sábado, 24 de setembro de 2022



Ai, quem me dera

Ai quem me dera, terminasse a espera 

E retornasse o canto simples e sem fim... 

E ouvindo o canto se chorasse tanto 

Que do mundo o pranto se estancasse enfim 


Ai quem me dera percorrer estrelas 

Ter nascido anjo e ver brotar a flor 

Ai quem me dera uma manhã feliz 

Ai quem me dera uma estação de amor 


Ah! Se as pessoas se tornassem boas 

E cantassem loas e tivessem paz 

E pelas ruas se abraçassem nuas 

E duas a duas fossem ser casais 


Ai quem me dera ao som de madrigais 

Ver todo mundo para sempre afins 

E a liberdade nunca ser demais 

E não haver mais solidão ruim 


Ai quem me dera ouvir o nunca mais 

Dizer que a vida vai ser sempre assim 

E finda a espera ouvir na primavera 

Alguém chamar por mim...


Vinicius de Moraes

 

Dor

 



Quisera esta tarde divina de outubro 

passear pela beira longínqua do mar; 

Que a areia de ouro, e as águas verdes, 

e os céus puros me vissem passar. 


Ser alta, soberba, perfeita, quisera, 

como uma romana, para concordar 

com as grandes ondas, e as rocas mortas 

e as largas praias que apertem o mar. 


Com o passo lento, e os olhos frios 

e a boca muda, deixar-me levar; 

ver como se rompem as ondas azuis, 

contra os granitos e não pestanejar; 

ver como as aves de rapina se comem 

os peixes pequenos e não despertar; 


pensar que puderam as frágeis barcas 

Afundar-se nas águas e não suspirar; 

Ver que se adianta a garganta ao ar, 

O homem mais belo não desejar amar… 


Perder o olhar, distraidamente, 

perde-lo e que nunca o volte a encontrar: 

E figura erguida entre céu e praia 

sentir-me o esquecimento perene do mar. 


Afonsina Storni

Arco-Íris



Às vezes

é claro

você sorri

e não importa quão linda

ou quão feia

quão velha

ou quão jovem

quão muito

ou quão pouco

você realmente

seja


sorria

como se fosse

uma revelação

e seu sorriso anula

todas as anteriores

caducam no momento

seus rostos como máscaras

seus olhos duros

frágeis

como espelhos ovais

sua boca de morder

seu queixo de capricho

suas bochechas perfumadas

suas pálpebras

seu medo


sorria

e você nasce

assume o mundo

olha

e ao olhar

indefesa

nua

transparente


e por aí

se o sorriso vem

de muito

muito dentro

você pode chorar

simplesmente

sem dilacerar-se

sem desesperar-se

sem convocar a morte

nem sentir-se vazia


chorar

só chorar

então seu sorriso

se ainda existe

se torna um arco-íris.


Mario Benedetti

 

Antonio Tordesillas 


nasce agora. meu amor. absorve o hálito. de tudo o que é começo. a primeira ranhura. do ar. a primeiro desfalecimento. do olhar. o novelo da chuva. o sangrar. das fontes. grava. no cordão umbilical. as iniciais do meu nome. o mesmo tipo de letra. do cinto que compraste. para me trazeres afivelada a ti. vem para a rua. perde-te. diz-me que não consegues governar as mãos. ignora as fronteiras. do razoável. faz de conta. que ainda não aprendeste a viver. a desilusão. a tristeza. marca comigo. o encontro inicial. sente como é. o estalar do sangue no rosto. o que é não saber. pronunciar ainda: gosto-te. dá-me. a provar o suor dos ombros. antes de nomeares o que quer que seja. deixa as lágrimas despenharem-se. chora. o alegre arrepio. o meu corpo. o teu corpo. ainda estão. por desalfandegar. entregamo-nos. no porão escuro. à festa tribal.ao contrabando das carícias. no alto mar. onde. ainda. não há leis. nem rótulos. que restrinjam. o desembarque. dos amantes. sem vínculo. nasce agora. meu amor. e. de olhos fechados. toca-me. antes que o conhecimento. envelheça o desejo.

Alberto Serra

 


Escrever é sem aviso prévio. Eis portanto que começo com o instante igual ao de quem se lança no suicídio: o instante é de repente. E eis que é de repente que entro no pleno meio de uma festa. 

*

Eu queria que no meu modo de te fixar para mim mesmo nada tivesse recortes e definições: tudo se entremoveria num moto circular.

*

Até onde vou eu e em onde já começo a ser Ângela? Somos frutos da mesma árvore? Não — Ângela é tudo o que eu queria ser e não fui. O que é ela? ela é as ondas do mar. Enquanto eu sou floresta espessa e sombria. Eu sou no fundo. Ângela se espalha em estilhaços brilhantes. Ângela é a minha vertigem. Ângela é a minha reverberação, sendo emanação minha, ela é eu. Eu, o autor: o incógnito. É por coincidência que eu sou eu. Ângela parece uma coisa íntima que se exteriorizou. Ângela não é um "personagem". É a evolução de um sentimento. Ela é uma ideia encarnada no ser. No começo só havia a ideia. Depois o verbo veio ao encontro da ideia. E depois o verbo já não era meu: me transcendia, era de todo o mundo, era de Ângela.

*

Eu desbravo Ângela. Tenho que transpor montanhas e áreas desoladas, batidas por ciclônicas tempestades, inundadas por chuvas torrenciais e crestadas sob um alto e voraz sol inclemente como a justiça ideal. Eu percorro essa mulher como um trem fantasma, por colinas e vales, através de cidades adormecidas. Minha esperança é encontrar o esboço de uma resposta. Avanço com cuidado.

*

Gelado e atordoante.

Eu imaginei o barulho límpido de gotas de água caindo na água — só que esse mínimo e delicado ruído seria aumentado até além do som, em enormes gotas cristalinas com um badalar molhado de sinos que submergem. No ar gelado e atordoante as estátuas adormecidas.

Estou escrevendo às apalpadelas.

*

Noto que os meus imitadores são melhores que eu. A imitação é mais requintada que a autenticidade em estado bruto. Estou com a impressão de que ando me imitando um pouco. O pior plágio é o que se faz de si mesmo. A luta é dura: se eu for fraco morro.

*

AUTOR.- EU SOU O autor de uma mulher que inventei e a quem dei o nome de Ângela Pralini. Eu vivia bem com ela. Mas ela começou a me inquietar e vi que eu tinha de novo que assumir o papel de escritor para colocar Ângela em palavras porque só então posso me comunicar com ela.

Eu escrevo um livro e Ângela outro: tirei de ambos o supérfluo.

Eu escrevo à meia-noite porque sou escuro. Ângela escreve de dia porque é quase sempre luz alegre.

Este é um livro de não memórias. Passa-se agora mesmo, não importa quando foi ou é ou será esse agora mesmo. É um livro como quando se dorme profundo e se sonha intensamente — mas tem um instante em que se acorda, se desvanece o sono, e do sonho fica apenas um gosto de sonho na boca e no corpo, fica apenas a certeza de que se dormiu e se sonhou. Faço o possível para escrever por acaso. Eu quero que a frase aconteça. Não sei expressar-me por palavras. O que sinto não é traduzível. Eu me expresso melhor pelo silêncio. Expressar-me por meio de palavras é um desafio. Mas não correspondo à altura do desafio. Saem pobres palavras. E qual é mesmo a palavra secreta? Não sei e por que a ouso? Só não sei porque não ouso dizê-la?


Clarice Lispector, Um sopro de vida 

A pétala


 

 leve e rubra,

brinca em minhas mãos a pétala.

ora na esquerda, ora na direita.

 

cendal fina fragrância,

adentra em meus poros essa pétala.

ora em mim completo, ora em mim inteiro.

 

e como só o que fica é o verdadeiro,

de súbito uma certeza sobrevém:

 

eu sei que tenho a pétala,

ela sabe que me tem.

  

Antoniel Campos

 

Anna Marinova


O céu sob o teto
espera comigo que despertes.
O meu único relógio
é a sombra imóvel no chão do quarto.
A curva da terra
em tua pálpebra desenhada:
no teu sono me embala
Dormes-me.

Mia Couto



sexta-feira, 23 de setembro de 2022

Campo Magnético

fabian perez



"Agora eu já sabia dele, já tinha conseguido desvendar a fantasia, já quase na quarta casa onde se compreendem os mecanismos da alma, o id, substrato da psique e as grades, as cancelas, quando surgiu a oportunidade de nos olharmos longamente,

ah! os freios, e eu senti uma atração alucinada por ele. Isso é tudo. Atração. Atração.

Faria qualquer coisa por ele. Viagens interplanetárias. Encontros furtivos. Três dias de ônibus para Porto Alegre. Qualquer coisa. Seria capaz de mentir. Estranhos espaços da mente. Atmosferas. 

Por ele até abstinência sexual. Um homem comum, apenas isso. Mas eu sabia que ele trazia latente aquela coisa absoluta. Definida. Demoníaca. Delírios, pactos, bastava ver como tragava a fumaça, de maneira perigosa. Por ele eu me arrastava no tapete, pensei, ah! se ele soubesse, decorei nomes de árvores, espécies, qualidades quando ele me disse que gostava e eu só de vê-lo falar de eucaliptos, ipês, espatódias, bauínias, algarobas, magnólias, tibuchinas, oleandros, muçuendas, acácias, paineiras, plátanos, olmos e resedás, pensava involuntariamente em sexo.

Ele dava claro sinais de possuir uma outra identidade debaixo do mesmo signo. E sentia, como eu, uma atração pelo marginal, o lado escuro da vida, típico dos que tem o sol em Touro.

- Quero a secreta - eu disse de repente no susto. Ele ficou me olhando de longe, as pessoas passando. Acho que me entendeu, deve saber da própria loucura e eu não entendo porque ele se defende desse jeito, um fugitivo ou um prisioneiro de si mesmo, como diria Lao-Tse, e eu suponho que as vezes se manifeste uma atração como a minha, doida pra agarrar, grudar, chupar, lamber, ah! as febres, os demônios compulsivos.

Eu ia gritar pra ele que seria um prazer se pudéssemos rolar juntos, rolar, rolar, um prazer, rolar, gemer.

- Quero a secreta - eu disse - quero descobrir aquela que você nem conheça. - E como havia pessoas em volta eu não falei nada da atração e nem de todo resto. Para os esquisofrênicos é facil, mas ele tem família, nome, posição, estas coisas atrapalham você sabe."


Bruna Lombardi

 

Aaron Griffin


As mulheres loucas arrumam os quartos, fazem

as camas desfeitas, empilham camisas e calças,

abotoam os cintos do infinito, prendem os laços

da sombra. Com os seus olhos cegos, enfiam

agulhas no buraco da vida, cosem as feridas

do amor que não tiveram, cantam devagar

a canção da idade fria. Dispo essas mulheres

no meu poema; espalho as suas roupas pelas cadeiras

do quarto; abro a cama onde as deito; rasgo

os pontos que acabaram de coser. O seu sexo -

seco pelos ventos de uma inquietação nocturna

- humedece-me os dedos. Desfolho os dias de março

enquanto desfloro os seus lábios. Por vezes,

as mulheres loucas abrem a porta da varanda,

respiram o perfume das trepadeiras brancas

da primavera, desmaiam com o sol.


Nuno Júdice


 

“Estude-me o quanto quiser, você não vai me conhecer, porque eu sou diferente em uma centena de maneiras daquilo que você vê ao me observar. Coloque-se atrás dos meus olhos e me veja como eu me vejo, pois eu escolhi morar num lugar onde seus olhos não podem alcançar.”

Rumi


 Que é o tempo, afinal? – perguntou Hans Castorp comprimindo o nariz com tamanha violência, que a ponta se tornou branca e exangue. – Quer me dizer isto? Percebemos o espaço com nossos sentidos, por meio da vista e do tato. Muito bem! Mas que órgão possuímos para perceber o tempo? Pode me responder a essa pergunta? Bem vê que não pode. Como é possível medir uma coisa da qual, no fundo, não sabemos nada, nada, nem sequer uma única das suas características? Dizemos que o tempo passa. Está bem, deixe-o passar. Mas para que possamos medi-lo... Espere um pouco! Para que o tempo fosse mensurável, seria preciso que decorresse de um modo uniforme; e quem lhe garante que é mesmo assim? Para a nossa consciência, não é. Somente o supomos, para a boa ordem das coisas, e as nossas medidas, permita-me esta observação, não passam de convenções... 

Thomas Mann, A Montanha Mágica



Cheio da tua ausência me angustio

a cada hora que passa... a cada instante...

- pelo meu pensamento, como um fio,

és uma gota d'água, tremulante...


Uma gota suspensa e cintilante,

límpida e imóvel como um desafio...

Tua ausência, - é a presença triunfante

daquela gota que ficou no fio. . .


As outras todas, céleres, pingaram,

e caíram na terra onde secaram,

só tu ficaste, última gota, assim


como uma estrela sem ter firmamento,

suspensa ao fio do meu pensamento

e a brilhar, sem cair... dentro de mim...


 J. G. de Araújo Jorge

Inútil sou





Por seguir das coisas o compasso, 

às vezes, quis neste século ativo, 

pensar, lutar, viver com o que vivo, 

ser no mundo algum parafuso a mais. 


Mas, atada ao sonho sedutor, 

do meu instinto voltei ao escuro poço, 

pois, como algum inseto preguiçoso 

e voraz, eu nasci para o amor. 


Inútil sou, pesada, torpe, lenta, 

meu corpo, ao sol estendido, se alimenta 

e só vivo bem no verão, 


quando a selva cheira e a enroscada 

serpente dorme em terra calcinada; 

a fruta se abaixa até minha mão. 


Alfonsina Storni

quinta-feira, 22 de setembro de 2022

deus existe



já desconfiava.

deus existe.

emboscado

na nudez

de uma mulher.

deus que não é

amostra de perfume.

deus que é polpa

água de côco.

angélica-silvestre

em corpo de mulher.

deus que colhe

todas

as essências

da terra.

senão é deus

que fabrica

bosques 

em pele de mulher.

deus não existe.


alberto serra


sim. o tempo é masculino. hora veloz a metralhar nos telhados. na mulher a contagem é outra. uma trégua. chuva miúda em pele de alabastro. ela sabe que os amores de verão são uma existência míope. espera. sabe que um dia também ela sentirá o ranger do arado nas arestas do corpo. ronda. tempestade que se esconde atrás das árvores. dá espaço. enxuga o desejo em panos de velas extraviadas. o tempo do homem habita num cego furacão. queima intervalos. evita os atalhos. ela. a mulher. pelo contrário. adora trilhos. caminhos quase. o sereno que chega da orla. cita o poeta: a ternura é húmida. e diz mais. a mulher. se a ternura não fosse húmida os rios não eram rios. as lágrimas dos amantes já não corriam para a foz. as bocas oxidavam. 

 alberto serra

 



Não chore à beira do meu túmulo,

eu não estou lá… eu não dormi.

Estou em mil ventos que sopram,

E na neve macia que cai.

Nos chuviscos suaves,

Nos campos de colheita de grãos.

Eu estou no silêncio da manhã.

Na algazarra graciosa,

De pássaros a esvoaçar em círculos.

No brilho das estrelas à noite,

Nas flores que desabrocham.

Em uma sala silenciosa.

No cantar dos pássaros,

Em cada coisa que lhe encantar.

Não chore à beira do meu túmulo desolado,

Eu não estou lá – eu não parti.


Mary Elizabeth Frye

quarta-feira, 21 de setembro de 2022

Onda

 




Quem falou de primavera

sem ter visto o teu sorriso,

falou sem saber o que era.


Pus o meu lábio indeciso

na concha verde e espumosa

modelada ao vento liso:


tinha frescuras de rosa,

aroma de viagem clara

e um som de prata gloriosa.


Mas desfez-se em coisa rara:

pérolas de sal tão finas

- nem a areia as igualara!


Tenho no meu lábio as ruínas

de arquiteturas de espuma

com paredes cristalinas...


Voltei aos campos de bruma,

onde as árvores perdidas

não prometem sombra alguma.


As coisas acontecidas,

mesmo longe, ficam perto

para sempre e em muitas vidas:


mas quem falou de deserto

sem nunca ver os meus olhos...

- falou, mas não estava certo.


Cecília Meireles


Salvação? Quem pretende salvar-se? Eu me escondi do tempo. Tenho o privilégio do desespero, admiro os insatisfeitos e os fracassados, que deixam fugir suas respostas. A história entronizou os atrozes. E no que concerne ao tempo, não desejo usufrui-lo, nem no agora como os poderosos, nem no porvir como os encurralados por seus sonhos.

Emil Cioran

 

Marco Busoni



Contavam as sereias que na tempestade dos seus olhos

os barcos adormeciam tontos, cansados das marés;

que os seus beijos sabiam a mar e que na sua pele crestada

pelo sol havia a cintilância das ondas ao meio-dia;

que os seus ombros lembravam promontórios e que neles

as mulheres deixavam naufragar as mãos e os lábios;

que uma noite tocara a lua com os seus dedos-mastros

e ouvira uma voz dentro de si, vinda de muito longe;

que era hábil com as redes, como com as palavras.

 

Alguém veio pedir-lhe que abandonasse os peixes

pelos homens. Em troca, receberia

um templo eterno, uma chave, o privilégio de decidir

todos os lugares da chuva, um nome novo

para poder negar o que vira antes.


Maria do Rosário Pedreira


Onde os olhos se fecham; onde o tempo 

Faz ressoar o búzio do silêncio; 

Onde o claro desmaio se dissolve 

No aroma dos nardos e do sexo; 

Onde os membros são laços, e as bocas 

Não respiram, arquejam violentas; 

Onde os dedos retraçam novas órbitas 

Pelo espaço dos corpos e dos astros; 

Onde a breve agonia; onde na pele 

Se confunde o suor; onde o amor.


José Saramago, in provavelmete alegria

Cem anos


 

Vejo mãos que me folheiam

buscando-me a fisionomia —

         mas já passei, agora

         sou apenas poesia.

 

Vejo rostos que me amam

tentando saber quem fui —

         sou um retrato, miragem

         que o tempo dilui.

 

Vejo braços que me acenam

chamando-me insistentemente —

         para que, se a folha que passa

         passa tão de repente?


Antonio Brasileiro

Canção de vidro



E nada vibrou...

Não se ouviu nada...

Nada...


Mas o cristal nunca mais deu o mesmo som.


Cala, amigo...

Cuidado, amiga...

Uma palavra só

Pode tudo perder para sempre...


E é tão puro o silêncio agora!


Mário Quintana, Canções

As pequenas gavetas do amor

 




Se for preciso, irei buscar um sol

para falar de nós:

ao ponto mais longínquo

do verso mais remoto que te fiz


Devagar, meu amor, se for preciso,

cobrirei este chão

de estrelas mais brilhantes

que a mais constelação,

para que as mãos depois sejam tão

brandas

como as desta tarde


Na memória mais funda guardarei

em pequenas gavetas

palavras e olhares, se for preciso:

tão minúsculos centros

de cheiros e sabores


Só não trarei o resto

da ternura em resto desta tarde,

que nem nos foi preciso:

no fundo do amor, tenho-a comigo:


quando a quiseres -


Ana Luísa Amaral, in IMAGIAS 


 "Medo de quê? Eu não sabia. Afinal de contas, a ideia que talvez certos acontecimentos escapassem às limitações das categorias de espaço, tempo e casualidade não era algo que pudesse abalar o mundo, algo de inaudito. Certos animais não pressentiam a tempestade e os tremores de terra? Não havia sonhos premonitórios da morte de alguém? Copos que se partiam inesperadamente? Tudo isso era natural no mundo em que até então vivera, mas eis que de repente parecia que eu era o único a saber disso. Perguntava a mim mesmo, perplexo, em que mundo caíra!"


Carl G. Jung

Memórias, Sonhos, Reflexões 

Vladimir Volegov


Tudo reduz-se a um único preceito,

que escondo, mas direi, chegada a hora.

Eu mais do que ninguém, a seu respeito,

mais que vivos e mortos, sei agora.

Jamais, por nada, confiaria a posse

desta palavra aos outros, todavia,

nem sequer a Tolstói – embora fosse

divino e eu só mortal – eu a diria.

Respondo pelo que é meu, e somente

uma coisa me ocupa a vida inteira:

o que sei bem melhor que toda gente,

quero dizê-lo. E da minha maneira.


Aleksander  Tvardovski


 

Toda coragem do coração é a

              Ressonância ao apelo do Ser,

que reúne nosso pensar no jogo do mundo.

No pensar cada coisa torna-se

                               Solitária e lenta.

Na paciência prospera a

                                 magnitude.

Quem pensa profundamente, deve

                     Profundamente errar.


Martin Heidegger

domingo, 11 de setembro de 2022



 Meus pensamentos são nómadas

e vagarosos

como a água que vem da montanha

e não sabe nada

do coração dos homens. O meu, por exemplo,

tem a leveza do vento

e corre para casa como se fosse

um cão que precede

os passos do dono.


Casimiro de Brito, Intensidades