quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

Da música

Rob Hefferan

A musica derrama-se 
no corpo terroso 
da palavra. Inclina-se 
no mundo em mutação 
do poema.
A música traz na bagagem 
a memória do sangue; o caminho 
do sol: Lume e cume 
de palavras polidas.
A música rompe um rio de lava 
por si mesmo criado. Lágrima 
endurecida 
onde cabem o mar 
e a morte.

Casimiro de Brito, em "Canto Adolescente"


Antes que me ame

Renso Castaneda

 Antes que me ame
Eu preciso avisar que bebo em excesso, por vezes até faço tolices. Também tenho toda descompostura de um dama aprendiz de estripulias. Não falo finezas e na maioria das vezes minhas tolices estimulam as gargalhadas. Antes que me ame eu preciso avisar que não sou boa no traquejo erudito. Não adianta argumentar, pois tenho a mania de ficar calada e no dia seguinte rezar uma ladainha na maior simplicidade. Costumo também ter doses generosas de arrependimento, após ter dito o que não devia.
E mesmo assim, se quiser insistir, sou ausente na maioria do tempo. Não me prendo a formalidades e oscilo para dizer não. Antes que me ame em definitivo, preciso avisar que sou avessa ao óbvio. Sou inventiva por natureza, embora minhas experiências são pouco exitosas. Tudo bem, isso é apenas um detalhe.
Tenho outras coisas a oferecer, menos danosas que a rotina, por isso viajo para lugares desconhecidos e às vezes penso que não sou desse mundo, pois adapto-me facilmente no ilusório e minhas ideias não são factíveis. Trago conceitos frágeis como cristal e tortos como quadros mal colocados nas paredes cinzas. Não tenho decisões grandiosas. O máximo que consigo tomar posse é do lápis e papel para descrever minhas melhores loucuras.
Antes que ame eu preciso te avisar que minhas declarações de amor não passam de palavras soltas, mas faço um cafuné como ninguém. Preciso do vento e da tempestade para abalar minha acomodação e em dias agitados assim, não engulo afeto. Declaro, assino e pago pra ver.
Sou normal em dias contados. Atemporal tão logo avisto o amor. Teimosa pela saudade do que desejei. Pão e poesia fazem o meu dia, mas também transito por outras guloseimas, tipo comer esperança, mesmo fragilizada, só para ter o prazer de dizer que sou otimista em relação ao amanhã, mas confesso que não sei bem se haverá chuva grossa ou apenas uma garoa no dia seguinte. Iludo-me acreditando que haverá sol. O futuro para mim sempre germinará como meus canteiros de girassóis. Deixará pelo menos alguns rastros de sua beleza, mesmo com os galhos nus. Tenho o destino na palma de minha mão, contudo ele é traiçoeiro ou sou míope e enxergo linhas fortes e definitivas nas marcas mal ajambradas da minha pele, outrora viçosa. Por falar em pele, não sou feia e nem bonita. Sou para os olhos desnudos de ilusões. Orgulho-me do meu visual descompromissado com o tempo. Agrado ao meu espelho e não dou prejuízos aos detalhes. Descuido dos fiapos da vaidade e nunca, nunquinha tranco a porta da alma. Tenho também o coração escancarado para visitantes noturnos. Logo aviso a quem chegar, se insistir em morar nele sem pagar o prejuízo de enxergar meus silêncios e ocupar meus vazios, sairão no minuto seguinte, endoidecidos pela substancialidade coerente dos meus sentimentos.
Se quiser me amar, precisará saber que não acho boniteza nos sacrifícios. Amar é liberdade.

Ita Portugal

Aspiração ao Repouso


A impossibilidade de isolar-me
De todas as paisagens imaginadas,
De não conversar com multidões compactas
Que se agitam no meu pensamento.
De separar-me do meu próprio corpo
Que carrega em cada linha da sua forma a indagação
De um conceito de utilidade, de um novo falar misterioso.
Isolar-me dos secretos raciocínios contrastantes
Nos quais brotam amargas dúvidas nas certezas,
A impossibilidade de sustar os movimentos
Independentes da pura condição,
De fechar os olhos e na tela das pálpebras
Não ver a cena no palco das minhas reações.
De morrer por dentro andes de morrer por fora,
De ficar névoa sem contemplar a dimensão escura,
De sentir o tato da Grande Mão
Carinhosamente baixar sobre a minha face
E abandonar-me alienada no volume das trevas desconhecidas.

Adalgisa Nery
In Erosão (1973)

Visitante

omar ortiz

Imagino teu vestido 
jogado num canto do quarto 
imagino teu sapato 
debaixo da minha cama 
nosso potencial de drama 
espremido entre as paredes 
desse apartamento 
onde enfrento teu silêncio 
como uma arma que aponta 
sem nunca puxar o gatilho 

então eu invento o brilho 
descortino outra pessoa 
debaixo da minha cara 
tenho outra identidade 
escondida na gaveta 
uma fantasia, uma tara 
secreta 

e passeio clandestino 
no meio das tuas coisas 
observo atento 
teus pequenos movimentos 
frente ao espelho do banheiro 
você esfrega o corpo debaixo da torneira 
da mesma maneira repetida 
e é como se eu te visse 
pela primeira vez na minha vida. 

Bruna Lombardi
In O Perigo do Dragão, 1984 

Relâmpago



Rompe-se a escuridão quando ao olhar
para uma face o mundo se ilumina
com uma claridade repentina
capaz de, só por si, fazer brilhar
a substância tão irregular
de tudo o que se acende na retina
e através da luz se dissemina
por entre imagens vãs, até formar
um fluido movimento, uma paisagem
a que estes olhos quase não reagem
salvo se nesse instante o rosto for
transfigurado pela fantasia.
E às vezes é só isso que anuncia
aquilo a que chamamos o amor.

Fernando Pinto do Amaral . "Relâmpago". 
In: Poesia reunida 1900-2000. Lisboa: Dom Quixote, 2000.

Rimas soltas


Não sei dizer o que é o amor
nos passados onde o amor se cansa,
sentido e vivido, colhido em ramo ou em flor,
o que ele canta sobra ainda nesta dança.

Podia estendê-lo na frase sem sujeito,
fazer dele um advérbio, cabelo sem trança,
vê-lo descer como rio sobre o peito,
inundar o corpo na manhã que avança.

Deixá-lo ficar nos olhos sem destino,
tê-lo amarrado ao desejo que esconde.
E persegui-lo quando parece mais longe,

trazê-lo aqui mais perto, vê-lo pequenino.
O amor voa sem ter de subir ao céu,
encobre o rosto quando fica sem véu.

Nuno Júdice 
Mark Shasha


Sit in reverie and watch the changing color of the waves that break upon the idle seashore of the mind.

Henry Wadsworth Longfellow
dorina costras

As borboletas são independentes. Não existe ciúme entre elas, nenhuma controla o voo da outra, não existe desenho prévio para o tipo de voo quando saem a passeio. Não fazem planos para o voo do dia seguinte, não acumulam nada nas costas, não se casam nem se prometem coisas absurdas. Por isso, as borboletas fascinam. Por isso as pessoas querem seguir as borboletas. Dançar com elas. Ser como elas.

Edson Marques

Pecadora


Tinha no olhar cetíneo, aveludado,
A chama cruel que arrasta os corações,
Os seios rijos eram dois brasões
Onde fulgia o simb’lo do Pecado.

Bela, divina, o porte emoldurado
No mármore sublime dos contornos,
Os seios brancos, palpitantes, mornos,
Dançavam-lhe no colo perfumado.

No entanto, esta mulher de grã beleza,
Moldada pela mão da Natureza,
Tornou-se a pecadora vil. Do fado,

Do destino fatal, presa, morria
Uma noute entre as vascas da agonia
Tendo no corpo o verme do pecado!

Augusto dos Anjos

A casa


Sei dos filhos
pelo modo como ocupam a casa:
uns buscam os recantos,
outros existem à janela.

A uns satisfaz uma sombra,
a outros nem o mundo basta.
Uns batem com a porta,
outros hesitam como se não houvesse saída.

Raras vezes sou pai.
Sou sempre todos os meus filhos,
sou a mão indecisa no fecho,
sou a noite passada entre relógio e escuro.

Em mim ecoa a voz
que, à entrada, se anuncia: cheguei!
E eu sorrio, de resposta: chegou?
Mas se nunca ninguém partiu…

E tanto em mim
demoram as esperas
que me fui trocando por soalho
e me converti em sonolenta janela.

Agora, eu mesmo sou a casa,
casa infatigável casa
a que meus filhos
eternamente regressam. 

 Mia Couto, em “Tradutor de chuvas”

Splash


a ilusão é pensar que você está apenas
lendo este poema.
a realidade é que isto é
mais que um 
poema.
isto é a faca do mendigo.
isto é uma tulipa.
isto é um soldado marchando
sobre Madrid.
isto é você no seu
leito de morte.
isto é Li Po rindo
lá embaixo.
isto não é a porra
de um poema.
isto é um cavalo adormecido.
uma borboleta em 
seu cérebro.
isto é o circo
do diabo.
você não está lendo isto 
numa página.
a página é que está lendo
você.
sacou?
é como uma cobra.
é uma águia faminta
rondando o quarto.

isto não é um poema.
poemas são um tédio,
eles te fazem
dormir.

estas palavras te arrastam
para uma nova
loucura.

você foi abençoado,
você foi atirado
num
lugar que cega
de tanta luz.

o elefante sonha 
com você 
agora.
a curva do espaço
se curva e
ri.

você já pode morrer agora.
você já pode morrer do jeito
que as pessoas deveriam 
morrer:
esplêndidas,
vitoriosas,
ouvindo a música,
sendo a música,
rugindo,
rugindo,
rugindo.

Charles Bukowski. 
In: Essa loucura roubada que não desejo a ninguém a não ser a mim mesmo amém. Tradução: Fernando Koproski.

Estrada



Caminha, poema, ainda mais e mais incendeia todas as línguas:
Essas grandes que falam
Da tua poesia
Como de lógica.
Leva em suas costas só a bolsa pendurada com o peso da poesia
Nos teus braços, deslizando
No que envolto
Dele é físico.
Caminha, poema, a uma viagem sem chegada. Passa sozinho
Para ouvir o mundo que ao teu lado
Diz nada saber
De traços últimos.
Limpa os corredores de tua poesia trancando as portas da poeira
Dessas vozes altas das verdades
Que tua forma queimam
Como lâmpadas.
Caminha, poema, pelo chão não canses de teus passos lidos
Amanhã logo após a chuva
Tuas letras ficarão
Apenas úmidas.

Jefferson Bessa
In Nos úmidos planos das mãos, 2012
(e-book do projeto Castanha Mecânica)

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

Poesia e mendicidade

Fernand Toussaint

(No álbum da Ex.ma Sra. D. Maria Justina Proença Pereira Peixoto)


I


Senhora! A Poesia outrora era a Estrangeira,
Pálida, aventureira, errante a viajar,
Batendo em duas portas — ao grito das procelas —
Ao céu — pedindo estrelas, à terra — um pobre lar!


Visão — de áureos lauréis — porém de manto esquálido,
Mulher — de lábio pálido — e olhar — cheio de luz.
Seus passos nos espinhos em sangue se assinalam...
E os astros lhe resvalam — à flor dos ombros nus ...


II


Olhai! O sol descamba... A tarde harmoniosa
Envolve luminosa a Grécia em frouxo véu.
Na estrada ao som da vaga, ao suspirar do vento,
De um marco poeirento um velho então se ergueu.


Ergueu-se tateando... é cego... o cego anseia...
Porém o que tateia aquela augusta mão?
Talvez busca pegar o sol, que lento expira!...
Fado cruel... mentira!... Homero pede pão!


III


Mas ai! volvei, Senhora, os vossos belos olhos
Daquele mar de abrolhos, a um novo quadro! olhai!
Do vasto salão gótico eu ergo o reposteiro...
o lar é hospitaleiro... Entrai, Senhora, entrail


Estamos na média idade. Arnês, gládio, armadura
Servem de compostura à sala vasta e chá.
A um lado um galgo esvelto ameiga e acaricia
A mão suave, esguia — à loura castelã.


Vai o banquete em meio... O bardo se alevanta
Pega da lira... canta... uma canção de amor...
Ouvi-o! Para ouvi-lo a estrela pensativa
Alonga pela ogiva um raio de languor!


Dos ramos do carvalho a brisa se debruça...
Na sala alguém soluça... (amor, ou languidez?)
Súbito a nota extrema anseia, treme, rola...
Alguém pede uma esmola... Senhora, não olheis!...


Assim nos tempos idos a musa canta e pede...
Gênio e mendigo... vede... o abismo de irrisões!
Tasso implora um olhar! Vai Ossian mendicante...
Caminha roto o Dante! e pede pão Camões.


IV


Bem sei, Senhora, que ao talento agora
Surgiu a aurora de uma luz amena.
Hoje há salário p'ra qualquer trabalho,
Cinzel, ou malho, ferramenta ou pena!


Melhor que o Rei sabe pagar o pobre
Melhor que o nobre — protetor verdugo —!
Foi surdo um trono... à maior glória vossa...
Abre-se a choça aos Miseráveis de Hugo.


Porém não sei se é por costume antigo,
Que inda é mendigo do cantor o gênio.
Mudem-se os panos do cenário a esmo
O vulto é o mesmo... num melhor proscênio ...


V


Hoje o Poeta — caminheiro errante,
Que tem saudade de um país melhor
Pede uma pérola — à maré montante,
Do seio às vagas — pede — um outro amor.


Alma sedenta de ideal na terra
Busca apagar aquela sede atroz!
Pede a harmonia divinal, que encerra
Do ninho o chilro... da tormenta a voz!


E o rir da folha, o sussurrar da fala,
Trenos da estrela no amoroso estio.
Voz que dos poros o Universo exala
Do céu, da gruta, do alcantil, do rio!


Pede aos pequenos, desde o verme ao tojo,
Ao fraco, ao forte. . . — preces, gritos, uivos ...
Pede das águias o possante arrojo,
Para encontrar os meteoros ruivos.


Pede à mulher que seja boa e linda
— Vestal de um tipo que o ideal revela...
Pois ser formosa é ser melhor ainda...
Se és boa — és luz... mas se és formosa — estrela...


E pede à sombra p'ra aljofrar de orvalhos
A fronte azul da solidão noturna.
E pede às auras p'ra afagar os galhos
E pede ao lírio p'ra enfeitar a furna.


Pede ao olhar a maciez suave
Que tem o arminho e o edredon macio,
O aveludado da penugem d'ave,
Que afaga as plumas no palmar sombrio.


.................................................................................


E quando encontra sobre a terra ingrata
Um reverbero do clarão celeste,
— Alma formada de uma essência grata,
Que a lua — doura, e que um perfume veste;


Um rir, que nasce como o broto em maio;
Mostrando seivas de bondade infinda,
Fronte que guarda — a claridade e o raio,
— Virtude e graça — o ser bondosa e linda ...


Então, Senhora, sob tanto encanto
Pede o Poeta (que não tem renome)
— Versos — à brisa pra vos dar um canto...
Raios ao sol — p'ra vos traçar o nome! ...


Castro Alves

Insubmissão


Dorina Costras

Somos corsárias
febris
por areias dos desertos

Seguimos estrelas cadentes
e montando os nossos sonhos
cumprimos roteiros incertos

Vamos atrás das paixões
com o faim à cintura
e a pena no coração

Para escrevermos poesia
invertendo o cantochão

Com a arte da insídia
olhamos o horizonte alucinando
os oásis, abismando sortilégios

Escutamos os clamores
os oceanos celestes
nos silêncios dos desertos

Buscamos os infiéis
com olhos de expiação

Somos hábeis e seguras
ambíguas, doces, cruéis
nós partimos sem regresso

Ora flibusteiras
em horas de cerração
entre a paixão e o inverso

Ora piratas do limbo
abandonando os arquétipos

A cimitarra à cintura
e o júbilo no coração
pelo avesso dos versos

Somos a rosa e o espinho
a sombra no seu desvão

Entre o fuso e o enigma
a navalha entreaberta
e os nevoeiros secretos

Somos corsárias
sonhando
nas areias dos desertos


Maria Teresa Horta

América



Sou apenas um homem.
Um homem pequeno à beira de um rio.
Vejo as águas que passam e não as compreendo.
Sei apenas que é noite porque me chamam de casa.
Vi que amanheceu porque os galos cantaram.
Como poderia compreender-te, América?
É muito difícil.
Passo a mão na cabeça que vai embranquecer.
O rosto denuncia certa experiência.
A mão escreveu tanto, e não sabe contar!
A boca também não sabe.
Os olhos sabem – e calam-se.
Ai, América, só suspirando.
Suspiro brando, que pelos ares vai se exalando.

Lembro alguns homens que me acompanhavam e hoje não me acompanham.
Inútil chamá-los: o vento, as doenças, o simples tempo
dispersaram esses velhos amigos em pequenos cemitérios do interior,
por trás de cordilheiras ou dentro do mar.
Eles me ajudariam, América, neste momento
de tímida conversa de amor.

Ah, por que tocar em cordilheiras e oceanos!
Sou tão pequeno (sou apenas um homem)
e verdadeiramente só conheço minha terra natal,
dois ou três bois, o caminho da roça,
alguns versos que li há tempos, alguns rostos que contemplei.
Nada conto do ar e da água, do mineral e da folha,
ignoro profundamente a natureza humana
e acho que não devia falar nessas coisas.

Uma rua começa em Itabira, que vai dar no meu coração.
Nessa rua passam meus pais, meus tios, a preta que me criou.
Passa também uma escola – o mapa -, o mundo de todas as cores.
Sei que há países roxos, ilhas brancas, promontórios azuis.
A terra é mais colorida do que redonda, os nomes gravam-se
em amarelo, em vermelho, em preto, no fundo cinza da infância.
América, muitas vezes viajei nas tuas tintas.
Sempre me perdia, não era fácil voltar.
O navio estava na sala.
Como rodava!

As cores foram murchando, ficou apenas o tom escuro, no mundo escuro.
Uma rua começa em Itabira, que vai dar em qualquer ponto da terra.
Nessa rua passam chineses, índios, negros, mexicanos, turcos, uruguaios.
Seus passos urgentes ressoam na pedra,
ressoam em mim.
Pisado por todos, como sorrir, pedir que sejam felizes?
Sou apenas uma rua
numa cidadezinha de Minas
humilde caminho da América.

Ainda bem que a noite baixou: é mais simples conversar à noite.
Muitas palavras já nem precisam ser ditas.
Há o indistinto mover de lábios no galpão, há sobretudo silêncio,
certo cheiro de erva, menos dureza nas coisas,
violas sobem até à lua, e elas cantam melhor do que eu.

Canto uma canção,
de viola ou banjo,
dentes cerrados,
alma entreaberta,
decanta a memória,
do tempo mais fundo
quando não havia
nem casa nem rês
e tudo era rio,
era cobra e onça,
não havia lanterna
e nem diamante,
não havia nada.
Só o primeiro cão,
em frente do homem
cheirando o futuro.
Os dois se reparam,
se julgam, se pesam,
e o carinho mudo
corta a solidão.
Canta uma canção
no ermo continente,
baixo, não te exaltes.
Olha ao pé do fogo
homens agachados
esperando comida.
Como a barba cresce,
como as mãos são duras,
negras de cansaço.
Canta a estela maia,
reza ao deus do milho,
mergulha no sonho
anterior às artes,
quando a forma hesita
em consubstanciar-se
Canta os elementos
em busca de forma.
Entretanto a vida
elege semblante.
Olha: uma cidade.
Quem a viu nascer?
O sono dos homens
após tanto esforço
tem frio de morte.
Não vás acordá-los,
se é que estão dormindo.

Tantas cidades no mapa…Nenhuma, porém, tem mil anos.
E as mais novas, que pena: nem sempre são as mais lindas.
Como fazer uma cidade? Com que elementos tecê-la? Quantos fogos terá?
Nunca se sabe, as cidades crescem,
mergulham no campo, tornam a aparecer.
O ouro as forma e dissolve, restam navetas de ouro.
Ver tudo isso do alto: a ponte onde passam soldados
(que vão esmagar a última revolução)
o pouso onde trocar de animal; a cruz marcando o encontro dos valentes;
a pequena fábrica de chapéus; a professora que tinha sardas…
Esses pedaços de ti, América, partiram-se na minha mão.
A criação espantada
não sabe juntá-los.

Contaram-me que também há desertos,
E plantas tristes, animais confusos, ainda não completamente determinados.
Certos homens vão de país em país procurando um metal raro
ou distribuindo palavras.
Certas mulheres são tão desesperadamente formosas que é impossível
não comer-lhe os retratos e não proclamá-las demônios.

Há vozes no rádio e no interior das árvores,
cabogramas, vitrolas e tiros.
Que barulho na noite,
que solidão!
Esta solidão da América… Ermo e cidade grande se espreitando.
Vozes do tempo colonial irrompem nas modernas canções,
e o barranqueiro do Rio São Francisco
- esse homem silencioso, na última luz da tarde,
junto à cabeça majestosa do cavalo de proa imobilizado
contempla num pedaço de jornal a iara vulcânica da Broadway.
O sentimento da mata e da ilha
perdura em meus filhos que não amanheceram de todo
e têm medo da noite, do espaço e da morte.
Solidão de milhões de corpos nas casas, nas minas, no ar.
Mas de cada peito nasce um vacilante, pálido amor,
procura desajeitada de mão, desejo de ajudar,
carta posta no correio, sono que custa a chegar
porque na cadeira elétrica um homem (que não conhecemos) morreu.

Portanto, é possível distribuir minha solidão, torná-la meio de conhecimento.
Portanto, solidão é palavra de amor.
Não é mais um crime, um vício, o desencanto das coisas.
Ela fixa no tempo a memória
ou o pressentimento ou a ânsia
de outros homens que a pé, a cavalo, de avião ou barco,
percorrem teus caminhos, América.
Estes homens estão silenciosos mas sorriem de tanto sofrimento dominado.
Sou apenas o sorriso
na face de um homem calado.


Carlos Drummond de Andrade

O livro dos abraços


Teologia/1 

O catecismo me ensinou, na infância, a fazer o bem por interesse e a não fazer o mal por medo. Deus me oferecia castigos e recompensas, me ameaçava com o inferno e me prometia o céu; e eu temia e acreditava.
Passaram-se os anos. Eu já não temo nem creio. E em todo caso — penso — se mereço ser assado cozido no caldeirão do inferno, condenado ao fogo lento e eterno, que assim seja. Assim me salvarei do purgatório, que está cheio de horríveis turistas da classe média; e no final das contas, se fará justiça.
Sinceramente: merecer, mereço. Nunca matei ninguém, é verdade, mas por falta de coragem ou de tempo, e não por falta de querer. Não vou à missa aos domingos, nem nos dias de guarda. Cobicei quase todas as mulheres de meus próximos, exceto as feias, e assim violei, pelo menos em intenção, a propriedade privada que Deus pessoalmente sacramentou nas tábuas de Moisés: Não cobiçarás a mulher de teu próximo nem seu touro, nem seu asno... E como se fosse pouco, com premeditação e deslealdade cometi o ato do amor sem o nobre propósito de reproduzir a mão-de-obra. Sei muito bem que o pecado carnal não é bem visto no céu; mas desconfio que Deus condena o que ignora.

Teologia/2 

O deus dos cristãos, Deus da minha infância, não faz amor. Talvez o único deus que nunca fez amor, entre todos os deuses de todas as religiões da história humana. Cada vez que penso nisso, sinto pena dele. E então o perdoo por ter sido meu super-pai castigador, chefe de polícia do universo, e penso que afinal Deus também foi meu amigo naqueles velhos tempos, quando eu acreditava Nele e acreditava que Ele acreditava em mim. Então preparo a orelha, na hora dos rumores mágicos, entre o pôr do sol e o nascer subir da noite, e acho que escuto suas melancólicas confidencias.

Teologia/3 

Errata: onde o Antigo Testamento diz o que diz, deve dizer aquilo que provavelmente seu principal protagonista me confessou:
Pena que Adão fosse tão burro. Pena que Eva fosse tão surda. E pena que eu não soube me fazer entender.
Adão e Eva eram os primeiros seres humanos que nasciam da minha mão, e reconheço que tinham certos defeitos de estrutura, construção e acabamento. Eles não estavam preparados para escutar, nem para pensar. E eu... bem, eu talvez não estivesse preparado para falar. Antes de Adão e Eva, nunca tinha falado com ninguém. Eu tinha pronunciado belas frases, como "Faça-se a luz", mas sempre na solidão. E foi assim que, naquela tarde, quando encontrei Adão e Eva na hora da brisa, não fui muito eloquente. Não tinha prática.
A primeira coisa que senti foi assombro. Eles acabavam de roubar a fruta da árvore proibida, no centro do Paraíso. Adão tinha posto cara de general que acaba de entregar a espada e Eva olhava para o chão, como se contasse formigas. Mas os dois estavam incrivelmente jovens e belos e radiantes. Me surpreenderam. Eu os tinha feito; mas não sabia que o barro podia ser tão luminoso.
Depois, reconheço, senti inveja. Como ninguém pode me dar ordens, ignoro a dignidade da desobediência. Tampouco posso conhecer a ousadia do amor, que exige dois. Em homenagem ao princípio de autoridade, contive a vontade de cumprimentá-los por terem-se feito subitamente sábios em paixões humanas.
Então, vieram os equívocos. Eles entenderam queda onde falei de voo. Acharam que um pecado merece castigo se for original. Eu disse que quem desama peca: entenderam que quem ama peca. Onde anunciei pradaria em festa, entenderam vale de lágrimas. Eu disse que a dor era o sal que dava gosto à aventura humana: entenderam que eu os estava condenando, ao outorgar-lhes a glória de serem mortais e loucos. Entenderam tudo ao contrário. E acreditaram.
Ultimamente ando com problemas de insônia. Há alguns milênios custo a dormir. E gosto de dormir, gosto muito, porque quando durmo, sonho. Então me transformo em amante ou amanta, me queimo no fogo fugaz dos amores de passagem, sou palhaço, pescador de alto mar ou cigana adivinhadora da sorte; da árvore proibida devoro até as folhas e bebo e danço até rodar pelo chão...
Quando acordo, estou sozinho. Não tenho com quem brincar, porque os anjos me levam tão a sério, nem tenho a quem desejar. Estou condenado a me desejar. De estrela em estrela ando vagando, aborrecendo-me no universo vazio. Sinto-me muito cansado, me sinto muito sozinho. Eu estou sozinho, eu sou sozinho, sozinho pelo resto da eternidade.

Eduardo Galeano, O livro dos abraços

terça-feira, 2 de fevereiro de 2016


O olho do homem é feito de modo que se lhe vê por ele a virtude. A nossa pupila diz que quantidade de homens há dentro de nós, Afirmamo-nos pela luz que fica debaixo da sobrancelha. As pequenas consciências pescam o olho, as grandes lançam raios. Se não há nada que brilhe debaixo da pálpebra, é que nada há que pense no cérebro, é que nada há que ame no coração. Quem ama quer, e aquele que quer relampeja e cintila. A resolução enche os olhos de fogo; admirável fogo que se compõe da combustão de pensamentos tímidos”.

Os teimosos são os sublimes. Quem é apenas bravo tem só um assomo, quem é apenas valente tem só um temperamento, quem é apenas corajoso tem só uma virtude; o obstinado na verdade tem a grandeza. Quase todo o segredo dos grandes corações está nesta palavra: perseverando. A perseverança está para a coragem como a roda para a alavanca; é a renovação perpétua do ponto de apoio. Esteja na terra ou no céu o alvo da vontade, a questão é ir a esse alvo; no primeiro caso, é Colombo, no segundo caso é Jesus. Insensata é a cruz; vem daí a sua glória. Não deixar discutir a consciência, nem desarmar a vontade, é assim que se obtêm o sofrimento e o triunfo. Na ordem dos fatos morais o cair não exclui o pairar. Da queda sai a ascensão. Os medíocres deixam-se perder pelo obstáculo especioso; não assim os fortes. Parecer é o talvez dos fortes, conquistar é a certeza deles. Podes dar a Estevão todas as boas razões para que ele não se faça apedrejar. O desdém das objeções razoáveis cria a sublime vitória vencida que se chama martírio.

Victor Hugo, Os trabalhadores do mar

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

Coitada da Eva

 
Eve - Hans Baldung


Não há maior solidão do que a de Eva.
Ela não tinha mãe. E não podemos considerar a costela de Adão propriamente uma madrasta.
Ela gerou uma penca de filhos sem ter onde deixá-los no final de semana para desfrutar de um cineminha e de um jantar romântico.
Não dividiu com ninguém a alegria do primeiro beijo, da menstruação chegando, dos seios crescendo, do exame positivo da maternidade.
Precisou aguentar um marido que não morria – viveu 930 anos – sem a possibilidade de desabafar os problemas do relacionamento, como quando Adão puxava seu cabelo ou se metia com a bebida ou desejava gastar todo o salário em briga de galos.
Não contou com conselho materno para esfriar a rivalidade entre Caim e Abel.
Não recebeu dica de nome para suas crianças. Sete prova que não restava mais criatividade, já recorria à numeração.
Não ganhou explicação de método anticonceptivo antes de sua primeira experiência sexual.
Jamais acertou a receita do bolo de fubá simplesmente porque não conheceu nenhuma vó.
Ficou sozinha para enfrentar a lábia da serpente.
Nunca pôde usar a expressão “nem por cima do cadáver de minha mãe”.
Não se sentia ofendida quando era xingada na selva de “filha da p...”.
Não teve sequer uma mãe para mentir e comer escondido o fruto proibido.
Não pôde seguir um exemplo ou ser a ovelha negra da família. Não cresceu na adversidade: não suportou pressão para se casar, prestar vestibular e seguir carreira.
Não havia graça nenhuma em fazer terapia sem uma mãe para colocar a culpa.
Terminou pagando mico ao usar pele de animal para passear no Éden, pois não herdou roupa alguma.
Tombou com salto alto nas trilhas, desfalcada de um tutorial de mãe.
Uma vez por mês, explodia em TPM, chorava, arcava com cólicas, morria de vontade de chocolate, sem saber o que acontecia com seus hormônios.
Não entendia a diferença entre cócegas e orgasmo.
Não desfrutava da opção de se separar do marido e voltar para a casa da mãe.
Eva foi, sem dúvida, a mulher que mais sofreu no mundo.

Fabrício Carpinejar
Publicado no jornal Zero Hora
Revista Donna, p.6, 01/02/2015
Porto Alegre (RS), Edição N°18060

Enquanto o sol nascia sobre Washington, Langdon olhou pro céu, onde o último resquício das estrelas da noite se apagava. Pensou na ciência, na fé, no homem. Pensou em como todas as culturas, de todos os países, em todos os tempos, sempre haviam compartilhado uma coisa. Nós todos temos um Criador. Usamos nomes diferentes, rostos diferentes e preces diferentes, mas Deus é a constante universal do homem. Ele é o SÍMBOLO que todos compartilhamos... O símbolo de todos os mistérios da vida que não somos capazes de compreender.

Dan Brown, O símbolo perdido

VII - O guardador de rebanhos

Camille Pissarro 

Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver no Universo…
Por isso a minha aldeia é tão grande como outra terra qualquer
Porque eu sou do tamanho do que vejo
E não do tamanho da minha altura…
Nas cidades a vida é mais pequena
Que aqui na minha casa no cimo deste outeiro.
Na cidade as grandes casas fecham a vista à chave,
Escondem o horizonte, empurram o nosso olhar para longe de todo o céu,
Tornam-nos pequenos porque nos tiram o que os nossos olhos nos podem dar,
E tornam-nos pobres porque a nossa única riqueza é ver.


Alberto Caeiro (Heterônimo de Fernando Pessoa)
O guardador de rebanhos