domingo, 29 de novembro de 2009

XXX - O guardador de rebanhos



Se quiserem que eu tenha um misticismo, está bem, tenho-o.
Sou místico, mas só com o corpo.
A minha alma é simples e não pensa.
O meu misticismo é não querer saber.
É viver e não pensar nisso.
Não sei o que é a Natureza: canto-a.
Vivo no cimo dum outeiro
Numa casa caiada e sozinha,
E essa é a minha definição.


Alberto Caeiro (heterônimo de Fernando Pessoa)
O guardador de rebanhos

“No sooner met but they looked; no sooner looked but they loved; no sooner loved but they sighed; no sooner sighed but they asked one another the reason; no sooner knew the reason but they sought the remedy; and in these degrees have they made a pair of stairs to marriage…”

William Shakespeare

Falavam-me de amor

Georgia OKeeffe 

Quando um ramo de doze badaladas
se espalhava nos móveis e tu vinhas
solstício de mel pelas escadas
de um sentimento com nozes e com pinhas,

menino eras de lenha e crepitavas
porque do fogo o nome antigo tinhas
e em sua eternidade colocavas
o que a infância pedia às andorinhas.

Depois nas folhas secas te envolvias
de trezentos e muitos lerdos dias
e eras um sol na sombra flagelado.

O fel que por nós bebes te liberta
e no manso natal que te conserta
só tu ficaste a ti acostumado.

Natália Correia
O Dilúvio e a Pomba

sábado, 28 de novembro de 2009

Jack Kerouac, Tristessa


Estou em um táxi com Tristessa, bêbado, com uma garrafa de uísque Juarez Bourbon no malote de dinheiro da ferrovia que eles me acusaram de roubar da estrada de ferro em 1952 – aqui estou eu na Cidade do México, um sábado à noite chuvoso, mistérios, velhas ruas laterais de sonho e sem nomes passam vertiginosamente, a ruazinha onde eu caminhara por entre multidões de vagabundos índios enrolados em mantas trágicas, suficientes para fazer você chorar, e você achou ter visto facas reluzindo sob as dobras – sonhos lúgubres tão trágicos quanto aquele da Velha Noite da Estrada de Ferro, com meu pai sentado com suas coxas grandes no vagão de fumantes da noite, cochilando enquanto seguia pelos trilhos vastos, enevoados e tristes da vida – mas agora estou no alto daquele platô vegetal que é o México, a lua de Citlapol com quem eu esbarrara algumas noites antes no telhado sonolento a caminho do antigo banheiro de pedra com goteira – Tristessa está doidona, linda como sempre. Vai alegre para casa deitar na cama e curtir sua morfina.

Noite anterior tive uma discussão silenciosa na chuva sentado com ela nos balcões sombrios da meia noite comendo pão com sopa e bebendo Delaware Punch. Saí dessa conversa com a visão de Tristessa em minha cama, em meus braços, a estranheza de seu rosto amoroso, asteca, garota índia com olhos de Billie Holliday misteriosos e semicerrados e com uma grande voz melancólica como as atrizes vienenses de rostos tristes como Luise Rainer que fizeram toda a Ucrânia chorar em 1910.

Curvas lindas em forma de pêra moldam a pele de seu rosto, que tem pestanas compridas e tristes, e uma resignação de Virgem Maria, e uma compleição cor de café e textura de pêssego e olhos de um mistério impressionante com uma falta de expressão de profundidade rasteira, meio desdém meio um lamento de dor pesaroso. “Estou doente”, ela sempre diz para mim e Bull enroscada na almofada. Estou na Cidade do México em um táxi com os cabelos desgrenhados, e enlouquecido. Passo pelo Cine México em meio a engarrafamentos chuvosos bebendo da garrafa. Tristessa tenta se explicar em arengas longas que na noite anterior, quando a botei em um táxi, o motorista tentou agarrá-la e ela deu um soco nele, uma notícia que o motorista atual recebeu sem comentários. Vamos até a casa de Tristessa para sentar e ficarmos doidões. Tristessa já me avisou que a casa estará uma bagunça porque sua irmã está bêbada e doente e El Indio estará lá sentado majestosamente com uma agulha de morfina espetada no braço moreno, os olhos vidrados olhando para você, ou esperando que a espetada da agulha traga a própria chama e falando “Hmmm, za... a agulha asteca em minha carne flamejante”. Muito parecido com o gato grande em Culiao que me apresentou  na vez em que eu vim ao México para ver outras visões. Minha garrafa de uísque tem uma tampa mexicana frouxa estranha. O tempo todo eu acho que ela vai se soltar e deixar toda a minha bolsa afogada em uísque com 43% de álcool.

Pelas ruas enlouquecidas de sábado à noite com chuva como Hong Kong, nosso táxi avança devagar
por entre os caminhos do Mercado e saímos no bairro da rua das putas e saltamos atrás das barracas perfumadas de frutas e dos quiosques de tortillas, feijão e tacos com bancos fixos de madeira – o bairro pobre de Roma. Pago os 3,33 do táxi com dez pesos e peço “seis” de troco, que recebo sem qualquer comentário e me pergunto se Tristessa acha que ostento e sou perdulário demais, o grande John Bêbado no México – Mas não tenho tempo para pensar, andamos apressados pelas calçadas escorregadias com reflexos de néon e da luz das velas dos ambulantes que vendiam castanhas sobre um pano sentados no chão – entramos rapidamente na viela fedorenta onde ficava a casa de cômodos de um andar – Quando entramos, passamos por torneiras gotejantes, baldes e meninos. Nós nos abaixamos para passar por baixo de roupa pendurada e chegamos à sua porta de ferro, que está destrancada naquele interior de adobe, e nós entramos na cozinha, a chuva ainda pingando das chapas de metal e tábuas que serviam como telhado da cozinha – e permitiam que gotinhas caíssem ruidosamente na cozinha sobre o lixo da galinha no canto úmido – Onde agora, miraculosamente, vejo o gatinho rosa dando uma mijadinha sobre pilhas de restos de quiabo e comida de galinha. O quarto lá dentro está completamente imundo e bagunçado, como se tivesse sido saqueado por loucos, com jornais rasgados espalhados e galinhas comendo arroz e pedacinhos de sanduíches do chão – A irmã de Tristessa está na cama, doente, enrolada em uma colcha rosa – é tão trágico quanto a noite em que Eddy levou um tiro na chuvosa Russia Street –

Tristessa está sentada  na beira da cama arrumando as meias de náilon. Ela as puxa de dentro dos sapatos de um jeito esquisito, com o rosto grande e triste observando seus esforços, com os lábios franzidos. Observo a maneira como ela torce os pés para dentro convulsivamente quando olha para os sapatos. Ela é uma garota bonita demais. Eu me pergunto o que todos os meus amigos iam dizer lá em Nova York e em San Francisco, e o que aconteceria em Nola quando você a visse atravessar a Canal Street sob o sol quente, ela de óculos escuros e um andar preguiçoso, tentando amarrar o quimono ao sobretudo fino como se o quimono devesse amarrar o casaco, dando puxões convulsivos e brincando na rua, dizendo “Olha ali o táxi – eei, é eeleee que – lá vai você – Eu  traago de bolta yur moa-ny.” Moa-ny, dinheiro. Ela fala de um jeito parecido com minha velha tia francocanadense lá em Lawrence. “Não quero su moa-ny, o que quero é yur loave.” Loave, amor. “És yur lawv.” Lawv, a lei. – Acontece a mesma coisa com Tristessa, ela está o tempo todo tão doidona, e passando mal.

Ela se aplica dez gramas de morfina por mês – sai cambaleando pelas ruas da cidade tão bela que as pessoas continuam a se virar para olhar para ela – Seus olhos são radiantes e reluzem e seu rosto está úmido com o sereno e seu cabelo índio está negro, bem legal, é dividido em dois rabos-de-cavalo na parte de trás, enrolados em coques na nuca (o próprio penteado catedral das índias) – Seus sapatos, para os quais ela sempre está olhando, são novos em folha, não surrados, mas ela deixa que suas meias de náilon caiam o tempo todo, e as puxa insistentemente, e torce os pés convulsivamente – você visualiza uma garota bonita igual em Nova York, vestindo uma saia rodada florida a la New Look com um suéter de cashmere Dior e seios retos, e seus lábios e olhos fazem o mesmo e fazem o resto. Aqui ela está reduzida às roupas empobrecidas e sombrias de senhora índia – Você vê as senhoras índias no negro inescrutável dos umbrais, olhando como se fossem buracos nas paredes não as mulheres – suas roupas – e você olha outra vez e vê a mujer* nobre e brava, a mãe, a mulher, a Virgem Maria do México. – Tristessa tem um ícone enorme em um canto de seu quarto.

Ele fica de frente para o quarto, de costas para a parede da cozinha, no canto direito de quem olha para aquela cozinha lamentável com suas goteiras que chovem de forma indescritível dos galhos de árvore do telhado e dos compensados (o telhado explodido do abrigo) – Seu ícone representa a Santa Maria a olhar de dentro de seus chadores azuis, sua túnica e seus objetos de Damema, para os quais El Indio reza com devoção quando sai para descolar uma parada. El Indio diz ser um vendedor de suvenires – nunca o vi vendendo crucifixos em San Juan Letrán, nunca vi El Indio na rua, nem em Redondas, em lugar nenhum. A Virgem Maria está com uma vela, um monte de velas econômicas que queimam a cera dentro de vidros e duram semanas, como rodas de oração tibetanas – a ajuda incansável de nosso Amida – eu sorrio ao ver esse ícone adorável – Ele está rodeado de retratos dos mortos – Quando Tristessa quer dizer “mortos”, ela junta as mãos em uma atitude santificada, indicando sua crença asteca na santidade da morte, e da mesma maneira a santidade da essência – Então ela tem uma foto do Dave morto meu velho camarada de muitos anos que agora está morto, de pressão alta aos 55 anos – Seu rosto vagamente índio-grego salta da fotografia pálida indefinível. Não consigo vê-lo em meio a toda aquela neve. Sem dúvida ele está no Céu, as mãos juntas em posição de oração em um êxtase eterno de Nirvana. É por isso que Tristessa continua a juntar as mãos e rezar, dizendo, também: “Eu amo o Dave”, ela tinha amado seu antigo senhor – Era um velho apaixonado por uma garota. Ela estava viciada aos dezesseis. Ele a tirou das ruas e, ele também um viciado das ruas, redobrou seus esforços para conseguir, finalmente, entrar em contato com viciados de grana, e mostrou a ela como viver – uma vez por ano iam juntos de carona até Chalmas, na montanha, escalar parte dela de joelhos para chegar ao santuário com sua enorme pilha de muletas deixadas ali por romeiros curados de suas doenças, as milhares de esteiras abertas no sereno onde dormem à noite em cobertores e sobretudos – retornando, devotos, famintos, saudáveis, para acender novas velas para a Mãe e caindo outra vez nas ruas em busca de sua morfina – Só Deus sabe onde eles a conseguiam.

Eu me sento e admiro a mãe majestosa dos amantes. Não há como descrever o horror daquela escuridão nos buracos do teto, o halo marrom da noite da cidade perdido em uma elevação vegetal verde acima das Rodas dos telhados Blakeanos de adobe – a Chuva agora embaça o verde sem fim da planície do vale a norte de Actopan. Garotas bonitas passam correndo por cima de sarjetas cheias de poças – Cães latem para carros que passam em bandos – A chuva fraca esvazia-se de maneira lúgubre sobre a pedra úmida da cozinha, e a porta reluz (ferro) toda brilhante e molhada – O cachorro uiva de dor na cama. – O cão é a pequena mãe chihuahua de 30cm de comprimento, com belos pezinhos de dedos negros e unhas, um cachorro tão “refinado” e delicado que você não poderia tocá-lo sem que ele ganisse de dor – “C-aaa-in”. Tudo o que você podia fazer era estalar os dedos com delicadeza para ela e deixar que esfregasse o seu focinhozinho gelado e molhado (negro como o de um touro) contra suas unhas e seu polegar. Cachorrinho doce – Tristessa diz que ela está no cio e é por isso que chora – o galo grita debaixo da cama. O galo está esse tempo todo escutando debaixo das molas, meditativo, virando-se para olhar para aquela escuridão silenciosa ao redor, o barulho dos humanos dourados acima “BEU-VEU-VAA?”, grita ele, uiva, interrompe meia dúzia de conversas simultâneas e vociferantes como papel rasgado acima –

A galinha cacareja.
A galinha está lá fora, circulando por entre nossos pés, ciscando o chão com suavidade – Ela gosta das pessoas. Quer se aproximar de mim e se esfregar sem limites contra a perna da minha calça, mas eu não a encorajo, na verdade, ainda não a havia notado e parece aquele sonho do vasto pai insano do celeiro na floresta na uivante Nova Scotia com as marés prestes a engolir a cidade e toda a região de pinheiros ao redor no norte sem fim – era Tristessa, Cruz na cama, El Indio, o galo, a pomba no alto da cornija (nunca fez um som além do eventual treinamento de bater as asas), o gato, a galinha e a porra da mulher cachorra vadia  pretinha vira-lata chihuahua Espana que uiva.

A seringa de El Indio está totalmente cheia. Ele enfia a agulha com força e ela está cega e não penetra
na pele e ele a enfia com mais força e consegue, mas em vez de estremecer aguarda boquiaberto e em êxtase e aplica tudo, deprimido, parado. – “Você precisa me fazer um favor, Mr. Gazookus”, diz Old Bull Gaines interrompendo meu pensamento. “Vamos lá na Tristessa comigo – Estou com pouco”, mas estou pronto para desaparecer da Cidade do México, com caminhadas pela chuva, chapinhando nas poças sem reclamar ou mesmo qualquer interesse, apenas tentando chegar em casa, na cama, morto. É o maldito alucinado livro dos sonhos da droga do mundo, cheio de súplicas, mentiras e acordos escritos. E suborno, para as crianças comprarem doces, para as crianças comprarem doces. “A morfina é para a dor”, sigo pensando, “e o resto é o resto, isso é o que é, eu sou o que sou. Adoração a Tathagata, Sugata, Buda, perfeito na Sabedoria e na Compaixão, que alcançou, está alcançando e irá alcançar, todas essas palavras de mistério.”

– O motivo pelo qual eu trago o uísque, para beber, para romper a cortina negra – Ao mesmo tempo um comediante na cidade de noite – incomodado por melancolias e intervalos de calmaria, entediado, bebendo, reverente, entrando em colapso. “Onde eu vou fazer...” – Puxo a cadeira até o canto perto do pé da cama para poder sentar entre a gata e a Virgem Maria. A gata, la gata em espanhol, a pequena Tathagata da noite, de cor dourada e rosada, três semanas de idade, um focinho rosado maluco, um rosto maluco, olhos verdes, bigodes em fórceps e suíças douradas de leão – Passo meus dedos por seu crânio pequeno e ela levanta-se, ronrona e a máquina de ronronar passa um tempo ligada, e ela olha ao redor do quarto e vê satisfeita o que todos estamos fazendo. – “Ela está com pensamentos de ouro”, penso eu. – Tristessa gosta de ovos, ou não deixaria um galo macho neste ambiente feminino? Como eu posso saber como são feitos os ovos? À minha direita, as velas devocionais queimam diante da parede de barro.

É infinitamente pior  do que o sonho de sono que tive na Cidade do México no qual passo por apartamentos brancos vazios e tristes, sozinho, ou um em que os degraus de mármore de um hotel me aterrorizam – É a noite chuvosa na Cidade do México e estou no meio do bairro do Mercado dos Ladrões do México e El Indio é um ladrão bem conhecido e mesmo Tristessa era uma batedora de carteiras mas eu não faço mais que passar de leve as costas da mão contra o volume de meu dinheiro dobrado guardado à maneira dos marinheiros no bolso da frente de ferroviário de meus jeans – E no bolso da camisa guardo os cheques de viagem que são, de certa forma, impossíveis de roubar – Aquela, Ah, aquela rua lateral onde a gangue de mexicanos me pára e vasculha minha bolsa de viagem. Eles pegam o que querem e me levam para tomar uma bebida – É melancolia de maneira imprevisível nesta terra, percebo todas as incontáveis manifestações os inventos da mente-pensante que erguem uma parede de horror diante de sua conscientização pura de que não há parede ou horror apenas A Luz Leitora Vazia Transcendental Beijável da verdadeira e perfeitamente vazia Eternidade Duradoura. – Sei que está tudo bem mas quero prova, e os Budas e as Virgens Marias estão ali para me lembrar da minha promessa solene de fé nesta terra agreste e estúpida onde nós vivemos em fúria nossas assim chamadas vidas em um mar de preocupações, carne para as Chicagos dos Túmulos – bem neste minuto meu próprio pai e meu próprio irmão jazem lado a lado na lama no Norte e eu devo ser mais inteligente que eles – ao ser esperto, estou morto. Olho para os outros que estão conversando, eles percebem que estive perdido em pensamentos na minha cadeira no canto, mas estão em busca de preocupações sem fim e irrefreáveis (todas 100% mentais) próprias – Estão falando em espanhol, eu entendo apenas trechos soltos dessa conversa viril – Tristessa diz “chinga” frase sim, frase não, um marinheiro de boca suja – ela diz isso com desprezo e seus dentes rangem o que me deixa preocupado.
“Você conhece as mulheres tão bem quanto pensa?” –
O galo está tranqüilo e de repente solta um grito.

Jack Kerouac, Tristessa

Albert Camus, O Estrangeiro


“Pensei que me bastava voltar para trás e tudo ficaria resolvido. Mas atrás de mim comprimia-se uma imensa praia vibrante de sol. Dei alguns passos para a nascente [...] Esperei. A ardência do sol queimava-me as faces e senti o suor amontoar-se nas minhas sombrancelhas. Era o mesmo sol do dia em que a minha mãe fora enterrada e, como então, doía a testa, sobretudo a testa, e todas as suas veias batiam ao mesmo tempo debaixo da pele. Por causa desta queimadura que já não podia suportar mais, fiz um movimento para a frente. Sabia que era estúpido, que não me iria desembaraçar do sol simplesmente por dar um passo em frente. Mas dei um passo, um só passo em frente. E desta vez, sem se levantar, [...] tirou a navalha do bolso e mostrou-ma ao sol. A luz refletiu-se no aço e era como uma longa lâmina faiscante que me atingisse a testa. No mesmo momento, o suor amontoado nas sombrancelhas correu-me de súbito pelas pálpebras abaixo e cobriu-as com um véu morno e espesso. Os meus olhos ficaram cegos, por detrás desta cortina de lágrimas e de sal. Sentia apenas as pancadas do sol na testa e, indistintamente, a espada de fogo brotou da navalha, sempre diante de mim. Esta espada a arder corroía-me as pestanas e penetrava-me nos olhos doridos. Foi então que tudo vacilou.O mar enviou-me um sopro espesso e fervente. Pareceu-me que o céu se abria em toda a sua extensão, deixando tombar uma chuva de fogo. Todo o meu ser se retesou e crispei a mão que segurava o revólver. O gatilho cedeu, toquei na superfície lisa da coronha e foi aí, com um barulho ao mesmo tempo seco e ensurdecedor, que tudo principiou. Sacudi o suor e o sol. Compreendi que destruíra o equilíbrio do dia, o silencio excepcional de uma praia onde havia sido feliz. Voltei então a disparar mais quatro vezes contra um corpo inerte, onde as balas se enterravam sem se dar por isso. E era como se batesse quatro breves pancadas, à porta da desgraça."


Albert Camus, O Estrangeiro
Collage by Matthieu Bourel

Multipliquei-me, para me sentir,
Para me sentir, precisei sentir tudo,
Transbordei, não fiz senão extravasar-me,
Despi-me, entreguei-me,
E há em cada canto da minha alma um altar a um deus diferente.


Álvaro de Campos
(heterônimo de Fernando Pessoa)

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

Jardim das Delícias





Procuro para mim um homem sem moral
que me deixe arisca e me deite de costas
mandando coisas.

O Oculto da paixão tem mais sabor
que pitanga roubada
e minha alma dissoluta, dissimulada
mistura ao vinho uma idéia de me
jogar em lençõis de linho
ou no mar.

Ah, eu queria saber de cor o nome das estrelas
todas as constelações e tudo
que de mistério carrega o ser humano
a face das pessoas, a inconfessável
a dimensão da atmosfera e o ponto exato
onde tudo se desintegra.

Quero conhecer o sentido da vida
a essência do vôo e a gegrafia.


Bruna Lombardi
AndrewWyeth

Grandes mistérios habitam
O limiar do meu ser,
O limiar onde hesitam
Grandes pássaros que fitam
Meu transpor tardo de os ver.

São aves cheias de abismo,
Como nos sonhos as há.
Hesito se sondo e cismo,
E à minha alma é cataclismo
O limiar onde está.

Então desperto do sonho
E sou alegre da luz,
Inda que em dia tristonho;
Porque o limiar é medonho
E todo passo é uma cruz.


Fernando Pessoa
in Poemas Ocultistas

Thanksgiving Prayer



Os 10 mandamentos Sagrados

1º Não terás outros deuses diante de mim.
2º Não farás para ti imagem de escultura, nem semelhança alguma do que há em cima nos céus, nem embaixo da terra, nem nas águas debaixo da terra.
3º Não tomarás o nome do Senhor, teu Deus, em vão.
4° Lembra-te do dia do sábado para santificá-lo.
5° Honra teu pai e tua mãe, para que se prolonguem os teus dias na terra que o Senhor, teu Deus, te dá.
6º Não matarás.
7º Não adulterarás.
8º Não furtarás.
9º Não dirás falso testemunho contra o teu próximo.
10º Não cobiçarás a mulher do teu próximo.

quarta-feira, 25 de novembro de 2009



"Sou um pequeno vitral malva e anis decompondo-se sobre a mesa onde a música fez cocô. Meu ovo cabe na galinha. Meus pés tortos cabem no céu. Bule de prata. Bata branca. Sou um corpo rajado, um sopro do alto, que é brisa, e entorto a língua, a linguagem, disseco tripas, galopo meu quarto de um canto a outro e misturo histórias que contei antigamente. Sou Grande Caracol Baboso, lábio frouxo encantado. Já perdi dez milhões de sedas e estou aqui sovada, ampliada para a morte, coração minúsculo. Costumo, de madrugada, mas não conte a ninguém, dar lambidonas num corpo de Anjo que vermes descarnam. Acho esquisito chamar-me Hilda Hilst."

Hilda Hilst, O caderno Rosa de Lori Lamb

Estação

imagem: AmandaCom

Esperar ou vir esperar querer ou vir querer-te
vou perdendo a noção desta subtileza.
Aqui chegado até eu venho ver se me apareço
e o fato com que virei preocupa-me, pois chove miudinho

Muita vez vim esperar-te e não houve chegada
De outras, esperei-me eu e não apareci
embora bem procurado entre os mais que passavam.
Se algum de nós vier hoje é já bastante
como comboio e como subtileza
Que dê o nome e espere. Talvez apareça.

Mário Cesariny

Animais. Ame-os!





"No momento, nosso mundo de humanos é baseado no sofrimento e na destruição de milhões de não-humanos. Aperceber-se disso e fazer algo para mudar essa situação por meios pessoais e públicos, requer uma mudança de percepção, equivalente a uma conversão religiosa. Nada poderá jamais ser visto da mesma maneira, pois uma vez reconhecido o terror e a dor de outras espécies, você irá, a menos que resista à conversão, ter consciência das permutações de sofrimento interminável, em que se apóia a nossa sociedade."

Arthur Conan Doyle

terça-feira, 24 de novembro de 2009

O destino desfolhou

Em memória de
Tânia Beatriz Pacheco Pinto.
E para
Fanny Abramovich,
que me fez lembrar.

“Aqui é dor, aqui é amor, aqui é amor e dor:
onde um homem projeta seu perfil e pergunta atônito:
em que direção se vai?”
(Adélia Prado: O Coração Disparado)


VÊNUS.

HÁ seis anos, ele estava apaixonado por ela. Perdidamente. O problema - um dos problemas, porque havia outros, bem mais graves -, o problema inicial, pelo menos, é que era cedo demais. Quando se tem vinte ou trinta anos, seis anos de paixão pode ser muito (ou pouco, vai saber) tempo. Mas acontece que ele só tinha doze anos. Ela, um a mais. Estavam ambos naquela faixa intermediária em que ficou cedo demais para algumas coisas, e demasiado tarde para a maioria das outras.
Ela chamava-se Beatriz. Ele chamava-se - não vem ao caso. Mas não era Dante, ainda não. Anos mais tarde, tentaria lembrar-se de Como Tudo Começou. E não conseguia. Não conseguiria, claramente. Voltavam sempre cenas confusas na memória. Misturavam-se, sem cronologia, sem que ele conseguisse determinar o que teria vindo antes ou depois daquele momento em que, tão perdidamente, apaixonou-se por Beatriz.
Voltavam principalmente duas cenas. A primeira, num aniversário, não saberia dizer de quem. Dessas festas de verão, janelas da casa todas abertas, deixando entrar uma luz bem clara que depois empalideceria aos poucos, tingindo o céu de vermelho, porque entardecia. Ele lembrava de um copo de guaraná, da saia de veludo da mãe - sempre ficava enroscado na mãe, nas festas, espiando de longe os outros, os da idade dele. Lembrava do copo de guaraná, da saia de veludo (seria verde-musgo?) e do balão de gás que segurava. Então a mãe perguntou, de repente, qual a menina da festa que ele achava mais bonita. Sem precisar pensar, respondeu:
- Beatriz.
A mãe riu, jogou para trás os cabelos - uns cabelos dourados, que nem o guaraná e a luz de verão - e disse assim:
- Credo, aquela estrelete?
Anos mais tarde, não encontraria no dicionário o significado da palavra estrelete. Mas naquele momento, ali com o balão numa das mãos, o guaraná na outra, cotovelos fincados no veludo (seria azul-marinho?) da saia da mãe, pensou primeiro em estrela. Talvez por causa do movimento dos cabelos da mãe, quando tudo brilhou, ele pensou em estrela. Uma pequena estrela. Uma estrela magrinha, meio nervosa. Beatriz tinha um pescoço longo de bailarina que a fazia mais alta que as outras meninas, e um jeito lindo de brilhar quando movia as costas muito retas, olhando adulta em volta.
Estrelete estrelete estrelete estrelete - repetiu e repetiu até que a palavra perdesse o sentido e, reduzida a faíscas, saísse voando junto com o balão que ele soltou, escondido atrás do taquareiro. Bem na hora em que o sol sumia e uma primeira estrela apareceu. Estrela D’Alva, Vésper, Vênus, diziam. Diziam muitas coisas que ele ainda não entendia.

CENAS

A outra cena acontecia num dos festivais de fim de ano do Grupo Escolar, no Cine Cruzeiro do Sul.
Ele estava na platéia, porque não sabia cantar nem dançar nem declamar, nem nada que os outros pudessem sentar e aplaudir - como ele sentava e aplaudia agora. Então Beatriz entrava no palco com um vestido branco repolhudo, sentava numa cadeira e a professora-apresentadora colocava um acordeom nos braços dela. Embora alta demais para a idade, Beatriz quase desaparecia no palco do cinema, atrás daquele enorme acordeom. Dava só para ver o rosto pálido, sério, a franja lisa acima do instrumento, as pernas compridas abaixo, tão finas que os carpins de renda desabavam sobre os sapatos de verniz preto e presilha. As duas mãos de unhas roídas, nas teclas.
Então, acontecia. Na memória, anos depois, tinha a impressão de que havia um silêncio pouco antes dela começar. Um silêncio precedendo o brilho. Talvez não, só fantasias.
De repente, logo após esse silêncio incerto, os dedos de unhas roídas de Beatriz começavam a mover-se sobre as teclas. Do acordeom e da voz dela, uma voz fina de vidro, agulha, espinho, brotava aos poucos uma valsinha chamada O Destino Desfolhou. O-nosso-amor-traduzia-felicidade-e-afeição, ele lembraria, suprema-glória-que-um-dia-tive-ao-alcance-da-mão. O coração bateu mais forte. Como quando soltara o balão, de tardezinha, atrás do taquaral. E alguma coisa brilhou no ar entre vermelho e roxo do entardecer, no meio das paredes descascadas do Cine Cruzeiro do Sul. Era tudo: cenas.
Depois dessa, havia outras.
Cenas mais comuns, com ele sentado quase sempre atrás ou ao lado dela, na primeira, segunda, terceira, quarta e quinta séries primárias. Colava de Beatriz, em Aritmética. Ela colava dele, em Linguagem. Tiravam notas boas. Mas em Comportamento, todo mês ganhavam o mínimo, porque não paravam de conversar. Todas as manhãs, menos sábado e domingo.
Sábado não tinha Beatriz. Mas domingo, vezenquando, na missa das dez, novamente ela aparecia, ao lado da mãe. Dona Lucy não usava saias de veludo nem tinha cabelos dourados: era viúva, vestia preto, cabelos presos num coque, rosário na mão. Ao lado dela, o brilho de Beatriz desaparecia, ofuscado por uma dor que ela ou ele só seriam capazes de compreender mais tarde, se houvesse tempo. E não havia.

A SEPARAÇÃO

De repente - ou não de repente, mas tão aos pouquinhos, e tão igual todo dia que era como se fosse assim, num piscar de olhos, num virar de página - passou-se muito tempo. E quando começaram o ginásio houve: A Separação. Ele foi para o colégio Estadual, ela para o colégio das Freiras. Depois das férias grandes, pelas manhãs, num fim de verão, não havia mais Beatriz.
Aos domingos, sim, tinha Beatriz na matinê das quatro. Sem dona Lucy. Havia agora Betinha, Aureluce, Tanara e outras amigas barulhentas em volta, uma fila inteira delas no Cine Cruzeiro do Sul. Com blusinhas de banlon e risadinhas, pipocas e barulho de papel de bala amassado justo na hora em que Johnny Weissmuller ia cair nas mãos dos pigmeus canibais. Areias movediças, caçadores de cabeça, dardos fatais. Odiava todas as gurias: gasguitas gasguitas. Menos ela. Quando retardava ou apressava o passo para cruzá-la na saída, ruborizava um pouco, dizia ó-h! cumprimentando - e apressava o passo de novo, para afastar-se logo e levá-la por dentro, perdoando tudo.
Ela crescia. Crescia não como as outras, para os lados, para a frente e para trás. Beatriz crescia principalmente para cima. Pescoço cada vez mais longo, rabo-de-cavalo preto liso escorrido batendo nas costas, abaixo dos ombros. Ele, não. Ele não crescia para lado nenhum. Só para dentro, parecia. Tinha horror de uma coisa densa, meio suja, entupindo ele por dentro. Descoordenava os movimentos, descontrolava a voz. Umas espinhas, uns pêlos apareciam em lugares imprevistos. Sentia-se pesado, lerdo, desconfortável como se não coubesse dentro do próprio corpo, suspenso entre ter perdido um jeito antigo de comandá-lo e ainda não ter encontrado o jeito novo. Que devia haver um.
Nessa época, começaram os boatos. A filha da Lucy, diziam, mas mudavam logo de assunto quando ele se aproximava. Que horror, ainda conseguia ouvir, que tragédia. Primeiro o marido, agora a filha. Coitadinha, nem quinze anos. Aprendeu a maneira de ouvir sem ser visto. Na sombra, atrás da porta.
Até surpreender, um dia, a palavra nova: leucemia. No dicionário, encontrou. Mas não conseguiu entender direito. Glóbulos, era bonito, redondo. Parecia pétala, sânscrito, dádiva: gló-bu-los. Brancos, excesso. Mata? perguntou no colégio. Disseram que sim. Em pouco tempo.

A URGÊNCIA

Então baixou a pressa.
Não tinha mais um dia a perder, pois embora fosse muito cedo, começou a suspeitar que era também desesperadamente tarde demais. Procurou Betinha, bilhete pronto, escrito com Parker em folha de arquivo. Quero falar contigo amanhã sem falta, na praça, depois da aula.
- Tu sabes? - perguntou Betinha, olho no olho.
Ele disse que sim.
De tardezinha, veio a resposta: Beatriz concordava. Amanhã na praça, sem falta.
- Mas tu sabes mesmo? - Betinha perguntou novamente.
Outra vez, disse que sim. Perguntou se era verdade. Betinha sacudiu a cabeça, que era. Antes de ir embora, ainda falou:
- Olha bem para o pescoço dela. Tem uns caroços aqui, assim, inchados. Aquilo é a doença.
Ele olhou bem, quase meio-dia da manhã seguinte, sentados num banco do centro da praça. Enquanto pedia, trêmulo de amor:
- Beatriz, quero namorar contigo.
Ela apertou contra o peito um livro de História do Brasil:
- Tu é muito criança - disse.
Quase não conseguia olhar para ela. Olhava o chão de pastilhas coloridas no centro da praça. Formavam círculos, quadrados, estrelas grandes e pequenas. Menores ainda, estreletes.
- Mas se eu sou criança - foi dizendo devagar, convincente -, se eu sou criança tu também é, porque só tens doze anos.
- Treze - ela corrigiu. E ergueu o rosto para o sol no meio do céu. Os gânglios inchados quase desapareciam assim. Gân-gli-os, repetiu mentalmente, essa palavra que quase não conhecia.
Espantado, percebeu que Beatriz usava batom. Batom clarinho, mal se notava. Parecia tão divertida e distante que aquela coisa densa, meio suja, dentro dele começou a se contorcer feito quisesse sair para fora. Cobra armando o bote, vômito armado na garganta. Ainda tentava controlá-la, quando insistiu:
- Eu gosto de ti, Beatriz. Eu gosto muito de ti. Eu gosto tanto de ti.
- Pois eu não - ela abaixou os olhos, procurando os dele. Quando encontrou, falou quase sorrindo, como quem dá uma coisa doce, não como quem enfia uma faca afiada: - Gosto só como amigo.
- Como amigo, não me interessa - gemeu.
Devia ser março, porque o sol era tão quente que fazia gotas de suor escorrerem entre as espinhas da cara dele até o lábio superior, onde aquele pêlos escuros começavam a se adensar. Sua cara de macho em preparação devia estar nojenta como a de um bicho. Mais tarde, bem mais tarde, se lhe perguntassem, mas ninguém saberia, poderia explicar que não tinha tido culpa. Foi aquela coisa suja de dentro que subiu descontrolada garganta acima, para atravessar a língua e os dentes até arredondar-se de repente na pergunta cruel que jogou no ar morno de meio-dia (e Sol na X, era o destino):
- Beatriz, tu sabe que vai morrer?
Ela levantou. Nem pálida, nem lágrimas nos olhos. Remota, fatídica. Ele levantou também. Só então percebeu que, além do batom, ela usava sapatos de saltinho que a faziam quase dois palmos mais alta que ele. Por trás dela, podia ver a torre da igreja. Talvez uma ou duas palmeiras. A caixa d’água ao longe, muito alta. O sino começou a bater. Beatriz virou as costas e saiu caminhando, pescoço erguido, o livro de História apertado contra os seios tão empinados que, num último golpe, percebeu: além do batom e dos saltinhos, Beatriz também usava sutiã.
Beatriz era uma mulher. E ia morrer

A PARTIDA

Volta, quis dizer, parado no meio da praça.
Mas agora, tantos anos depois, não saberia se teve mesmo vontade de chamar ali, ao meio-dia de uma tarde de Peixes, ou se repetiria depois baixinho, à noite, sozinho na cama, no mesmo quarto com o irmão mais velho, nessa noite ou em todas as outras depois dessa, à medida que o verão fosse indo embora e as noites todas se tornassem mais e mais frias, junho julho, agosto adentro, enrolado em cobertores, vida afora repetindo volta, Beatriz, volta que eu cuido de ti e dou um jeito qualquer de tu ficares boa e então nós podemos ir embora para a África ou Oceania ou Eurásia ou qualquer outro lugar onde tu possas ficar completamente boa do meu lado e para sempre, volta que eu te cuido e não te deixo morrer nunca. Não disse nada. Pisando lenta, olhando o sol, Beatriz foi embora para sempre dos doze anos de vida dele.

AH, DINDI...

O tempo passou, depois disso, mais um pouco. Um, dois anos em que, além de para dentro, ele começou a crescer igual aos outros: em todas as direções. Aqueles pêlos finos engrossaram sobre o lábio superior, outros surgiram, escureceram curvas, reentrâncias. As espinhas desapareceram, a voz definiu-se. Aquela coisa densa de dentro transformou-se numa espécie de leite espesso que descobriu o jeito de puxar para fora, com movimentos da mão e estremecimentos do corpo. Na cama ao lado, Toninho repetia:
- Vai criar cabelo na palma da mão. Vai ficar tuberculoso desse jeito. Se quiser, um dia me fala, te levo na zona. Ou vai sozinho, chega na Morocha e diz que é meu irmão, ela já sabe.
Foram esses os anos em que Beatriz foi embora. Para a capital, para se tratar, diziam.
Isso depois de uma fase em que ela trocou aquele batom rosa clarinho por outro vermelho, muito forte, aqueles saltos baixos por outros altíssimos, e decotes fundos, costas de fora, saias curtas, pernas cruzadas no clube, risadas estridentes na rua, cigarros e rosas de ruge nas faces cada vez mais brancas. De mão em mão, Beatriz passou. Pelas mãos de Cacá, que na aula de Educação Física abaixava o calção para mostrar o pau, o maior do colégio, quem quisesse ver. Ou pegar, alguns pegavam. Pelas mãos de Mauro, que tinha cabelo no peito e encestava bola no basquete como ninguém. E Luizão e Pancho e Caramujo e Bira e tantos outros que nem lembrava direito o nome, a cara, divulgando pelas esquinas, pela sinuca, pela praça ou matinê: ela faz de tudo, só chegar e meter a mão, dá pra qualquer um - uma percanha.
Com ele, quase nada aconteceu, além de uma tentativa desastrada de namorar Betinha, depois que Beatriz se foi. Mas só perguntava por ela, até que um dia Betinha encheu, foi namorar Luizão, que tinha uma lambreta. Quase nada além daquele corpo crescendo em direções imprevistas, de um B gótico desenhado em segredo e carinho nas folhas finais dos cadernos, principalmente os de Geografia, quando tentava decorar as capitais - Suíça, capital Berna; Polônia, capital Varsóvia; Honduras, capital Te-gu-ci-gal-pa - e a cada nome estranho repetia e repetia, morto de saudade: para lá, então, para lá, Beatriz, quem sabe - vamos?
Aprendeu a dirigir o Simca Chambord branco forrado de vermelho do pai. Mas Passo da Guanxuma acabava logo: só restavam quatro estradas de terra vermelha poeirenta batida, perdidas até o horizonte. Precisou professor particular de Matemática. Ficou para segunda época em Latim, não conseguia passar da primeira declinação, terra, terrae, terram. Escreveu sonetos de pé quebrado, sem parar ouviu Silvinha Telles num compacto cantando ah-Dindi-se-soubesses-o-bemque-eu-te-quero-o-mundo-seria-Dindi-lindo-Dindi...
Até aquele dia.

MARTE

Era sempre verão quando alguma coisa acontecia. Talvez porque no verão as pessoas tiravam cadeiras para fora de casa e, pelas calçadas, olhando estrelas, falavam de tudo que não costumavam falar durante o dia. Ele tinha aprendido o jeito de se confundir com as sombras, sem que o notassem. Tinha-se tornado uma sombra à espreita do que nunca era dito claramente, à beira do momento em que não haveria mais nenhum segredo a descobrir e a vida, então, se tornasse crua e visível, por tê-la tocado ele mesmo, não por ouvir dizer.
Frase após frase, ficou ouvindo:
- E a filha da Lucy, tu já soube?
- Quem, a Beatriz?
- E a Lucy tinha outra filha, criatura?
Perguntei por perguntar. Que aconteceu?
- Pois diz que morreu, em Porto Alegre.
- Mas não me conta, criatura. Quando?
- Ontem, tresantontem. Não sei direito. Vão enterrar lá mesmo.
- Que barbaridade Tão novinha.
- Pois é. Mas uma perdida. Não tinha nem dezesseis anos.
- Um guria bonitinha. Meio espevitada, mas jeitosinha.
- Diz que morreu grávida.
- Pelo amor de Deus, não me conta.
- Que sabia que ia morrer. Aí deu um desgosto, emputeceu de repente.
- Mas quem era o pai?
- Deus é que sabe. Só aqui no Paço, retoçou com todos. O Cacá da Zulma, o Luizão da Lia, o Eira do Otaviano. Fora os de lá, que ninguém sabe.
- Que coisa de louco.
- Diz que a cabeça rachou toda antes de morrer.
- Como, rachou?
- Pois rachou, ué. Que nem porongo no sol. A tal da doença.
- Mas a pobre da Lucy. Primeiro o marido, depois a filha.
- Cada vivente com a sua sina.
- A pobre da Beatriz.
- Que Deus a tenha.
- Escuta, teu filho não tinha um rabicho por ela?
- Tinha? (Tanto tempo hoje, a garrafa de vinho quase vazia e a voz travada de Marjanne Faithfull cantando As Tears Goes By, tantas dores novas, e tão inesperadas, tivesse visto de lá, naquele tempo, com aqueles olhos que nunca mais teria.) Tinha tido mesmo - tão grosseiro, como se diz? - um rabicho por Beatriz? Não sabia responder direito.
Deve ter olhado para cima e visto a estrela vermelha (seria Marte?) que naquele verão costumava brilhar justamente sobre a casa da Morocha. Teve um impulso, coice no peito, suor na testa. Mas esperou que o assunto mudasse, virando página após página de O Cruzeiro, jogado no sofá-cama da sala. David Nasser, disco voador, Márcia e Maristela, candangos, Odete Lara, coisas assim. Só depois de ter remanchado horas pela casa - outra vez então aquela coisa grossa, aquela coisa porca, aquela coisa furiosa dando voltas dentro dele - resolveu emergir devagarinho das sombras para a luz do poste sobre as pessoas sentadas na calçada.
E visto assim, à luz do poste, dos cigarros, vaga-lumes e estrelas, camisa aberta ao peito, as duas mãos enfiadas fundo nos bolsos, parecia tão seguro e decidido que ninguém teria coragem de negar absolutamente nada quando pediu:
- Pai, me empresta o auto?

POEIRA

Deu a partida e enveredou pelos barrancos em direção à casa da Morocha. Alto do chão.
- El hermano de Tonico? - ela perguntou, oferecendo a cuja de mate novo, dente de ouro na frente. - Entonces, eres tu? Bién que él me tenha hablado, muy guapo.
Os anéis cintilaram quando ela abriu a porta para que ele penetrasse no interior enfumaçado. Já estavam lá, ou chegariam depois, não lembrava, o Caramujo, o Pancho, o Bira e talvez um ou outro daqueles bagaceiras todos que tinham tocado em Beatriz. Não falou com ninguém. Sentou sozinho numa mesa, pediu um maço de Hudson com ponta, uma cerveja. Antes que pedisse a segunda, uma loira meio velha, olhos verdes e falha num dente, pediu licença para sentar com ele. Usava saia justa de veludo de cor viva, de que nunca mais conseguiu lembrar a cor exata, embora tivesse certeza de que não era verde-musgo nem azul-marinho.
Na manhã seguinte, quando Toninho aos berros finalmente conseguiu acordá-lo, lembrava apenas de ter pedido para ouvir O Destino Desfolhou, depois de uma vomitada espetacular bem no meio da sala. Mais que tudo, das pernas escancaradas de uma loira meio velha numa cama de lençóis com cheiro estranho. O resto, névoa opaca, gosto de palha na boca.
Hoje - tantos anos depois, neurônios arrebentados de álcool, drogas, insônia, rejeições, e a memória trapaceia, mesmo com a atenção voltada inteira para o centro seco daquilo que era denso e foi-se dispersando aos poucos, como se perdem o tempo e as emoções, poeira varrida, por mais esforços que faça, plena madrugada, sede familiar, telefone - mudo - não consegue lembrar de quase mais nada além disto tudo que tentou ser dito sobre Beatriz ou ele mesmo ou aquilo que agora chama, com carinho e amargura, de: Aquele Tempo.
Tempo, faz tanto tempo, repetem - esquece. Continuam a dizer coisas que ele não entende.

Caio Fernando Abreu

Poe


Edgar Poe se miró al espejo y se dijo:
— Ese hombre del espejo no sufre,
es un actor que imita mi sufrimiento.

El hombre del espejo se dijo:
— Ese hombre no sufre,
finge sufrir para que yo sufra imitándolo.

Edgar Poe mirou-se no espelho e se disse:
— Este homem do espelho não sofre,
é um ator que imita meu sofrimento.
O homem do espelho se disse:
— Este homem não sofre,
finge sofrer para que eu sofra imitando-o.


William Ospina

"Não consigo  imaginar o universo sem a interjeição de Edgar Allan Poe.
Poe, que gerou Baudelaire, que gerou Mallarmé, que gerou Valéry, que gerou... "

Jorge Luis Borges

Pense neles...




domingo, 22 de novembro de 2009

As Coisas





O encanto
sobrenatural
que há
nas coisas da natureza!
No entanto, amiga,
se nelas algo te dá
encanto ou medo,
não me digas que seja feia
ou má,
é, acaso, singular...
E deixa-me dizer-te em segredo
um dos grandes segredos do mundo:
- Essas coisas que parece 
não terem beleza
nenhuma
- é simplesmente porque
não houve nunca quem lhes desse ao menos
um segundo

olhar! 


Mário Quintana

Os versos que te dou



Ouve estes versos que te dou, eu
os fiz hoje que sinto o coração contente
enquanto teu amor for meu somente,
eu farei versos...e serei feliz...

E hei de fazê-los pela vida afora,
versos de sonho e de amor, e hei depois
relembrar o passado de nós dois...
esse passado que começa agora...

Estes versos repletos de ternura são
versos meus, mas que são teus, também...
Sozinha, hás de escutá-los sem ninguém que
possa perturbar vossa ventura...

Quando o tempo branquear os teus cabelos

hás de um dia mais tarde, revivê-los nas

lembranças que a vida não desfez...



E ao lê-los... com saudade, em tua dor,
hás de rever, chorando, o nosso amor,
e hás de lembrar, também, de quem os fez...

Se nesse tempo eu já tiver partido
e outros versos quiseres, teu pedido
deixa ao lado da cruz para onde eu vou...

Quando lá, novamente, então tu fores,
podes colher do chão todas as flores
pois são versos de amor que ainda te dou!..


J.G. de Araújo Jorge

Se beber, NÃO dirija!

sábado, 21 de novembro de 2009

 François Batet

..É preciso não esquecer e respeitar a violência que temos.
As pequenas violências salvam-nos das grandes.
Minhas desequilibradas palavras são tentativas de equilíbrio interno, poderia dizer não vai se repetir, mas estaria me repetindo outra vez… “Amar será dar de presente um ao outro a própria solidão? Pois é a coisa mais última que se pode dar de si.”


Clarice Lispector

Todas Formas

John Paul


Amores impossíveis
Amores platônicos
Amores distantes
Amores distintos.

Amor de agora
Amor antigo
Amor repentino
Eterno amor.

Amar sem fim
Amar sem medo
Amar de novo
Amar de qualquer forma.

Um amor na terra
Outro no céu
Se encontram na linha do horizonte
Se amam mesmo assim.


Carolina Salcides

Ele me bebeu

É. Aconteceu mesmo.

Serjoca era maquilador de mulheres. Mas não queria nada com mulheres. Queria homens.

E maquilava Aurélia Nascimento. Aurélia era bonita e, maquilada, ficava deslumbrante. Era loura, usava peruca e cílios postiços. Ficaram amigos. Saíam juntos, essa coisa de ir jantar em boates.

Todas as vezes que Aurélia queria ficar linda ligava para Serjoca. Serjoca também era bonito. Era magro e alto.

E assim corriam as coisas. Um telefonema e marcavam encontro. Ela se vestia bem, era caprichada. Usava lentes de contato. E seios postiços. Mas os seus mesmos era lindos, pontudos. Só usava os postiços porque tinha pouco busto. Sua boca era um botão de vermelha rosa. E os dentes grandes, brancos.

Um dia, às seis horas da tarde, na hora do pior trânsito, Aurélia e Serjoca estavam em pé junto do Copacabana Palace e esperavam inutilmente um táxi. Serjoca, de cansaço, encostara-se numa árvore. Aurélia impaciente. Sugeriu que dessem ao porteiro dez cruzeiros para que ele lhes arranjasse uma condução. Serjoca negou: era duro para soltar dinheiro.

Eram quase sete horas. Escurecia. O que fazer?

Perto deles estava Affonso Carvalho. Industrial de metalurgia. Esperava o seu Mercedes com chofer. Fazia calor, o carro era refrigerado, tinha telefone e geladeira. Affonso fizera quarenta anos no dia anterior.

Viu a impaciência de Aurélia que batia com os pés na calçada. Interessante essa mulher, pensou Affonso. E quer carro. Dirigiu-se a ela:

- A senhorita está achando dificuldade de condução?

- Estou aqui desde as seis horas e nada de um táxi passar e nos pegar! Já não agüento mais.

- Meu chofer vem daqui a pouco, disse Affonso. Posso levá-los a alguma parte?

- Eu lhe agradeceria muito, inclusive porque estou com dor no pé.

Mas não disse que tinha calos. Escondeu o defeito. Estava maquiladíssima e olhou com desejo o homem. Serjoca muito calado.

Afinal veio o chofer, desceu, abriu a porta do carro. Entraram os três. Ela na frente, ao lado do chofer, os dois atrás. Tirou discretamente o sapato e suspirou de alívio.

- Para onde vocês querem ir?

- Não temos propriamente destino, disse Aurélia cada vez mais acesa pela cara máscula de Affonso.

Ele disse:

- E se fôssemos ao Number One tomar um drinque?

- Eu adoraria, disse Aurélia. Você não gostaria, Serjoca?

- É claro, preciso de uma bebida forte.

Então foram para a boate, a essa hora quase vazia. E conversaram. Affonso falou de metalurgia. Os outros dois não entendiam nada. Mas fingiam entender. Era tedioso. Mas Affonso estava entusiasmado e, embaixo da mesa, encostou o pé no pé de Aurélia. Justo no pé que tinha calo. Ela correspondeu, excitada. Aí Affonso disse:

- E se fôssemos jantar na minha casa? Tenho hoje escargots e frango com trufas. Que tal?

- Estou esfaimada.

E Serjoca mudo. Estava também aceso por Affonso.

O apartamento era atapetado de branco e lá havia escultura de Bruno Giorgi. Sentaram-se, tomaram outro drinque e foram para a sala de jantar. Mesa de jacarandá. Garçom servindo à esquerda. Serjoca não sabia comer escargots e atrapalhou-se todo com os talheres especiais. Não gostou. Mas Aurélia gostou muito, se bem que tivesse medo de ter hálito de alho. Mas beberam champanha francesa durante o jantar todo. Ninguém quis sobremesa, queriam apenas café.

E foram para a sala. Aí Serjoca se animou. E começou a falar que não acabava mais. Lançava olhos lânguidos para o industrial. Este ficou espantado com a eloqüência do rapaz bonito. No dia seguinte telefonaria para Aurélia para lhe dizer: o Serjoca é um amor de pessoa.

E marcaram novo encontro. Destava vez num restaurante, o Albamar. Comeram ostras para comerçar. De novo Serjoca teve dificuldade de comer as ostras. Sou um errado, pensou.

mas antes de se encontrarem, Aurélia telefonou para Serjoca: precisava de maquilagem urgente. Ele foi à sua casa.

Então, enquanto era maquilada, pensou: Serjoca está me tirando o rosto.

A impressão era que ele apagava os seus traços: vazia, uma cara só de carne. Carne morena.

Sentiu mal-estar. Pediu licença e foi ao banheiro para se olhar ao espelho. Era isso mesmo que ela imaginara: Serjoca tinha anulado o seu rosto. Mesmo os ossos - e tinha uma ossatura espetacular - mesmo os ossos tinham desaparecido. Ele está me bebendo, pensou, ele vai me destruir. E é por causa do Affonso.

Voltou sem graça. No restaurante quase não falou. Affonso falava mais com Serjoca, mal olhava para Aurélia: estava interessado no rapaz.

Enfim, enfim acabou o almoço.

Serjoca marcou encontro com Affonso para de noite, Aurélia disse que não podia ir, estava cansada. Era mentira: não ia porque não tinha cara para mostrar.

Chegou em casa, tomou um banho de imersão com espuma, ficou pensando: daqui a pouco ele me tira o corpo também. O que fazer para recuperar o que fora seu? A sua individualidade?

Saiu da banheira pensativa. Enxugou-se com uma toalha enorme, vermelha. Sempre pensativa. Pesou-se na balança: estava com bom peso. Daí a pouco ele me tira também o peso, pensou.

Foi ao espelho. Olhou-se profundamente. Mas ela não era mais nada.

- Então - então de súbito deu uma bruta bofetada no lado esquerdo do rosto. Para se acordar. Ficou parada olhando-se. E, como se não bastasse, deu mais duas bofetadas na cara. Para encontrar-se.

E realmente aconteceu.

No espelho viu enfim um rosto humano, triste, delicado. Ela era Aurélia Nascimento. Acabara de nascer. Nas-ci-men-to.


Clarice Lispector


Meus olhos te viram triste
Olhando pro infinito
Tentando ouvir o som do próprio grito

E o louco que ainda me resta
Só quis te levar pra festa
Você me amou de um jeito tão aflito

Que eu queria poder te dizer sem palavras
Eu queria poder te cantar sem canções
Eu queria viver morrendo em sua teia
Seu sangue correndo em minha veia
Seu cheiro morando em meus pulmões

Cada dia que passo sem sua presença
Sou um presidiário cumprindo sentença
Sou um velho diário perdido na areia
Esperando que você me leia
Sou pista vazia esperando aviões

Sou o lamento no canto da sereia
Esperando o naufrágio das embarcações

Vander Lee

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Para uma Menina Flor



"E porque eu me levanto para recolher você no meu abraço, e o mato à nossa volta se faz murmuroso e se enche de vaga-lumes enquanto a noite desce com seus segredos, suas mortes, seus espantos - eu sei, ah, eu sei que o meu amor por você é feito de todos os amores que eu já tive, e você é a filha dileta de todas as mulheres que eu amei; e que todas as mulheres que eu amei, como tristes estátuas ao longo da aléia de um jardim noturno, foram passando você de mão em mão, de mão em mão até mim, cuspindo no seu rosto e enfeitando sua fronte de grinaldas; foram passando você até mim entre cantos, súplicas, vociferações - porque você é linda, porque você é meiga e sobretudo porque você é uma menina com uma flor." 

Vinicius de Moraes

Minhas primeiras lembranças da infância são do vilarejo de Qunu, nas montanhas onduladas e nos vales verdes do Território de Transkei, na região sudeste da África do Sul. Foi em Qunu que passei os anos mais felizes de minha meninice, rodeado por uma família tão cheia de bebês, crianças, tias e tios que não me lembro de estar sozinho em nenhum único momento em que eu estivesse acordado.

Foi lá que meu pai me ensinou, pelo modo como vivia sua vida, o senso de justiça que carreguei comigo por todas as décadas que já vivi. Observando-o de perto, aprendi a defender e lutar por minhas crenças.

Foi em Qunu que minha mãe me deu as histórias que encheram minha imaginação, ensinando-me de bondade e generosidade enquanto preparava as refeições em uma fogueira, mantendo-me alimentado e saudável. Em meus tempos de menino pastor, aprendi a amar o campo, os espaços abertos e as belezas simples da natureza. Foi naquele momento e naquele lugar que aprendi a amar esta terra.

Com meus amigos da meninice, aprendi dignidade e o significado da honra. Ouvindo e assistindo reuniões dos anciões da tribo, aprendi a importância da democracia e de dar a todos uma chance de ser ouvido. E aprendi sobre meu povo, a nação Xhosa. Com meu benfeitor e guia, o Regente, aprendi a história da África e da luta dos africanos para serem livres.

Foram estes primeiros anos que determinaram como seriam vividos os muitos anos plenos de minha longa vida. Sempre que paro um momento e olho para trás, sinto imensa gratidão por meu pai e minha mãe, e por todas as pessoas que me ajudaram a crescer quando eu era apenas um menino, e que me transformaram no homem que sou hoje.

Foi isso que aprendi enquanto criança. Agora que sou um homem velho, são as crianças que me inspiram.

Meus queridos jovens: vejo a luz em seus olhos, a energia de seus corpos e a esperança que está em seu espírito. Sei que são vocês, e não eu, que farão o futuro. São vocês, e não eu, que consertarão nossos erros e levarão adiante tudo o que está certo no mundo.

Se eu pudesse, de boa fé, prometer-lhes a infância que eu tive, eu prometeria. Se eu pudesse prometer-lhes que cada um dos seus dias será um dia de aprendizado e de crescimento, eu prometeria. Se eu pudesse prometer-lhes que nada – nem guerras, nem pobreza, nem injustiças – privará vocês de seus pais, de seu nome, de seu direito, a uma boa infância, e que essa infância levará vocês a uma vida plena e frutífera, eu prometeria.

Mas prometerei apenas o que eu sei que posso cumprir. Vocês tem a minha palavra de que continuarei a aplicar tudo que aprendi no começo de minha vida, e tudo que aprendi a partir de então, para proteger seus direitos. Trabalharei todo os dias de todas as maneiras que conheço para apoiá-los enquanto crescem. Buscarei suas vozes e suas opiniões, e farei com que outras pessoas também as ouçam.

 Nelson Mandela

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Grandes Poetas




" Poeta é um ente que lambe as palavras e depois se alucina."

Manoel de Barros

Sugestão


Antes que venham ventos e te levem
do peito o amoreste tão belo amor,
que deu grandeza e graça à tua vida —,
faze dele, agora, enquanto é tempo,
uma cidade eterna — e nela habita.

Uma cidade, sim. Edificada
nas nuvens, não — no chão por onde vais,
e alicerçada, fundo, nos teus dias,
de jeito assim que dentro dela caiba
o mundo inteiro: as árvores, as crianças,
o mar e o sol, a noite e os passarinhos,
e sobretudo caibas tu, inteiro:
o que te suja, o que te transfigura,
teus pecados mortais, tuas bravuras,
tudo afinal o que te faz viver
e mais o tudo que, vivendo, fazes.

Ventos do mundo sopram; quando sopram,
ai, vão varrendo, vão, vão carregando
e desfazendo tudo o que de humano
existe erguido e porventura grande,
mas frágil, mas finito como as dores,
porque ainda não ficando — qual bandeira
feita de sangue, sonho, barro e cântico —
no próprio coração da eternidade.
Pois de cântico e barro, sonho e sangue,
faze de teu amor uma cidade,
agora, enquanto é tempo.

Uma cidade
onde possas cantar quando o teu peito
parecer, a ti mesmo, ermo de cânticos;
onde posssas brincar sempre que as praças
que percorrias, dono de inocências,
já se mostrarem murchas, de gangorras
recobertas de musgo, ou quando as relvas
da vida, outrora suaves a teus pés,
brandas e verdes já não se vergarem
à brisa das manhãs.

Uma cidade
onde possas achar, rútila e doce,
a aurora que na treva dissipaste;
onde possas andar como uma criança
indiferente a rumos: os caminhos,
gêmeos todos ali, te levarão
a uma aventura só — macia, mansa —
e hás de ser sempre um homem caminhando
ao encontro da amada, a já bem-vinda
mas, porque amada, segue a cada instante
chegando — como noiva para as bodas.

Dono do amor, és servo. Pois é dele
que o teu destino flui, doce de mando:
A menos que este amor, conquanto grande,
seja incompleto. Falte-lhe talvez
um espaço, em teu chão, para cravar
os fundos alicerces da cidade.
Ai de um amor assim, vergado ao vínculo
de tão amargo fado: o de albatroz
nascido para inaugurar caminhos
no campo azul do céu e que, entretanto,
no momento de alçar-se para a viagem,
descobre, com terror, que não tem asas.

Ai de um pássaro assim, tão malfadado
a dissipar no campo exíguo e escuro
onde residem répteis: o que trouxe
no bico e na alma — para dar ao céu.

É tempo. Faze
tua cidade eterna, e nela habita:
antes que venham ventos, e te levem
do peito o amor — este tão belo amor
que dá grandeza e graça à tua vida


Thiago de Mello

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Abbas Kiarostami

Chove? Nenhuma chuva cai...
Então onde é que eu sinto um dia
Em que o ruído da chuva atrai
A minha inútil agonia?

Onde é que chove, que eu o ouço?
Onde é que é triste, ó claro céu?
Eu quero sorrir-te, e não posso,
Ó céu azul, chamar-te de meu...

E o escuro ruído da chuva
É constante em meu pensamento.
Meu ser é a invisível curva
Traçada pelo som do vento...

E eis que ante o sol e o azul do dia,
Como se a hora me estorvasse,
Eu sofro... E a luz e a sua alegria
Cai aos meus pés como um disfarce.

Ah, na minha alma sempre chove.
Há sempre escuro dentro de mim.
Se escuro, alguém dentro de mim ouve
A chuva, como a voz de um fim...

Os céus da tua face, e os derradeiros
Tons do poente segredam nas arcadas...
No claustro seqüestrando a lucidez
Um espasmo apagado em ódio à ânsia

Põe dias de ilhas vistas do convés
No meu cansaço perdido entre os gelos,
E a cor do outono é um funeral de apelos
Pela estrada da minha dissonância... "

Fernando Pessoa

Melodrama

Hamish Blakely



Eu sou uma mulher espantada

o amor me molha toda
me deixa com dor nas costas

ele diz no fundo gostas

no fundo ele tem razão

o amor tinha de ser
mais uma contradição
tinha de ser verdadeiro
confuso e biscateiro
como em toda situação

tinha de ter remorso
e um querer e não posso
e toda essa aflição
tinha de me dar pancada
e eu cantar não dói nem nada
com um radinho na mão

tinha de fazer ameça
que é pra poder ter mais graça
como toda relação
tinha de ser dolorido


rasgar um pouco o meu vestido

depois me pedir perdão

e como em todo melodrama
terminar na minha cama
até por falta de opção.

Bruna Lombardi


Amanhecer: o mais antigo
sinal de vida sobre a Terra.
Amanhecer: ainda o mais novo
sinal de vida sobre a Terra.
Amanhecer e vida humana
se entrelaçam na mesma luz.

Carlos Drummond de Andrade

terça-feira, 17 de novembro de 2009

Navegar é Preciso

 Pedro Ruiz


“Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa:
"Navegar é preciso; viver não é preciso”.

Quero para mim o espírito [d]esta frase,
transformada a forma para a casar como eu sou:

Viver não é necessário; o que é necessário é criar.
Não conto gozar a minha vida; nem em gozá-la penso.
Só quero torná-la grande,
ainda que para isso tenha de ser o meu corpo e a (minha alma) a lenha desse fogo.

Só quero torná-la de toda a humanidade;
ainda que para isso tenha de a perder como minha.
Cada vez mais assim penso.

Cada vez mais ponho da essência anímica do meu sangue
o propósito impessoal de engrandecer a pátria e contribuir
para a evolução da humanidade.

É a forma que em mim tomou o misticismo da nossa Raça.“

Fernando Pessoa In Navegar é Preciso

"Navigare necesse; vivere non est necesse” - latim, frase de Pompeu, general romano, 106-48 aC., dita aos marinheiros, amedrontados, que recusavam viajar durante a guerra, cf. Plutarco, in Vida de Pompeu]


Fernando Pessoa




"Para um escritor, uma das obras mais importante – talvez mesmo a mais importante de todas – é a imagem que de si deixa na memória dos homens - para lá das páginas que escreveu. "


Jorge Luís Borges


- Vem ao jardim na primavera, disseste.
- Aqui estão todas as belezas, o vinho e a luz.



Que posso fazer com tudo isso sem ti?
E, se estás aqui, para que preciso disso?


Jalaluddin Rumi

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Da morte. odes mínimas

Adolf Hering

I

Te batizar de novo
Te nomear num trançado de teias
E ao invés de Morte
Te chamar Insana
Fulva
Feixe de flautas
Calha
Candeia
Palma, por que não ?
Te recriar nus arco-íris
Da alma, nuns possíveis
Construir teu nome
E cantar teus nomes perecíveis
Palha
Corça
Nula
Praia
Por que não ?

****
I

Te baptiser de nouveau
Te nommer dans une tresse de tils
Et au lieu de t’ appeler La Mort
Te dire Insensée
Fauve
Faisceau de flûtes
Caniveau
Chandelle
Palme, pourquoi pas ?
Te recréer nus arcs-en-ciel
De l’ âme, dans les possibles
Construire ton nom
Et chanter tes noms périssables
Paille
Biche
Nulle
Plage
Pourquoi pas ?


Hilda Hilst