sábado, 26 de dezembro de 2015

The Secret of the Sea



Ah! what pleasant visions haunt me
  As I gaze upon the sea!
All the old romantic legends,
  All my dreams, come back to me. 

Sails of silk and ropes of sandal,
  Such as gleam in ancient lore;
And the singing of the sailors,
  And the answer from the shore! 

Most of all, the Spanish ballad
  Haunts me oft, and tarries long,
Of the noble Count Arnaldos
  And the sailor's mystic song. 

Like the long waves on a sea-beach,
  Where the sand as silver shines,
With a soft, monotonous cadence,
  Flow its unrhymed lyric lines;-- 

Telling how the Count Arnaldos,
  With his hawk upon his hand,
Saw a fair and stately galley,
  Steering onward to the land;-- 

How he heard the ancient helmsman
  Chant a song so wild and clear,
That the sailing sea-bird slowly
  Poised upon the mast to hear, 

Till his soul was full of longing,
  And he cried, with impulse strong,--
"Helmsman! for the love of heaven,
  Teach me, too, that wondrous song!" 

"Wouldst thou,"--so the helmsman answered,
  "Learn the secret of the sea?
Only those who brave its dangers
  Comprehend its mystery!" 

In each sail that skims the horizon,
  In each landward-blowing breeze,
I behold that stately galley,
  Hear those mournful melodies; 

Till my soul is full of longing
  For the secret of the sea,
And the heart of the great ocean
  Sends a thrilling pulse through me.


Henry Wadsworth Longfellow


En secreto, con voz de confesar lo más importante de mi vida, le dije que la lluvia me da miedo.

Alejandra Pizarnik

A umas saudades



Parti, coração, parti,
navegai sem vos deter,
ide-vos, minhas saudades
a meu amor socorrer.
Em o mar do meu tormento
em que padecer me vejo
já que amante me desejo
navegue o meu pensamento:
meus suspiros, formai vento,
com que me façais ir ter
onde me apeteço ver;
e diga minha alma assim:
Parti, coração, parti,
navegai sem vos deter.
Ide donde meu amor
apesar desta distância
não há perdido constância
nem demitido o rigor:
antes é tão superior
que a si se quer exceder,
e se não desfalecer
em tantas adversidades,
Ide-vos minhas saudades
a meu amor socorrer.

Gregório de Matos. "Seleção de Obras Poéticas".



foram-se os olhos, não o corpo.
a alma, tampouco, se afastou.
só a tola necessidade de distância,
a querer fingir que é longe
o que tão perto vive.

levarei na pele o entalhe que deixaste.
pagarei na pele o que te deixo.

mas antes que partamos, um lembrete:
se ouvires meu riso, não te esqueças
: são lágrimas sorrindo em falsete,
o timbre derradeiro que mereço.

o que eu sou nem mais me lembro.
de ti jamais me esqueço.

Antoniel Campos

O Vento na Ilha



O vento é um cavalo
Ouça como ele corre
Pelo mar, pelo céu.
Quer me levar: escuta
como recorre ao mundo
para me levar para longe.

Me esconde em teus braços
por somente esta noite,
enquanto a chuva rompe
contra o mar e a terra
sua boca inumerável.

Escuta como o vento
me chama calopando
para me levar para longe.

Com tua frente a minha frente,
com tua boca em minha boca,
atados nossos corpos
ao amor que nos queima,
deixa que o vento passe
sem que possa me levar.

Deixa que o vento corra
coroado de espuma,
que me chame e me busque
galopando na sombra,
entretanto eu, emergido
debaixo teus grandes olhos,
por somente esta noite
descansarei, amor meu.

Pablo Neruda

Pieter Wagemans

Amor – poesia que não tem rima, nem estrofe – talvez o poema mais curto e mais longo do mundo. Palavra mais leve e mais densa, uma certeza incerta, um doce que por vezes é amargo. Amor é verbo forte. Amor é par. Amor é ímpar. É companhia e é solidão. Parem de ficar classificando, julgando, evitando. Percebam. Amor é verbo conjugado no ‘sentir’.

Cristina Sousa

A solidão




Ora, a solidão, ainda vai ter de aprender muito para saber o que isso é, Sempre vivi só, Também eu, mas a solidão não é viver só, a solidão é não sermos capazes de fazer companhia a alguém ou a alguma coisa que está dentro de nós, a solidão não é uma árvore no meio duma planície onde só ela esteja, é a distância entre a seiva profunda e a casca, entre a folha e a raiz, Você está a tresvariar, tudo quanto menciona está ligado entre si, aí não há nenhuma solidão, Deixemos a árvore, olhe para dentro de si e veja a solidão, Como disse o outro, solitário andar por entre a gente, Pior do que isso, solitário estar onde nem nós próprios estamos.

José Saramago, in 'O Ano da Morte de Ricardo Reis'



Tudo me é uma dança em que procuro
A posição ideal,
Seguindo o fio dum sonhar obscuro
Onde invento o real.
À minha volta sinto naufragar
Tantos gestos perdidos
Mas a alma, dispersa nos sentidos,
Sobe os degraus do ar…

Sophia de Mello Breyner Andresen, in Poesia

O teu sorriso


Brenda Marshall

E se o céu fosse só isto…?

As nuvens dos teus lábios
O infindável azul da tua boca…

e eu feito ave louca
a sobrevoar-te num beijo
a embebedar-me de desejo
a morar no teu sorriso…

Ai, se o céu fosse só isto
e nada mais fosse preciso!


João Morgado in Rio de Doze águas

Carolina Serpa Marques 

"A vida sem a música é simplesmente um erro, uma tarefa cansativa, um exílio."

Friedrich Nietzsche, em "Cartas a Peter Gast", Nice, 15 de janeiro de 1888


Amanhã, ou enquanto dormes
- agora mesmo -, vou pensar em ti.
Intensamente: até que as horas me doam sobre a pele,
e o movimento dos dias passe como aves
que perdem o sentido do voo - até que tudo
o que me rodeia tome a forma do teu corpo.
E em mim circules - quando estendo a mão
por dentro da noite e te acordo,
no fogo dos meus olhos.

Al Berto

Os filhos da época



Somos os filhos da época,
e a época é política.

Todas as coisas - minhas, tuas, nossas,
coisas de cada dia, de cada noite
são coisas políticas.

Queiras ou não queiras,
teus genes têm um passado político,
tua pele, um matiz político,
teus olhos, um brilho político.

O que dizes tem ressonância,
o que calas tem peso
de uma forma ou outra - político.

Mesmo caminhando contra o vento
dos passos políticos
sobre solo político.

Poemas apolíticos também são políticos,
e lá em cima a lua já não dá luar.
Ser ou não ser: eis a questão.

Oh, querida que questão mal parida.
A questão política.
Não precisas nem ser gente
para teres importância política.

Basta ser petróleo, ração,
qualquer derivado, ou até
uma mesa de conferência cuja forma
vem sendo discutida meses a fio.

Enquanto isso, os homens se matam,
os animais são massacrados,
as casas queimadas,
os campos se tornam agrestes
como nas épocas passadas
e menos políticas.

Wisława Szymborska

Homo infimus

fabian perez


"Homem, carne sem luz, criatura cega,
Realidade geográfica infeliz,
O Universo calado te renega
E a tua própria boca te maldiz!

O nôumeno e o fenômeno, o alfa e o omega
Amarguram-te. Hebdômadas hostis
Passam... Teu coração se desagrega,
Sangram-te os olhos, e, entretanto, ris!

Fruto injustificável dentre os frutos,
Montão de estercorária argila preta,
Excrescência de terra singular.

Deixa a tua alegria aos seres brutos,
Porque, na superfície do planeta,
Tu só tens um direito: — o de chorar!"

Augusto dos Anjos

segunda-feira, 30 de novembro de 2015

Francesca Strino


Era um dia qualquer para se viver ou para morrer... Posicionou-se na beira do precipício e lançou-se, sem medo! Mergulhou para dentro do próprio abismo sem paraquedas ou salva-vidas e renasceu! Já não caía, mas levitava! Já não era mais um corpo à deriva cercado por tubarões. Era a própria bússola de sua alma a conduzir a vida para outras nascentes e novas manhãs.

Adeilton Lima
2

Arthur Braginsky


No avesso das palavras
na contrária face
da minha solidão
eu te amei
e acariciei
o teu impercetível crescer
como carne da lua
nos noturnos lábios entreabertos
E amei-te sem saberes
amei-te sem o saber
amando de te procurar
amando de te inventar

No contorno do fogo
desenhei o teu rosto
e para te reconhecer
mudei de corpo
troquei de noites
juntei crepúsculo e alvorada

Para me acostumar
à tua intermitente ausência
ensinei às timbilas
a espera do silêncio


Mia Couto

Distância

Alex Alemany


Entro no teu quarto como se
entrasse no mar. Um temporal de perguntas
enrola os teus cabelos. Lanças-te
contra as ondas de um sonho antigo,
e abres a porta da varanda
para te sentares à cadeira
do oriente, apanhando o vento
da tarde. "Não te levantes, digo,
e deixe que os teus olhos se libertem
de sombra, depois de uma noite
de amor, para me abrigarem
da luz estéril da madrugada". Mudas
de posição, como se me tivesses
ouvido; e o teu corpo enche-se
de palavras, como se fosses
a taça da estrofe.

Nuno Júdice 

Personagem

emile vernon

Teu nome é quase indiferente
e nem teu rosto mais me inquieta.
A arte de amar é exatamente
a de se ser poeta.

Para pensar em ti, me basta
o próprio amor que por ti sinto:
és a ideia, serena e casta,
nutrida do enigma do instinto.

O lugar da tua presença
é um deserto, entre variedades:
mas nesse deserto é que pensa
o olhar de todas as saudades.

Meus sonhos viajam rumos tristes
e, no seu profundo universo,
tu, sem forma e sem nome, existes,
silêncio, obscuro, disperso.

Teu corpo, e teu rosto, e teu nome,
teu coração, tua existência,
tudo – o espaço evita e consome:
e eu só conheço a tua ausência.

Eu só conheço o que não vejo.
E, nesse abismo do meu sonho,
alheia a todo outro desejo,
me decomponho e recomponho.

Cecília Meireles

Maturescente

Jeremy Lipking detail


Vieste, após ser tantas, enfim, ser tu somente. 
E me presenteaste, assim, tão de surpresa, 
que eu não percebi 
tu sempre em mim presente. 

(Nem sequer eu poderia.) 

Chegaste em minha vida 
quando eu pouco a possuía, 
e tu adolescias 
e eu adolescendo, 
e éramos, nós dois, em tantos eus, 
que nos víamos em muitos, 
mas quase nunca em nós. 

(E me surges, assim, tão de repente, 
assim, tão diferente.) 

Foste, sempre, a única de mim 
e eu de ti apenas, 
mas como se não fôssemos de nós, 
dois elos que unidos se deixaram 
e pouco se tocaram. 

(E me tomas, assim, tão entranhada, 
assim, amalgamada.) 

Tu sempre me amaste e pouco me disseste, 
pois amor também precisa ser falado, 
mormente quando início, 
nos mínimos indícios, 
em tudo registrado. 

(E hoje, que me amas, assim, tudo te atesta, 
calada e, assim mesmo, manifesta.) 

Nos primeiros dias, noites, madrugadas, 
teu corpo era teu verbo. 
E tu te retorcias. 
E tu te insinuavas. 
E eu, senhor de ti, me comprazia 
e te retribuía 
nas vezes que te amava. 

(E me vens, assim, o amor em cada gesto, 
e eu te amando, assim, em todo e resto.) 

Ai, que só nos bastam um e outro... 
Um no outro, um no um, unos, completos. 

Cuidavas do teu rosto e com tal zelo, 
que te ver além do rosto eu não podia 
- melhor, eu não sabia - , 
e hoje não te aflige mais a ruga. 
Antes, vens a mim 
e rindo, diz-me: veja... 
É a deixa que me dás e não recuso. 
Adivinhando o beijo, 
sou dono do teu queixo: 
Colhendo as tuas mãos que te pintavam, 
hoje as minhas te maquiam, 
somente pelo toque adstringente 
e a língua que passeia, umectante. 

Te sei e tu te sabes mais encanto. 
Te sinto e tu te sentes mais amante. 

E hoje, meu amor, que tu me tens 
no tanto em que nunca me tiveste, 
pois só te dei o macho que eu era, 
e hoje dou-te o homem em que me acho, 
não chamarei de loba, 
nem te direi por fêmea, 
tampouco de fatal, 
mas, decerto, por teu nome 
- teu nome e mulher minha - , 
e tu a mim chamando 
ao nome e de teu homem. 
(Te amo muito mais do que te amara 
- Se é que o amor a si mesmo supera - , 
Te amo de amar tanto, que esperara 
Que todo o amar possível eu já tivera.) 

E me vens, assim, plena, completa, 
sem chances de eu te amar pela metade, 
porque tudo me chama 

                                          toma 
                             rapta 
                                          cala 
                         e clama 

e arde mais a chama 
do que a cama em que ardias, 
e tu, plena, completa, 
tanto em mim e eu não te via... 

Agora tudo em mim te ama em tudo. 

E amo-te nas coxas, nos cabelos, nos teus peitos. 
E amo-te na alma, nos teus risos, nos teus ais. 

Nos feitos, nos defeitos, 
porque em tudo estás.


Antoniel Campos

Força

Edmund Blair Leighton


Desmancha o nó,
tira a ferrugem.
espana o pó.
Empurra o pesado,
cola o quebrado,
cerze o rompido,
coça a coceira,
gruda o trincado,
pensa o ardido
e faz brincadeira do verso chorado,
que a vida é rendeira
de sedas ou trapos,
de rendas, farrapos
ou fios de algodão;
que a fibra é comprida e o mundo, artesão.


Flora Figueiredo

O Espelho

francine van hove


O espelho reflete certo; não erra porque não pensa.
Pensar é essencialmente errar.
Errar é essencialmente estar cego e surdo.


Alberto Caeiro (heterônimo de Fernando Pessoa), in "Poemas Inconjuntos".

Dorina Costras

Vem pra cá cavalo doido
que eu vou te beber todo
atravessa esse meu fogo
de cabeça
Que cresça a tua vontade
que seja feita a tua vaidade
nessa terra de homens e mistério.
te quero
na relva molhada
me quero ver derrubada
me transpassa
a arco e flecha
lança e mordaça.
Te fecha o trinco
Te tranca
barra a passagem. Espanta
a última solidão que te ameaça
– que o ritual comece –
(ah se eu fosse se eu pudesse)
que esse tal de amor se faça.
Vem pra cá cavalo doido
que eu vou te fazer a festa
que eu vou conhecer a tua raça
Cigano. Mestiço.
Teu pulso arisco
o risco do teu jugo
o perigo de tua caça
eu arrisco.
Me faça que eu fico contigo
me cobre no dia da graça


Bruna Lombardi

Sorriso audível das folhas

Christian Schloe


Sorriso audível das folhas,
Não és mais que a brisa ali.
Se eu te olho e tu me olhas,
Quem primeiro é que sorri?
O primeiro a sorrir ri.

Ri, e olha de repente,
Para fins de não olhar,
Para onde nas folhas sente
O som do vento passar.
Tudo é vento e disfarçar.

Mas o olhar, de estar olhando
Onde não olha, voltou;
E estamos os dois falando
O que se não conversou.
Isto acaba ou começou?

Fernando Pessoa

domingo, 1 de novembro de 2015

vinho


A taça foi brilhante e rara,
mas o vinho de que bebi
com os meus olhos postos em ti,
era de total amargura.

Desde essa hora antiga e preclara,
insensivelmente desci
e em meu pensamento senti
o desgosto de ser criatura.

Eu sou de essência etérea e clara:
no entanto, desde que te vi,
como que desapareci...
Rondo triste à minha procura.

A taça foi brilhante e rara;
mas, com certeza enlouqueci.
E desse vinho que bebi
se originou minha loucura.


Cecília Meireles
Viagem, 1938



Mariska Karto


Moro no ventre da noite:
sou a jamais nascida.
E a cada instante aguardo vida.

As estrelas, mais o negrume
são minhas faixas tutelares,
e as areias e o sal dos mares.

Ser tão completa e estar tão longe!
Sem nome e sem família cresço,
e sem rosto me reconheço.

Profunda é a noite onde moro.
Dá no que tanto se procura.

Mas intransitável, e escura.

Estarei um tempo divino
como árvore em quieta semente,
dobrada na noite, e dormente.

Até que de algum lado venha
a anunciação do meu segredo
desentranhar-me deste enredo,

Arrancar-me á vagueza imensa,
consolar-me deste abandono,
mudar-me a posição do sono.

Ah, causador dos meus olhos,
que paisagem cria ou pensa
para mim, a noite densa?


Cecília Meireles
In Mar absoluto e Outros Poemas
 maria kreyn


Tudo é vaidade neste mundo vão...
Tudo é tristeza; tudo é pó, é nada!
E mal desponta em nós a madrugada,
Vem logo a noite encher o coração!

Até o amor nos mente, essa canção
Que o nosso peito ri à gargalhada,
Flor que é nascida e logo desfolhada,
Pétalas que se pisam pelo chão!...

Beijos d'amor! Pra quê?!... Tristes vaidades!
Sonhos que logo são realidades,
Que nos deixam a alma como morta!

Só acredita neles quem é louca!
Beijos d'amor que vão de boca em boca,
Como pobres que vão de porta em porta!...

Florbela Espanca

Resssaca

Mark Eliot Lovett.

Meio escondida atrás do quiosque fechado, a mulher espiou. Para além da murada, o mar, de um verde-acinzentado, estava quase inofensivo. É verdade que engolira a areia do Leblon, ou pelo menos boa parte dela. Verdade também que sua borda de espuma era excepcionalmente larga, rendada de vagas de um tamanho fora do comum, que se chocavam umas com as outras. Mas dali, do alto do mirante, sua fúria era estática, como numa fotografia. E por um instante – um instante, apenas – a paisagem parecia serenada.
A mulher deu alguns passos à frente, quase debruçando-se na fita amarela que impedia a passagem para o deque de madeira, cuja estrutura vinha sendo abalada pelas ondas. E pôs-se na ponta dos pés, tentando espiar as pedras lá embaixo. O vento frio ainda lhe cortava o rosto, como quando ela saíra do carro, mas também parecia amainado.
Ergueu os olhos, voltando a admirar a paisagem. A bruma formada pelas gotículas de água salgada envolvia os prédios e os morros, formando um mundo de cores esmaecidas, adoentadas. E o instante de refluxo, em que o mar parecia preparar-se em silêncio para uma nova investida, continuava – hipnotizando-a. Era como estar no olho do furacão, sabendo que a qualquer momento a fúria voltaria. Ainda pior.
E voltou.
Ela não sentiu a onda chegar. Nem sequer uma trepidação. Foi algo surpreendente, inexplicável. Era cedo, ainda, e a mulher estava só – não havia ninguém para gritar, dizer-lhe que corresse. Não, não houve qualquer aviso. Ou talvez tudo tenha acontecido rápido demais.
De repente, descendo do céu – como um raio ou um castigo – caiu sobre ela a massa d’água. Compacta e encorpada, envolveu-a de um só jato, molhando-a por inteiro, mas molhando-a de verdade, não respingos ou borrifos, mas uma água quase sólida, que a deixou instantaneamente ensopada, roupas, cabelos, toda ela, da cabeça aos pés.
Deu um grito. Encolheu os ombros, ergueu os braços, tentou defender-se tardiamente daquela água que bateu nela como chicotada. Por um segundo, mal compreendendo o que se passava, ficou no mesmo lugar, os pés presos ao chão, sentindo que até mesmo suas meias, dentro do tênis, estavam molhadas de torcer.
Somente quando em um passo atrás, baixando a vista e olhando-se, foi que pareceu despertar. E caiu na risada. Uma risada sonora, desabrida, que preencheu o mirante vazio, rivalizando com o rugido do mar. Uma risada de alívio, uma explosão.
Aquela pancada a fizera sentir-se viva outra vez. A beleza das ondas corria em suas veias e seu corpo fora ungido pela força da natureza.
Não queria mais pensar na morte.

Heloísa Seixas

Fronteira

Konstantin Razumov 


Sou capaz de fazer florescer
quantas flores você desejar
e lhe dar uma a toda hora,
a cada dia,
o ano inteiro.
A reflora é permanente,
desde que você não tente avançar.
Evite pisar no meu canteiro.


Flora Figueiredo 
em Amor a céu aberto

O bem que nos queremos

Jon Boe Paulsen.


O bem que nos queremos 
se aninha entre as paredes dessa casa 
há muito tempo nos observa 
nos vê chegar, sair 
fazer malas, promessas 
adiar coisas, amontoar 
existir levianos como sempre 
e engraçados 
e já com uma história 
e já com outra cara. 
Já nos conhece tão intimamente 
sabe do humor com que acordamos 
do amor com que nos maltratamos 
cada ranhura e cada 
pequenina estrela. 
E a cada duvidar e a 
cada angústia 
o bem que nos queremos 
permanece. 
Mudam as estações, os desejos, as fases da lua 
mudamos nós 
o bem que nos queremos continua. 


Bruna Lombardi
In O Perigo do Dragão, 1984 
Eleanor, Countess of Lauderdale


Eu tenho ideias e razões, 
Conheço a cor dos argumentos 
E nunca chego aos corações.  

Fernando Pessoa, 1932  
Obras Poeticas

Feminino


Edouard Bisson (1856-1936) - Les fleurs du matin, 1903


São as ninfas
são as musas
as mulheres com o seu riso

As Dríades e as Nereides
Crineias nas suas fontes
e as mulheres despertando

Dentro do próprio sumiço

São as deusas, as sereias
enfeitiçando o cantar
as mulheres tecendo as teias

Penélope Euterpe Eurídice
de meiga pele ambarina
as mulheres correndo em busca

Na sua pressa felina

São sibilas, amazonas
profetisas, feiticeiras
as mulheres querendo voar

Com os espíritos femininos
valquírias de espada honrosa
de mulheres ousando o risco

Com alegria nervosa

São sílfides com voz de vento
são as ondinas nadando
seguindo a rota dos rios

As salamandras ardendo
de si mesmas sequiosas
Morgana com os seus filtros

De invenção harmoniosa

São adivinhas da água
sufragistas, feministas
na haste do pensamento

Renascendo com vagares
à sombra da própria seda
na chama rubra da tenda

São as mulheres do meu tempo

Mudando a eternidade
e a vida em seu sustento
sem jamais cicatrizarem

Os séculos de esquecimento



Maria Teresa Horta
In «Poemas do Brasil», 2009, Editora Brasiliense, S. Paulo 

Fogo e água

 Christian Schloe

Cansa-me ser quem serei
Porque em tudo esse outro
Se parece com o que sou.
Cansa-me o adeus de quem nasce. 
E a viagem, à nascença, morre de fadiga.

Só a tua lava me lava.
Resto eu em ti
Terra ardendo,
Chão de água e fogo

Abraça-me.
Abrasa-me.


Mia Couto

X - O guardador de rebanhos




«Olá, guardador de rebanhos,
Aí à beira da estrada,
Que te diz o vento que passa ?»
«Que é, vento, e que passa,
E que já passou antes,
E que passará depois.
E a ti o que te diz ?»
«Muita cousa mais do que isso.
Fala-me de muitas outras cousas.
De memórias e de saudades
E de cousas que nunca foram.»
«Nunca ouviste passar o vento.
O vento só fala do vento.
O que lhe ouviste foi mentira,
E a mentira está em ti.»


Alberto Caeiro (heterônimo de Fernando Pessoa)
O guardador de rebanhos

[27] - Livro do desassossego

Francine Van Hove 

A literatura, que é a arte casada com o pensamento e a realização sem a mácula da realidade, parece-me ser o fim para que deveria tender todo o esforço humano, se fosse verdadeiramente humano, e não uma superfluidade do animal. Creio que dizer uma coisa é conservar-lhe a virtude e tirar-lhe o terror. Os campos são mais verdes no dizer-se do que no seu verdor. As flores, se forem descritas com frases que as definam no ar da imaginação, terão cores de uma permanência que a vida celular não permite.

Mover-se é viver, dizer-se é sobreviver. Não há nada de real na vida que o não seja porque se descreveu bem. Os críticos da casa pequena soem apontar que tal poema, longamente ritmado, não quer, afinal, dizer senão que o dia está bom. Mas dizer que o dia está bom é difícil, e o dia bom, ele mesmo, passa. Temos pois que conservar o dia bom em uma memória florida e prolixa, e assim constelar de novas flores ou de novos astros os campos ou os céus da exterioridade vazia e passageira.

Tudo é o que somos, e tudo será, para os que nos seguirem na diversidade do tempo, conforme nós intensamente o houvermos imaginado, isto é, o houvermos, com a imaginação metida no corpo, verdadeiramente sido. Não creio que a história seja mais, em seu grande panorama desbotado, que um decurso de interpretações, um consenso confuso de testemunhos distraídos.

O romancista é todos nós, e narramos quando vemos, porque ver é complexo como tudo.
Tenho neste momento tantos pensamentos fundamentais, tantas coisas verdadeiramente metafísicas que dizer, que me canso de repente, e decido não escrever mais, não pensar mais, mas deixar que a febre de dizer me dê sono, e eu faça festas com os olhos fechados, como a um gato, a tudo quanto poderia ter dito.

Bernardo Soares (Fernando Pessoa)
Livro do desassossego


fim do ensaio,
ausente o que é de mim. 
vá. 
me desfaça.

apague as marcas e o rastro de voltar.
silencie o sim, me diga não.

desculpe qualquer coisa
(mas sem perdão).

a mim, esse deserto que busquei.
a ti, o ver que o sonho se desfaz.

e só para doer, minha certeza:
te amar é vício que não deixo mais.


Antoniel Campos

quinta-feira, 17 de setembro de 2015

Como se Faz uma Declaração de Amor?



Mas então como se faz uma declaração de amor? Em papel selado, na presença de um advogado. Por que não? As piores declarações são as pífias e clandestinas, do gênero «Acho-te uma pessoa muito interessante». As melhores são aquelas que comprometem quem as faz, que se baseiam em provas capazes de serem apresentadas em tribunal, que fazem corar as testemunhas. As declarações do tipo «Experimentar-a-ver-se-dá» nunca dão. É melhor mandar imprimir 2000 folhetos e distribuí-los por avioneta à população, devidamente identificados, do que um bilhetinho anônimo de «um admirador». As declarações de amor têm de cortar a respiração de quem as recebe, têm de rebentar na cara de quem as lê. O amor e o terrorismo são questões de objetivo, e não de grau. 

Miguel Esteves Cardoso, in 'Os Meus Problemas'

Essa tal tristeza profunda que não passa...


Você pode não saber, mas você morreu. Morreu para aquela velha vida que já não pode ser vivida. Morreu porque já não pode mais encenar o seu papel de trouxa no palco do mundo. Morreu porque entendeu o porquê de tudo e compreendeu como funcionam as engrenagens que movem a vida das pessoas que te cercam.

Estraçalhado.

Você afundou em um oceano de dor e sofrimento. Cada passo dado foi como se tivesse caminhado com a água pelo joelho em direção a um turbulento abismo de incertezas e confusão. Na verdade tudo o que queria era entrar naquele trem velho que o levasse rumo ao fim da noite. Que pudesse sentir, finalmente, aquela sensação de que o término da tristeza estava próximo.

Você foi reduzido lentamente a nada. Sentiu-se zerado, fulminado, desacreditado, envergonhado de si próprio. É como se um maçarico de solda lhe queimasse com violência e você percebesse latejar até o ponto em que já não pudesse sentir mais nada, de tanta dor.

É como se quatro lanças lhe espetassem lentamente. Como se estivesse em vias de ser esquartejado. Como se cada braço e cada perna estivesse atado a um cavalo pronto para correr em disparada após um sinal. Esteve frente a frente com a iminência da dor, do fim.

Rolou na cama por noites. Ligou e desligou o celular. O dia mais ensolarado parecia o mais glacial dos invernos na estação da sua vida. Dançou uma dança triste. Sentiu o vento frio bater no rosto. Seus sonhos foram despedaçados e a sua esperança partida em duas.

As pessoas desapareceram, assim como as estrelas do céu. Você foi encoberto pela mais temível nebulosidade. Não ouviu ninguém falar nada, mas no fundo sabia que para eles você se converteu em uma enorme pedra, num grande peso insustentável.

Você chegou ao ponto de se sentir tão só que até mesmo as suas lágrimas lhe abandonaram. É como se o mundo tivesse lhe empurrado para baixo de um tapete de remorsos e sentimentos confusos.

Você sabe que o caminho para a luz é longo e talvez você sinta que não tem forças suficientes para sair desta penumbra. Durante tudo isso, um único pensamento que não cessa: quando essa noite eterna vai acabar?

Você resistiu bravamente. As vezes acordava pela manhã e não sentia a menor vontade de levantar da cama. É como se a noite não acabasse nunca.

Você pode não saber, mas você morreu.

Morreu para aquela velha vida que já não pode ser vivida. Morreu porque já não pode mais encenar o seu papel de trouxa no palco do mundo. Morreu porque entendeu o porquê de tudo, compreendeu como funcionam as engrenagens que movem a vida das pessoas que te cercam. A tristeza é o seu eu-superior que está em luto. Em luto pela falsidade, pelos sentimentos efêmeros, pela falta de amor próprio, pelo eu fugidio, pela dolorosa percepção de que as verdades nas quais acreditava simplesmente morreram e, suas lágrimas nada mais são do que a emoção incontida por alguém que vela um corpo sem vida.

E sabe o que vai acontecer agora? Você submergiu no mais profundo dos poços e não conseguirá cavar mais. Toda a força que resta é para subir. Vai demorar um pouco e não vai ser fácil. Mas você precisa encontrar a saída porque necessita respirar. Toda essa descida não foi nada menos que um doloroso entendimento que vai ser o responsável pelo seu renascimento.

Quando você chegar lá em cima, vai olhar para si próprio e vai perceber a roupa puída, os arranhões nos braços e vai sorrir. Vai sorrir porque está vivo e, sobretudo, porque você já não é mais a mesma pessoa. O seu antigo eu morreu e você acaba de acordar neste exato momento.

Wellington Freire

segunda-feira, 7 de setembro de 2015

Albert Camus



"Não sou filósofo, só sei falar do que vivi”

"Não se separar do mundo. Não se desperdiça a vida quando ela é conduzida sob a luz” – Cadernos 1935-1937

"Numa esquina qualquer, o sentimento do absurdo pode bater no rosto de um homem qualquer. Tal como é, em sua nudez desoladora, em sua luz sem brilho” –  O Mito de Sísifo

"O homem absurdo não pode fazer outra coisa senão esgotar tudo e se esgotar” –  O Mito de Sísifo

"Sentir o máximo possível sua vida, sua revolta, sua liberdade, é viver o máximo possível” –  O Mito de Sísifo

"Um pouco de pensamento afasta da vida, mas muito pensamento, retorna a ela” – O Mito de Sísifo

“O futuro é a única transcendência dos homens sem deus”  o Homem Revoltado

"Quando se está seguro de que o amanhã, na própria ordem do mundo, será melhor do que hoje, é possível divertir-se em paz. O progresso, paradoxalmente, pode servir para justificar o conservantismo. Letra sacada contra a confiança no futuro, ele autoriza, desta forma, a boa consciência do senhor. Ao escravo, àquele cujo presente é miserável e que não têm nenhum consolo no céu, assegura-se que o futuro, pelo menos, é deles. O futuro é a única espécie de propriedade que os senhores concedem de bom grado aos escravos” – O Homem Revoltado

"Se a única esperança do niilismo reside no fato de que milhões de escravos possam um dia constituir uma humanidade emancipada para sempre, a história não passa de um sonho desesperado. O pensamento histórico devia livrar o homem do jugo divino; mas essa liberação exige dele a submissão absoluta ao devir” –  O Homem Revoltado

"A revolta em conflito com a história acrescenta que, em vez de matar e morrer para produzir o ser que não somos, temos que viver e deixar viver para criar o que somos” –  O Homem Revoltado

Albert Camus


Estão Todas as Verdades à Espera em Todas as Coisas


Wladyslaw Czachorski 


Estão todas as verdades 
à espera em todas as coisas: 
não apressam o próprio nascimento 
nem a ele se opõem, 
não carecem do fórceps do obstetra, 
e para mim a menos significante 
é grande como todas. 
(Que pode haver de maior ou menor 
que um toque?) 

Sermões e lógicas jamais convencem 
o peso da noite cala bem mais 
fundo em minha alma. 

(Só o que se prova 
a qualquer homem ou mulher, 
é que é; 
só o que ninguém pode negar, 
é que é.) 

Um minuto e uma gota de mim 
tranquilizam o meu cérebro: 
eu acredito que torrões de barro 
podem vir a ser lâmpadas e amantes, 
que um manual de manuais é a carne 
de um homem ou mulher, 
e que num ápice ou numa flor 
está o sentimento de um pelo outro, 
e hão-de ramificar-se ao infinito 
a começar daí 
até que essa lição venha a ser de todos, 
e um e todos nos possam deleitar 
e nós a eles. 

Walt Whitman, in "Leaves of Grass" 


Vladimir Volegov

El cuerpo canta;
la sangre aúlla;
la tierra charla;
la mar murmura;
el cielo calla
y el hombre escucha.

O corpo canta;
o sangue ulula;
a terra fala;
o mar murmura;
o céu se cala
e o homem escuta.


Miguel de Unamuno: "El cuerpo canta" / "O corpo canta": trad. Antonio Cicero


"Quando morrer, é possível que alguém, ao ler estes descosidos monólogos, leia o que sente sem o saber dizer, que essa coisa tão rara neste mundo - uma alma - se debruce com um pouco de piedade, um pouco de compreensão, em silêncio, sobre o que fui ou o que julguei ser. E realize o que eu não pude: conhecer-me."


Florbela Espanca, Afinado desconcerto: contos, cartas, diário

sábado, 4 de abril de 2015

jules joseph lefebvre


Um pêssego como,
o outro já se aproxima —
teus seios maduros

Casimiro de Brito, Um poema do capítulo "Eros mínimo"
do LIVRO DOS HAIKU: 178

As mãos



Com mãos se faz a paz se faz a guerra.
Com mãos tudo se faz e se desfaz.
Com mãos se faz o poema - e são de terra.
Com mãos se faz a guerra - e são a paz.

Com mãos se rasga o mar. Com mãos se lavra.
Não são de pedras estas casas, mas
de mãos. E estão no fruto e na palavra
as mãos que são o canto e são as armas.

E cravam-se no tempo como farpas
as mãos que vês nas coisas transformadas.
Folhas que vão no vento: verdes harpas.

De mãos é cada flor, cada cidade.
Ninguém pode vencer estas espadas:
nas tuas mãos começa a liberdade.


Manuel Alegre
Robert Hagan


A poesia está guardada nas palavras — é tudo que eu sei.
Meu fado é o de não saber quase tudo.
Sobre o nada eu tenho profundidades.
Não tenho conexões com a realidade.
Poderoso para mim não é aquele que descobre ouro.
Para mim poderoso é aquele que descobre as insignificâncias (do mundo e as nossas).
Por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil.
Fiquei emocionado.
Sou fraco para elogios.


Manoel de Barros. In: Poema
Da obra: Tratado Da Grandeza Do Ínfimo
Editora Record 2003 - pág. 19
 Victor Bauer

 
Faz anos navego o incerto.
Não há roteiros nem portos.
Os mares são de enganos
e o prévio medo dos rochedos
nos prende em falsas calmarias.
As ilhas no horizonte, miragens verdes.
Eu não queria nada além
de olhar estrelas
como quem nada sabe
para trocar palavras, quem sabe um toque
com o surdo camarote ao lado
mas tenho medo do navio fantasma
perdido em pontas sobre o tombadilho
dou a face e forma a vultos embaçados.
A lua cheia diminui a cada dia.
Não há respostas.
Queria só um amigo onde pudesse jogar o coração
como uma âncora.

Caio Fernando Abreu, em "Poesias nunca publicadas de Caio Fernando Abreu". [Organização Letícia da Costa Chaplin, Márcia Ivana de Lima e Silva]. Rio de Janeiro: Editora Record, 2012.

Be near me when my light is low




Be near me when my light is low,
      When the blood creeps, and the nerves prick
      And tingle; and the heart is sick,
And all the wheels of Being slow.

Be near me when the sensuous frame
      Is rack'd with pangs that conquer trust;
      And Time, a maniac scattering dust,
And Life, a Fury slinging flame.

Be near me when my faith is dry,
      And men the flies of latter spring,
      That lay their eggs, and sting and sing
And weave their petty cells and die.

Be near me when I fade away,
      To point the term of human strife,
      And on the low dark verge of life
The twilight of eternal day. 

Alfred Lord Tennyson

 Essa coisa estranha e solitária, esse navegar é preciso, viver não, viver é se deixar consumir na procura e invenção de outras vidas, e não importa mais a vida, a própria, importa apenas o árduo trabalho da busca. Ou talvez não, talvez exatamente pelo oposto, por amar demasiadamente a vida, não só a própria como a de todos, a vida é que se entrega à loucura de emprestar a alma e viver intensamente outras emoções que nem são suas.
Será isso o talento? Uma condenação a se afastar pra sempre de si mesmo e se envolver com outras dores, outros tipos de amor e medo como se lhe pertencessem? Ou será uma benção? O dom de percorrer todas as gamas, todas as formas de ser, tudo que habita no desconhecido e se oculta e cabe à Criação, a delícia de desvendar, entrever aos poucos. Devagar. Por toda a vida.

Bruna Lombardi, do livro 'O perigo do dragão'
Jean-Pierre Leclercq

A Lua (dizem os ingleses),
É feita de queijo verde.
Por mais que pense mil vezes
Sempre uma ideia se perde. 
E era essa, era, era essa,
Que haveria de salvar
Minha alma da dor da pressa
De... não sei se é desejar. 
Sim, todos os meus desejos
São de estar sentir pensando...
A Lua (dizem os ingleses)
É azul de quando em quando. 

Fernando Pessoa, 14-11-1931
            



                               "Na frente
                              seus olhos molhados.
                            Atrás
                            minha falta de perdão."
                           (Yara Daher - Procissão)


caminho à frente,
em busca da palavra que eu preciso: perdão.

atrás, a que eu mereço: não.

desfaço o passo,
volto de onde estou: apago os rastros
e te convido a escrever na areia nova
- nossas mãos numa só mão - ,
a palavra que nos diz e nos renova:
                                    precisão.

Antoniel Campos




“Não pareis de dançar, encantadoras meninas! Quem se aproxima de vós não é um obstáculo a vosso entretenimento, um olho mau, um inimigo das jovens.
Sou o advogado de Deus perante o diabo. Esse diabo é o espírito do peso. Vós, tão leves, como poderia eu ser inimigo das divinas danças? Ou dos pés das jovens de graciosos tornozelos?
É certo que sou uma selva e uma noite de árvores sombrias, mas aquele que não se amedrontar de minhas trevas encontrará sobre meus ciprestes coroas de rosas.
Saberá também encontrar o pequenino Deus preferido das donzelas. Está junto da fonte, tranquilo, de olhos fechados.
Na verdade, adormeceu em pleno dia o folgado! Sem dúvida, andou atarefado demais, não é? Com sua caça às borboletas.
Não vos zangueis comigo, formosas dançarinas, se contra o pequeno Deus ando um tanto irritado. Sem dúvida, ele vai gritar e chorar. Mas, até quando chora, se presta ao riso.
E, com lágrimas nos olhos, ele vai voz convidar para uma dança. Eu mesmo acompanharei essa dança com uma canção.
Uma canção para dançar e uma sátira sobre o espírito do peso, sobre meu diabo soberano e onipotente que dizem ser o dono do mundo”.

— Friedrich Wilhelm Nietzsche, in Assim Falava Zaratustra