démons et merveilles 
Vents et marées 
Au loin déjà la mer s'est retirée 
Démons et merveilles 
Vents et marées 
Et toi 
Comme une algue doucement caressée par le vent 
Dans les sables du lit tu remues en rêvant 
Démons et merveilles 
Vents et marées 
Au loin déjà la mer s'est retirée 
Mais dans tes yeux entrouverts 
Deux petites vagues sont restées 
Démons et merveilles 
Vents et marées 
Deux petites vagues pour me noyer. 



Jacques Prévert



Ao longe, ao luar, 
No rio uma vela 
Serena a passar, 
Que é que me revela?  
Não sei, mas meu ser 
Tornou-se-me estranho, 
E eu sonho sem ver 
Os sonhos que tenho.  
Que angústia me enlaça? 
Que amor não se explica? 
É a vela que passa 
Na noite que fica.  


Fernando Pessoa

Amantes

Kiéra Malone



una flor
no lejos de la noche
mi cuerpo mudo
se abre
a la delicada urgencia del rocío



Alejandra Pizarnik
De "Los trabajos y las noches" 1965

"Soneto II "


 


Necessito de um ser, um ser humano
Que me envolva de ser
Contra o não ser universal, arcano
Impossível de ler

À luz da lua que ressarce o dano
Cruel de adormecer
A sós, à noite, ao pé do desumano
Desejo de morrer.

Necessito de um ser, de seu abraço
Escuro e palpitante
Necessito de um dormente e lasso

Contra meu ser arfante:
necessito de um ser sendo a meu lado
Um ser profundo e aberto, um ser amado.


Mário Faustino dos Santos e Silva
Xie Chu Yu


Esta é a forma fêmea,
dela dos pés à cabeça emana um halo divino,
ela chama com ardente atração irrecusável,
sou absorvido por seu respirar como se não fosse mais
do que um vapor indefeso, tudo fica de lado
a não ser ela e eu,
os livros, a arte, a religião, o tempo, a terra sólida
e visível,
e o que do céu se esperava e do inferno se temia,
tudo se acaba,
estranhos filamentos, incontroláveis renovos
aparecem fora dela,
e a ação correspondente também incontrolável,
cabelo, peito, quadris, curvatura de pernas,
mãos displicentes
caindo todas difusas, difusas também as minhas,
maré de influxo e influxo de maré, carne de amor inturgescendo e a doer deliciosamente,
inexauríveis jatos límpidos de amor quentes e enormes,
geleia de amor trêmula, alucinado sopro
e sumo delirante,
noite de amor de noivo certa e maciamente laborando
no amanhecer prostrado,
a ondular para o presto e proveitoso dia,
perdida na separação do dia de carne doce e envolvente.
Eis o núcleo - depois vem a criança nascida de mulher,
vem o homem nascido de mulher,
eis o banho de origem, a emergência do pequeno
e do grande, e a saída outra vez.


Não vos vexeis, mulheres: em vosso privilégio
tendes fechados os outros e está a passagem dos outros,
vós sois os portões do corpo e sois os portões da alma.
A fêmea tem todas as qualidades e as tempera,
está no seu lugar e move-se com perfeito equilíbrio,
ela é todas as coisas devidamente veladas,
passiva e ativa ao mesmo tempo,
é para conceber filhas bem como filhos
e filhos bem como filhas.


Assim como eu vejo minha alma refletida na Natureza,
como vejo através de um nevoeiro, Uma de inexprimível
plenitude, sanidade, beleza,
vejo de cabeça baixa e de braços dobrados sobre o peito -
a Fêmea eu vejo.
O macho não é mais nem menos do que a alma,
ele também está no seu lugar,
ele também é todo qualidades, é ação e força,
o fluxo do universo conhecido nele se encontra,
o desdém fica-lhe bem, ficam-lhe bem os apetites
e a ousadia,
as mais fundas paixões, o maior entusiasmo
e a tristeza maior, ficam-lhe bem, o orgulho é para ele,
orgulho de homem, elevado ao máximo é calmante
e excelente para a alma,
fica-lhe bem o conhecimento, ele sempre o aprecia,
tudo ele chama à própria experiência,
qualquer que seja o valor, quaisquer que sejam o mar
e o vento, no fim é aqui que ele faz as sondagens.
(Onde mais lança ele a sua sonda, senão aqui?)
Sagrado é o corpo do homem, como é sagrado
o corpo da mulher,
sagrado não importa de quem seja - é o mais humilde numaturma de trabalhadores?
É um dos imigrantes de face turva apenas desembarcados no cais?
São todos daqui ou de qualquer parte, da mesma forma
Que os bem colocados da mesma forma que vós,
cada um tem na procissão o lugar dele ou dela.


(E tudo uma procissão,
o universo é uma procissão de movimento medido
e perfeito.)
Sabeis tanto de vós mesmos para chamardes ignorante
ao mais humilde?
Julgai-vos com direito a uma boa visão, e ele ou ela
sem direito a visão alguma?
Imaginais que a matéria se fez coesa do caos
em que flutuava,
e o solo veio para a superfície, e as águas correm
e brotam as plantas, para vós só, para ele e ela nada?
Em leilão um corpo de homem
(antes da guerra vou amiúde ao mercado de escravos
e assisto a venda)
e ajudo ao leiloeiro, o descuidado não sabe
o seu negócio nem pela metade.


Senhores olhem esta maravilha,
quaisquer que sejam os lanços dos lançadores
jamais serão bastante altos para isto,
para isto o globo levou quintilhões de anos em preparos
sem animal ou planta,
para isto os ciclos evolutivos desenrolaram-se de fato
e com firmeza.


Esta cabeça o cérebro capaz de tudo,
nela e abaixo dela a argamassa dos herois.
Examinai estas pernas, vermelhas, pretas ou brancas,
trabalhadas em nervos e tendões,
deviam estar abertas para que as pudésseis ver.
Sentidos os mais finos, olhos acesos de vida,
energia, vontade,
músculo do peito em flocos, pescoço e espinha flexíveis,
carne não flácida, pernas e braços de justo tamanho,
mais maravilhas lá dentro.
Lá dentro corre o sangue,
mesmo sangue antigo, o mesmo sangue em seu curso
vermelho!


Se alguma coisa é sagrada o corpo humano é sagrado,
e a glória e doçura de um ser humano é o dom
da humanidade incorrompida,
e assim no homem como na mulher um corpo limpo,
forte, de boa fibra, é mais bonito
do que o mais bonito rosto.
Ali pulsa e bombeia um coração, ali todas as paixões, desejos, conquistas, aspirações.
(Imaginais que não estão ali, porque não são exibidas
Em parlatórios e salas de aula?)
Isto não é unicamente um homem, é um pai de outros
que a seu turno serão pais,
nele reside o princípio de populosos estados
e faustosas repúblicas,
ele encerra imortais vidas sem conta
com incontáveis encarnações e deleites.
Como sabeis quem surgirá do rebento do seu rebento
atravessando os séculos?
(De quem vós mesmos descobriríeis que vindes,
se pudésseis seguir o vosso rastro
pelos séculos passados?)


Um corpo de mulher posto em leilão:
ela também não é somente ela, é a pródiga mãe de mães,
é a portadora daqueles que hão de crescer
e dar parceiros para as mães.
Alguma vez amastes o corpo de uma mulher?
Alguma vez amastes o corpo de um homem?
Não percebeis que são exatamente os mesmos
para todos em todas as épocas e nações em toda a terra?
Vistes o doido que estragou seu próprio corpo em vida?
e a doida que estragou seu próprio corpo em vida?
Pois eles não se escondem,
nem a si mesmos podem esconder.


Walt Whitman
Tradução de Geir Campos
                                                    


To imagination




When weary with the long day's care,
And earthly change from pain to pain,
And lost and ready to despair,
Thy kind voice calls me back again:
Oh, my true friend! I am not lone,
While thou canst speak with such a tone!

So hopeless is the world without;
The world within I doubly prize;
Thy world, where guile, and hate, and doubt,
And cold suspicion never rise;
Where thou, and I, and Liberty,
Have undisputed sovereignty.

What matters it, that, all around,
Danger, and guilt, and darkness lie,
If but within our bosom's bound
We hold a bright, untroubled sky,
Warm with ten thousand mingled rays
Of suns that know no winter days?

Reason, indeed, may oft complain
For Nature's sad reality,
And tell the suffering heart, how vain
Its cherished dreams must always be;
And Truth may rudely trample down
The flowers of Fancy, newly-blown:

But, thou art ever there, to bring
The hovering vision back, and breathe
New glories o'er the blighted spring,
And call a lovelier Life from Death,
And whisper, with a voice divine,
Of real worlds, as bright as thine.

I trust not to thy phantom bliss,
Yet, still, in evening's quiet hour,
With never-failing thankfulness,
I welcome thee, Benignant Power;
Sure solacer of human cares,
And sweeter hope, when hope despairs!


Emily Brontë

Strip-Tease



1.

a ninguém ofereço meu vinho branco
não empresto minhas roupas mais caras e são só meus os meus segredos

2.

era uma vez um gato chinês
que me chamou para comer um frango
xadrez
no boteco onde ele era freguês

e eu, como gata vadia
topei porque sempre podia
e fiz dele meu prato do dia

3.

aquele monstro que você pensou que era
um bobo covarde que só fala besteira,
vive dizendo que mata, estrangula, devora
mas quando muito enforca umas
segundas-feiras

4.

sou uma mulher madura
que às vezes anda de balanço

sou uma criança insegura
que às vezes usa salto alto

sou uma mulher que balança
Sou uma criança que atura

5.

eu penso conforme o tempo
eu danço conforme o passo
eu passo conforme o espaço
eu amo conforme a fome
eu como conforme a cama
eu sinto conforme o mundo

mas no fundo
eu não me contorno

6.

você
não sente a minha falta

e eu
sem ti

7.

nanci num dia diana
a ana me ama, me norma, me helena
serena, me ensinou a ver a verdade, vera
que dói menos que uma ilusão fausta
de tarde eu tenho tereza
e vivo uma magda magia
alegria, maria, calor de suor
de se ficar eduarda

quem dera denise
eu poder ser suzana
e ler lia muitas laudas
lauras

olga tem lindos olhos
olhe
e luiza tem luz
e alice tem paz

na cara karin eu quero
uma risada rosaura
um sono soninha de outrora
isadora, que namora isabel
neca de amor, ane versando a razão
coração, corália de canções
a musa musical de soraia
a saia de zélia
acabo de lena notícia letícia
caio de katia no chão
choro, clara
tetê temia meus medos

tenho medo da morte
tenho medo do mar
tenho medo de amar
tenho medo de marta

  
8.

quero um homem quente
que me queira beijar fundo e único
que me queira cheirar
mundo e tímido

9.

envelhecer, quem sabe
não seja assim tão desastroso
me interessa perder esta ansiedade
me atrai ser atraente mais tarde
um pouco mais de idade, que importa
envelhecer, quem sabe
não seja assim tão só

10.

eu mesma
não passo de uma pessoa apenas
e apenas quero ser uma pessoa sensata
mesmo com as trapaças das outras pessoas
ora,
eu mesma
me passo pra trás

11.

quanto mais escrava
mais escrevo
pra libertar essa mulher da vida
que me habita

12.

era uma vez uma foto em preto e branco
em que eu me via fumando um charo
com o olho vidrado em você
minhas mãos tinham algo de estátua
mas a cabeça vibrava que eu via

a boca entreaberta pedia
um beijo pra me tatuar



13.

descubro meus vícios assim
cheguei na cabana e pensei
sem têvê eu não fico
sem você eu não vivo

14.

bem que me avisaram
ficarás sozinha e mal falada
dolorida e abandonada
à mercê dos tubarões

mas não pude resistir
foi mais forte os calafrios
agora a ver navios
nunca mais os garanhões

15.
ele era gago, vesgo e mancava de uma perna
e daí? era gostoso, inteligente e tinha uma
boca linda
sabia dizer coisas belas em horas estranhas
e chorava quando se sentia completamente
feliz


16.

gravei tua voz no meu tímpano
vez em quando labirinto
faço que sinto, vez em quando minto
vinho tinto, amor rosé
você
vez em quando instinto

17.

a força de um ato
dura o tempo exato
para ser compreendida

depois disso é bobagem
vira longa-metragem
por acaso estendida

fora o essencial
nada mais é natural
vira apenas suporte

pena a vida não ter corte



Martha Medeiros
Strip-Tease

Maravilhoso mundo animal








A cobra-gato-verde ('Boiga cyanea')

A cobra-papagaio ('Corallus caninus') é uma serpente amazônica de habitos noturnos, considerada um dos mais exuberantes ofídios.

A mariposa Cecropia ('Hyalophora cecropia' )

Aranha ('Pisaura mirabilis') cuidando da sua ninhada!


Aranha-caranguejo da família Thomisidae

sapinhos

Filhote de foca

Em época de reprodução os machos de 'Hoplobatrachus tigerinus' se tornam amarelos com o saco vocal azul.. A fêmeas continuam na cor marrom-esverdadeado! Esta espécie ocorre na Índia.


fonte: http://diariodebiologia.com/

sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

Palavras Desacreditadas

Art by Basu Kshitiz



Fora com as palavras otimismo e pessimismo, gastas até o enfado! Pois, de dia para dia, falta mais a razão para as empregar: atualmente, só os tagarelas é que ainda precisam delas tão inevitavelmente. Pois por que diabo haveria alguém de querer ser otimista, se não tiver que defender um Deus, que, no caso de ser ele próprio o Bem e a Perfeição, há de ter criado o melhor dos mundos?... Mas qual é o ser pensante que ainda precisa da hipótese de um Deus? Também falta, porém qualquer motivo para uma profissão de fé pessimista, se não se tiver interesse em vir a ser desagradável para os advogados de Deus, os teólogos ou os filósofos teologizantes, e formular vigorosamente a contra-afirmação que o Mal reina, que o desprazer é maior que o prazer, que o mundo é uma obra malfeita, a manifestação de uma má vontade para com a vida. Mas quem, agora, se preocupa ainda com os teólogos.... exceto os teólogos: Abstraindo de toda a teologia e da luta contra esta, é evidente que o mundo não é bom nem mal, ainda menos o melhor ou o pior, e que estes conceitos de “bom” e “mau” só têm sentido em relação a pessoas, e até, da maneira como são habitualmente empregados, talvez mesmo neste caso não se justifiquem: de qualquer modo, temos de nos libertar da concepção do mundo injuriosa ou enaltecedora.


 Friedrisch Nietzsche, 
Humano, demasiado humano -  Af. 28

  Tudo que está vivo precisa morrer para então renascer. Acho que cheguei a este ponto, o ponto de que para continuar vivendo eu preciso morrer. Morrer e escolher o que deve continuar morto, podendo assim renascer e escolher os próximos passos. Mas se deixar morrer não é assim tão simples, porque para isto preciso olhar para dentro de mim e encarar tudo que não gosto, tudo aquilo que me faz mal, toda aquela coisa cotidiana que no fundo eu uso para justificar o meu “não fazer”. Eu preciso achar a minha verdade.

Cheguei àquele ponto que não posso mais fingir que a porta não está diante do meu nariz, o anseio de me libertar é maior, então eu preciso abri-la, preciso deixar de lado toda a ingenuidade que eu finjo não ter, toda imaturidade, e preciso atravessar  e ver que não podemos maquiar as coisas para que nos pareçam menos terríveis e mais ajustadas.

Pode ser que não existam respostas corretas, mas com certeza existem as perguntas certas! E esta é aquela que se faz impossível não ver a realidade da vida (da sua) escancarada. O que eu sei de mim que preferia não saber? O que tem atrás da porta? O que de mim preciso deixar morrer e o que preciso resgatar?

Como eu disse, não tenho a resposta (ainda) e isto não importa, o importante é que, enfim, eu estou a atravessar a minha porta. Posso não saber o caminho que farei, mas saber onde quero chegar já é metade do caminho.

É impossível esperar que alguém me compreenda sem antes eu me compreender. Sinto que vai ser uma viagem e tanto!"


Clarissa  Pinkola Estés 
Mulheres que correm com os lobos
Yuri B



Enquanto quis Fortuna que tivesse
Esperança de algum contentamento,
O gosto de um suave pensamento
Me fez que seus versos escrevesse.

Porém, temendo Amor que aviso desse
Minha escritura a algum juízo isento,
Escureceu-me o engenho co tormento,
Para que seus enganos não dissesse.

Ó vós que Amor obriga a ser sujeitos
A diversas vontades! Quando lerdes
Num breve livro casos tão diversos,

Verdades puras são, e não defeitos...
E sabei que, segundo o amor tiverdes,
Tereis o entendimento de meus versos!


Luís de Camões

Consolo na Praia

 Oleksiy Maksymenko


Vamos, não chores.
A infância está perdida.
A mocidade está perdida.
Mas a vida não se perdeu.
O primeiro amor passou.
O segundo amor passou.
O terceiro amor passou.
Mas o coração continua.
Perdeste o melhor amigo.
Não tentaste qualquer viagem.
Não possuis carro, navio, terra.
Mas tens um cão.
Algumas palavras duras,
em voz mansa, te golpearam.
Nunca, nunca cicatrizam.
Mas, e o humor?
A injustiça não se resolve.
À sombra do mundo errado
murmuraste um protesto tímido.
Mas virão outros.

Tudo somado, devias
precipitar-te – de vez – nas águas.
Estás nu na areia, no vento…
Dorme, meu filho.


Carlos Drummond de Andrade

quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

Via Espessa



I

De cigarras e pedras, querem nascer palavras.
Mas o poeta mora
A sós num corredor de luas, uma casa de águas.
De mapas-múndi, de atalhos, querem nascer viagens.
Mas o poeta habita
O campo de estalagens de loucura.

Da carne de mulheres, querem nascer os homens.
E o poeta preexiste, entre a luz e o sem-nome.



II

Se te pertenço, separo-me de mim.
Perco meu passo nos caminhos de terra
E de Dionísio sigo a carne, a ebriedade.
Se te pertenço perco a luz e o nome
E a nitidez do olhar de todos os começos:
O que me parecia um desenho no eterno
Se te pertenço é um acorde ilusório no silêncio.

E por isso, por perder o mundo
Separo-me de mim. Pelo Absurdo.



III

Olhando o meu passeio
Há um louco sobre o muro
Balançando os pés.
Mostra-me o peito estufado de pelos
E tem entre entre as coxas um lixo de papéis:
- Procura Deus, senhora? Procura Deus?

E simétrico de zelos, balouçante
Dobra-te num salto desnuda o traseiro.



IV

O louco estendeu-se sobre a ponte
E atravessou o instante.
Estendi-me ao lado da loucura
Porque quis ouvir o vermelho do bronze

E passar a língua sobre a tintura espessa
De um açoite.

Um louco permitiu que eu juntasse a sua luz
À minha dura noite.



V

O louco (a minha sombra) escancarou a boca: 
_ O que restou de nós decifrado nos sonhos
Os arrozais, teu nome, tardes, juncos
Tuas ruas que no meu caminho percorri
Ai, sim, me lembro de um sentir de adornos

Mas há uma luz sem nome que me queima
E das coisas criadas me esqueci.



VI

O louco saltimbanco
Atravessa a estrada de terra
Da minha rua, e grita à minha porta:
- Ó senhora Samsara, ó senhora 
- Pergunto-lhe por que me faz a mim tão perseguida
Se essa de nome esdrúxulo aqui não mora.

- Pois aquilo que caminha em círculos
É Samsara, senhora 
- E recheado de risos, murmura uns indizíveis
Colado ao meu ouvido.



VII

Devo voltar à luz que me pensou
De poeira e começos?
Devo voltar ao barro e às mãos de vidro
Que fragilizadas me pensaram?
Devo pensar o louco (a minha sombra)
À luz das emboscadas?
Ai girassóis sobre a mesa de águas.

- Estetizante - disse-me o louco
Grudado à minha poética omoplata

- Os girassóis? Ah, Samsara, teu esquecido sol.
Uma mesa de águas? Que volúpia, que máscara
E que ambíguo deleite
Para a voracidade de tua alma.



VIII

Eram águas castanhas as que eu via.
Caras de palha e corda nas barcaças brancas.
Velas de linhos novos, luzidios
Mas resíduos. Sobras.

Colou-se minha sombra às minhas costas:
- Que bagagem, senhora.
O Nada navegando à tua porta.



IX

O louco se fechou ao riso
Se torceu convulso de fingida agonia
E como se lançasse flores à cova de um morto
Atirou-me os guizos.
Por quê? perguntei adusta e ressentida.

- Ó senhora, porque mora na morte
Aquele que procura Deus na austeridade.



X

- É o olho copioso de Deus. É o olho cego
De quem quer ver. Vês? De tão aberto
Queimado de amarelo 
- Assim me disse o louco (esguio e loiro)
Olhando o girassol que nasceu no meu teto.



XI

De canoas verdes de amargas oliveiras
De rios pastosos de cascalho e poeira
De tudo isso meu cantochão e ervas negras.
Grita-me o louco:
- De amoras. De tintas rubras do instante
É que se tinge a vida. De embriaguez, Samsara.

E atravessou no riso a tarde fulva.



XII

Temendo desde agosto o fogo e o vento
Caminho junto às cercas, cuidadosa 
Na tarde de queimadas, tarde cega.
Há um velho mourão enegrecido de queimadas antigas.
E ali reencontro o louco:
- Temendo os teus limites, Samsara esvaecida?
Por que não deixas o fogo onividente
Lamber o corpo e a escrita? E por que não arder 
Casando o Onisciente à tua vida?



XIII

- Querer voar, Samsara? Queres trocar o moroso das pernas
Pela magia das penas e planar coruscante
Acima da demência? Porque te vejo às tardes desejosa
De ser uma das aves retardatárias do pomar.
Aquela ali talvez, rumo ao poente.

Pois pode ser, lhe disse. Santos e lobos
Devem ter tido o meu mesmo pensar. Olhos no céu
Orando, uivando aos corvos.

Então aproximou-se rente ao meu pescoço:
- Esquece texto e sabença: as cadeias do gozo.
E labaredas do intenso te farão o voo.



XIV

Telhas, calhas
Cordas de luz que se fizeram palavra
Alguém sonha a carne da minha alma.

Ecos, poço
O esquecimento perseguindo um corpo
Aqui me tens entre a vigília e o encanto

Cativa da loucura
Perseguindo o louco.



XV

Eram azuis as paredes do prostíbulo
Ela estendeu-se nua entre os arcos da sala
E matou-se devassada de ternura.
“Que azul insuportável”, antes gritou.
“Como se adulta um berço me habitasse”

Foi esta a canção de Natal cantada pelo louco
Quando me deu a Hilde: a porca que levava sobre o dorso.



XVI

- Não percebes, Samsara, que Aquele que se esconde
E que tu sonhas homem, quer ouvir teu grito?
Que há uma luz que nasce da blasfêmia
E amortece na pena? Que é o cinza a cor do teu queixume
E o grito tem a cor do sangue Daquele que se esconde?

Vive o carmim, Samsara. A ferida.
E terás um vestígio do Homem na tua estrada.



XVII

Minha sombra à minha frente desdobrada
Sombra de sua própria sombra? Sim. Em sonhos via.
Prateado de guizos
O louco sussurava um refrão erudito:
- Ipseidade, Samsara. Ipseidade, senhora. 

- E enfeixando energia, cintilando
Fez de nós dois um único indivíduo.



Hilda Hilst
Pinturas: Arthur Braginsky