domingo, 30 de junho de 2024

Marie-Marguerite Turner 

 

Pudesse eu não ter laços nem limites

Ó vida de mil faces transbordantes

Para poder responder aos teus convites

Suspensos na surpresa dos instantes!


Sophia de Mello Breyner Andresen

sábado, 29 de junho de 2024

 

“Quem não entende o seu silêncio provavelmente não entenderá as suas palavras.”

~ Elbert Hubbard


 Por favor,

respeita o meu silêncio,

o silêncio é a minha melhor arma.

Escutaste as minhas palavras

quando fiquei silenciosa?

Sentiste a beleza do que disse

quando não disse nada?


Nizar Qabbani

sexta-feira, 28 de junho de 2024

 


De todos os mitos criados em torno da mulher, nenhum se acha mais enraizado nos corações masculinos do que o do mistério feminino. Ele apresenta algumas vantagens, uma delas é a que permite usar a hipótese do mistério para manter inexplicável certos aspectos e características da psiquê feminina, que um pouco de sensibilidade e real interesse, dariam conta de desvendar. O homem que não ‘compreende’ a mulher sente-se satisfeito em substituir uma insuficiência subjetiva pessoal por uma resistência objetiva: ao invés de admitir sua ignorância, reconhece a presença de um mistério fora de si - é um álibi que lisonjeia ao mesmo tempo, a preguiça e a vaidade.

Seguramente, em certo sentido, a mulher é misteriosa, como todo mundo. Cada um só é sujeito para si; cada um só pode apreender a si unicamente em sua imanência. Deste ponto de vista, o outro é sempre mistério.

Simone de Beauvoir

quinta-feira, 27 de junho de 2024

Fulvio De Marinis

Gosto de palavras. (...) Vou de agora em diante escrever neste diário, em dias em que não haja mais o que fazer, as frases quase à beira de não ter sentido mas que soam como palavras amorosas. Dizer palavras sem sentido é minha grande liberdade. Pouco me importa ser entendida, quero o impacto das sílabas ofuscantes, quero o nocivo de uma palavra má. Na palavra está tudo. Quem me dera, porém, que eu não tivesse esse desejo errado de escrever. Sinto que sou impulsionada. Por quem? Eu quero escrever com palavras tão agarradas umas nas outras que não haja intervalos entre elas e entre eu. Eu quero escrever bem zangada. Quanto a mim, eu sou de longe. Muito longe. E de mim vem o puro cheiro de querosene.

Clarice Lispector, Um sopro de vida 

terça-feira, 25 de junho de 2024

SETE TRABALHOS VOLUNTÁRIOS E UM ATO SEDICIOSO


1

o poeta atira pedras na lagoa

círculos concêntricos se propagam

2

o poeta sobe em uma cadeira

para dar corda em um relógio de bolso

3

o poeta lírico se ajoelha

diante de uma cerejeira em flor

e começa a rezar um pai-nosso

4

o poeta se veste de homem-rã

e mergulha na piscina do parque

5

o poeta se atira no vazio

pendurado em um guarda-chuva

do último andar da Torre Diego Portales

6

o poeta se entrincheira na Tumba do Soldado Desconhecido

e dali dispara flechas envenenadas nos transeuntes

7

o poeta maldito

se entretém atirando pássaros nas pedras

Ato sedicioso

o poeta corta as próprias veias

em homenagem a seu país natal


Nicanor Parra 

sábado, 22 de junho de 2024

 


existem tantos labirintos que é impossível supor a exemplificação contrária: pintores, poetas, músicos, filósofos, amantes, errantes, piedosos, deuses, arquitetos. todas as vidas se movem entre labirintos: o labirintos das almas que mal se reconfortam com suas indecisões e sofrem; o labirinto da língua que escreve e escava e morde e não conclui jamais o poema; o labirinto das paixões que se desencadeiam para o vazio; o labirinto da voz que não acaba por expressar-se; o labirinto da memória que lembra e esquece ao mesmo tempo.

algumas coisas começam pela palavra e continuam o caminho da sensação, da percepção, do conhecimento. outras coisas nunca são palavra e mesmo assim exibem a dupla forma do seu desassossego e de seu encantamento. o labirinto é tudo porque é detenção e é movimento: trata-se de olhar-nos nos olhos, não de conhecer-nos. trata-se de dar-nos palavras, não de negociar o espanto; trata-se de cruzar os olhos, não de cruzar os braços.

Desobedecer a linguagem: educar

Carlos Skliar


 no help for that

There is a place in the heart that

will never be filled


a space


and even during the

best moments

and

the greatest

times


we will know it


we will know it

more than

ever


there is a place in the heart that

will never be filled

and


we will wait

and

wait


in that space.


Charles Bukowski | you get so alone at times that it just makes sense

Razão de ser


Escrevo. E pronto.

Escrevo porque preciso

preciso porque estou tonto.

Ninguém tem nada com isso.

Escrevo porque amanhece.

E as estrelas lá no céu

Lembram letras no papel,

Quando o poema me anoitece.

A aranha tece teias.

O peixe beija e morde o que vê.

Eu escrevo apenas.

Tem que ter por quê?


Paulo Leminski



Este é o canto do amor em que te falo

Para que escutando sejas minha

Este é o poema — engano do teu rosto

No qual eu busco a abolição da morte


Sophia de Mello Breyner Andresen

Preocupação

Christian Schloe 

bilhete não respondido: que ameaças são essas?

Ana Cristina César

 


“Todo verdadeiro sentimento é na verdade intraduzível. Expressá-lo é traí-lo. Mas traduzi-lo é dissimulá-lo. A expressão verdadeira esconde o que ela manifesta. Opõe o espírito ao vazio real da natureza, criando por reação uma espécie de cheia no pensamento. Ou, se preferirem, em relação à manifestação-ilusão da natureza ela cria um vazio no pensamento. Todo sentimento forte provoca em nós a ideia do vazio. E a linguagem clara que impede esse vazio impede também que a poesia apareça no pensamento. É por isso que uma imagem, uma alegoria, uma figura que mascare o que gostaria de revelar têm mais significação para o espírito do que as clarezas proporcionadas pelas análises da palavra. Assim, a verdadeira beleza nunca nos impressiona diretamente. E um pôr-do-sol é belo por tudo aquilo que nos faz perder.”

Antonin Artaud

 


Se o vires, diz-lhe que o tempo dele não passou;

que me sento na cama, distraída, a dobar demoras

e, sem querer, talvez embarace as linhas entre nós.

Mas que, mesmo perdendo o fio da meada por

causa dos outros laços que não desfaço, sei que o

amor dá sempre o novelo melhor da sua mão. Se

o encontrares, diz-lhe que o tempo dele não passou;

que só me atraso outra vez, e ele sabe que me atraso

sempre, mas não de mais; e que os invernos que ele

não gosta de contar, mas assim mesmo conta que nos

separam, escondem a minha nuca na gola do casaco,

mas só para guardar os beijos que me deu. Se o vires,

diz-lhe que o tempo dele não passa, fica sempre.


Maria do Rosário Pedreira

 

CARO GUARINOS


Dentro deste mundo há outro mundo

impermeável às palavras.

Nele, nem a vida teme a morte,

nem a primavera dá lugar ao outono.


Histórias e lendas surgem dos tetos e paredes,

até mesmo as rochas e árvores exalam poesia.

Aqui, a coruja transforma-se em pavão,

o lobo, em belo pastor.


Para mudar a paisagem,

basta mudar o que sentes;

E se queres passear por esses lugares,

basta expressar o desejo.


Rumi

sexta-feira, 21 de junho de 2024

 
Arkady ostritsky

Este viejo hábito de esperar a quien sé que no va a venir.

 Alejandra Pizarnik


quarta-feira, 19 de junho de 2024


 

Tempo, tempo, tempo, tempo.

Cada coisa tem o seu.

Cada pessoa.

Cada poema.


Ricardo Reis

 




Mais importante que o texto é o fato.

Os fatos me atrapalham. Por isso é que agora vou escrever sobre não fatos, isto é, sobre as coisas e o seu mirabolante mistério.

É curiosa a sensação de escrever. Ao escrever não penso nem no leitor nem em mim: nessa hora sou — mas só de mim — sou as palavras propriamente ditas.

Clarice Lispector, Um sopro de vida

sábado, 15 de junho de 2024


 " A fotografia tem de ser silenciosa. Somente no ‘preocupar-se com o silêncio’ que a fotografia revela sua intensidade. É um ‘lugar do silêncio’ que possibilita um demorar-se contemplativo."

Roland Barthes

 


“O propósito da filosofia é iluminar os caminhos de nossa alma que foram contaminados por convicções infundadas, desejos descontrolados, preferências e opções de vida questionáveis que não são dignas de nós. O principal antídoto a tudo isso é um auto-exame minucioso aplicado com bondade. Além de erradicar as doenças da alma, a vida de sabedoria pretende despertar-nos de nossa apatia e introduzir-nos no caminho de uma vida ativa e alegre.”


Epicteto (50 d.C-135 d.C) filósofo grego antigo, que pertenceu à escola filosófica estoica, no livro: A Arte de Viver

sexta-feira, 14 de junho de 2024


 As palavras começam a ficar velhas: têm

dores nas articulações e rangem, de vez

em quando, sem razão; reclamam óleos

e resinas, tempo e açúcares mais lentos.

Mas também eu estou velha demais para

oficinas, tão cansada de livros e papéis,

morta por viver outras coisas – por amor,

talvez espreitasse de novo nas mangas do

mundo e escrevesse uma fiada de búzios

no pulso da areia. Mas quantos dos teus

beijos perderia? Perdoem-me os que

ainda esperam por mim. Não sei se volto.


Maria do Rosário Pedreira


 Si te atreves a sorprender

la verdad de esta vieja pared;

y sus fisuras, desgarraduras,

formando rostros, esfinges, manos, clepsidras,

seguramente vendrá

una presencia para tu sed,

probablemente partirá

esta ausencia que te bebe. 


Alejandra Pizarnik




liberdade

é quando a gente descobre

quais são as nossas

prisões


zack magiezi

 


Os poetas são aliados valiosíssimos e seu testemunho deve ser levado em alta conta, pois conhecem muitas coisas entre o céu e a terra cuja existência nem sonha a nossa sabedoria acadêmica. No conhecimento da alma estão à nossa frente, homens comuns, pois se nutrem em fontes que ainda não tornamos acessíveis à ciência.

Sigmund Freud


 Só me interessa escrever quando eu me surpreendo com o que escrevo. Eu prescindo da realidade porque posso ter tudo através do pensamento. A realidade não me surpreende. Mas não é verdade: de repente tenho uma tal fome da "coisa acontecer mesmo" que mordo num grito a realidade com os dentes dilacerantes. E depois suspiro sobre a presa cuja carne comi. E por muito tempo, de novo, prescindo da realidade real e me aconchego em viver da imaginação. Como tornar tudo um sonho acordado?

Clarice Lispector, Um sopro de vida 


 " Só morrem os pensamentos que brotam ocasionalmente. Os outros levamos conosco sem sabê-lo. Eles se abandonaram ao esquecimento para acompanhar-nos sempre."

​​​​​​​Emil Cioran


 " A beleza é toda e qualquer concordância sutil e elevada de tudo o que agrada imediatamente, sem exigir reflexão e meditação."

Goethe


 Silêncio!
Você é feito de pensamento, afeto e paixão;
e o que resta é nada além de carne e ossos...

Rumi

 


"Do sol aprendi isto, quando se põe, o riquíssimo ouro derrama ele sobre o mar, por sua inesgotável riqueza - de modo que até o mais pobre dos pescadores reme com remo de ouro!

Foi isto que vi uma vez, e minhas lágrimas não se fartaram de correr, diante do espetáculo."

Nietzsche - Assim falou Zaratustra, Das Velhas e Novas Tábuas


 O Silêncio é o que tememos.
Há um Resgate na Voz –
Mas Silêncio é Infinidade.
Não tem sequer uma Face.

Emily Dickinson

domingo, 2 de junho de 2024

A Função Social da Repressão Sexual

Para compreender a relação entre repressão sexual e a exploração humana é necessário compreender a instituição social básica na qual se entrelaçam a situação econômica e a situação econômico-sexual da sociedade patriarcal autoritária. Não é possível compreender a economia sexual e os processos ideológicos da sociedade patriarcal sem ter em conta essa instituição. A psicanálise de homens e mulheres de todas as idades, países e classes sociais leva às seguintes conclusões: a combinação da estrutura socioeconômica com a estrutura sexual da sociedade e a reprodução estrutural da sociedade verificam-se nos primeiros quatro ou cinco anos de vida, na família autoritária. A Igreja só continua essa função mais tarde. É por isso que o Estado autoritário tem o maior interesse na família autoritária; ela transformou-se numa fábrica onde as estruturas e ideologias do Estado são moldadas.

Já encontramos a instituição social em que convergem os interesses econômicos e sexuais do sistema autoritário. Resta-nos perguntar como se processa essa convergência e como ela opera. É desnecessário dizer que a análise da estrutura do caráter típica do homem reacionário (o trabalhador, inclusive) só pode fornecer uma resposta se tivermos consciência da necessidade de fazer tal pergunta (do operário, inclusive). A inibição moral da sexualidade natural na infância, cuja última etapa é o grave dano da sexualidade genital da criança, torna a criança medrosa, tímida, submissa, obediente, “boa” e “dócil”, no sentido autoritário das palavras. Ela tem um efeito de paralisação sobre as forças de rebelião do homem, porque qualquer impulso vital é associado ao medo; e como sexo é um assunto proibido, há uma paralisação geral do pensamento e do espírito crítico. Em resumo, o objetivo da moralidade é a criação do indivíduo submisso que se adapta à ordem autoritária, apesar do sofrimento e da humilhação.

Assim, a família é o Estado autoritário em miniatura, ao qual a criança deve aprender a se adaptar, como uma preparação para o ajustamento geral que será exigido dela mais tarde. A estrutura autoritária do homem é basicamente produzida — é necessário ter isto presente — através da fixação das inibições e medos sexuais na substância viva dos impulsos sexuais.

Compreendemos imediatamente por que motivo a família é considerada pela economia sexual como o principal fator de perpetuação do sistema social autoritário, quando tomamos como exemplo a esposa conservadora típica de um trabalhador. Ela passa tantas privações quanto uma trabalhadora liberada; está sujeita à mesma situação econômica, mas ela vota no partido fascista; e, se nos debruçarmos sobre a diferença real entre a ideologia sexual da mulher liberada típica e da mulher reacionária típica, reconheceremos a importância decisiva da estrutura sexual. A inibição moral, anti-sexual, impede a mulher conservadora de tomar consciência da sua situação social, e liga-a tão fortemente à Igreja, quanto mais esta a faz temer o “bolchevismo sexual”.

Teoricamente, a situação é a seguinte: o marxista comum, que pensa em termos mecanicistas, será tentado a supor que o discernimento da situação social deveria ser particularmente claro quando à miséria econômica se junta a miséria sexual. De acordo com esta suposição, os adolescentes e as mulheres deveriam ser muito mais rebeldes do que os homens. Mas a realidade prova exatamente o contrário, e o economicista vê-se completamente incapaz de lidar com tal fato. Ele achará incompreensível que a mulher reacionária não se interesse sequer em ouvir o seu programa econômico. A explicação é a seguinte: a repressão da satisfação das necessidades materiais tem resultados diferentes da repressão das necessidades sexuais. A primeira leva à revolta, mas a segunda impede a rebelião contra as duas espécies de repressão ao reprimir os impulsos sexuais, retirando-os do domínio do consciente e fixando-se como defesa moral. Na verdade, também a inibição da própria rebelião é inconsciente. Na consciência do homem médio apolítico não se encontram vestígios disso. O resultado é o conservadorismo, o medo da liberdade; em resumo, a mentalidade reacionária.

Não é só através desse processo que a repressão sexual fortalece a reação política e torna o indivíduo das massas passivo e apolítico; ela cria na estrutura do indivíduo uma força secundária, um interesse artificial que também apoia ativamente a ordem autoritária. Quando o processo de repressão sexual impede a sexualidade de atingir a satisfação normal, este recorre aos mais variados tipos de satisfação substituta. Por exemplo, a agressão natural transforma-se em sadismo brutal, que é um importante elemento da base psicológica de massa das guerras imperialistas instigadas por alguns.

Tomemos outro exemplo: sob um ponto de vista de psicologia de massas, o efeito produzido pelo militarismo baseia-se num mecanismo libidinoso: o efeito sexual do uniforme, o efeito erótico do passo de ganso executado ritmicamente, o caráter exibicionista da parada militar, tudo isto é, na prática, muito mais facilmente compreendido por uma balconista ou secretária do que pelos nossos sábios políticos. A reação política, por outro lado, explora conscientemente esses interesses sexuais. Não só cria uniformes elegantes para os homens, como coloca o recrutamento nas mãos de mulheres atraentes. Recordemos, por último, os cartazes publicitários das potências bélicas, que exibiam os seguintes dizeres: “Se você quer conhecer países estrangeiros, aliste-se na marinha real”; neles, os países estrangeiros estão representados por mulheres exóticas. Por que motivo esses cartazes surtem efeito? Porque a nossa juventude se tornou sexualmente faminta, devido à repressão sexual.

Tanto a moralidade sexual, que inibe o desejo de liberdade, como aquelas forças que apoiam interesses autoritários, tiram a sua energia da sexualidade reprimida. Agora, compreendemos melhor um ponto fundamental do processo do “efeito da ideologia sobre a base econômica”: a inibição sexual altera de tal modo a estrutura do homem economicamente oprimido, que ele passa a agir, sentir e pensar contra os seus próprios interesses materiais.

Assim, a psicologia de massas nos permite fundamentar e interpretar as observações de Lênin. Os soldados de 1905, inconscientemente, viam nos oficiais a figura do pai, da época da infância — condensada na ideia de Deus —, que proibia a sexualidade e a quem não se podia eliminar ou desejar matar, embora ele tirasse toda a alegria de viver. Seu arrependimento e sua hesitação, subsequentes à tomada do poder, eram expressão do seu oposto; ódio transformado em compaixão, que, como tal, não podia ser traduzido em ação.

O problema prático da psicologia de massas é, portanto, a ativação da maioria passiva da população, que contribui sempre para a vitória da reação política, e a eliminação das inibições que impedem o desenvolvimento do desejo de liberdade, proveniente da situação econômica e social. A energia psíquica das massas que assistem, entusiasmadas, a um jogo de futebol, ou a um musical barato, em meio a gargalhadas, não poderia ser de novo reprimida se conseguisse libertar-se das suas cadeias e seguir os caminhos que conduzem aos objetivos racionais do movimento pela liberdade.

Wilhelm ReichA psicologia de massas do fascismo

A arrogância da oração


Quando se chega ao limite do monólogo, aos confins da solidão, inventa-se — na falta de outro interlocutor — Deus, pretexto supremo de diálogo. Enquanto o nomeias, tua demência está bem disfarçada e… tudo te é permitido. O verdadeiro crente mal se distingue do louco; mas sua loucura é legal, admitida; acabaria em um asilo se suas aberrações estivessem livres de toda fé. Mas Deus as cobre, as torna legítimas. O orgulho de um conquistador empalidece comparado à ostentação do devoto que dirige-se ao Criador. Como se pode ser tão atrevido? E como poderia ser a modéstia uma virtude dos templos, quando uma velha decrépita, que imagina o Infinito a seu alcance, eleva-se pela oração a um nível de audácia ao qual nenhum tirano jamais aspirou?

Sacrificaria o império do mundo por um só momento em que minhas mãos juntas implorassem ao grande Responsável de nossos enigmas e de nossas banalidades. Entretanto, esse momento constitui a qualidade corrente — e como que o tempo oficial — de qualquer crente. Mas quem é verdadeiramente modesto repete a si mesmo: “Demasiado humilde para rezar, demasiado inerte para transpor o limiar de uma igreja, resigno-me à minha sombra e não quero uma capitulação de Deus ante minhas orações”. E aos que lhe propõem a imortalidade, responde: “Meu orgulho não é inesgotável: seus recursos são limitados. Pensam, em nome da fé, vencer seu eu; na realidade, desejam perpetuá-lo na eternidade, pois não lhes basta esta duração presente. Sua soberba excede em refinamento todas as ambições do século. Que sonho de glória, comparado ao seu, não se revela engano e vã ilusão? Sua fé é apenas um delírio de grandeza tolerado pela comunidade, porque utiliza caminhos camuflados; mas seu pó é sua única obsessão: gulosos do intemporal, perseguem o tempo que o dispersa. Só o além é bastante espaçoso para suas cobiças; a terra e seus instantes parecem demasiado frágeis. A megalomania dos conventos supera tudo o que jamais imaginaram as febres suntuosas dos palácios. Quem não admite sua nulidade é um doente mental. E o crente, entre todos, é o menos disposto a consentir. A vontade de durar, levada até tal ponto, apavora-me. Recuso-me à sedução malsã de um Eu indefinido. Quero chafurdar-me em minha mortalidade. Quero permanecer normal.”

(Senhor, dá-me a faculdade de jamais rezar, poupa-me a insanidade de toda adoração, afasta de mim essa tentação de amor que me entregaria para sempre a Ti. Que o vazio se estenda entre meu coração e o céu! Não desejo ver meus desertos povoados com Tua presença, minhas noites tiranizadas por Tua luz, minhas Sibérias fundidas sob Teu sol. Mais solitário do que Tu, quero minhas mãos puras, ao contrário das Tuas que sujaram-se para sempre ao modelar a terra e ao misturar-se nos assuntos do mundo. Só peço à Tua estúpida onipotência respeito para minha solidão e meus tormentos. Não tenho nada a fazer com Tuas palavras. Concede-me o milagre recolhido antes do primeiro instante, a paz que Tu não pudeste tolerar e que Te incitou a abrir uma brecha no nada para inaugurar esta feira dos tempos, e para condenar-me assim ao universo, à humilhação e à vergonha de existir.)

Emil M. Cioran

Breviário de Decomposição

sábado, 1 de junho de 2024

Notas do Subsolo

 


“Não apenas não consegui tornar-me cruel, como também não consegui me tornar nada: nem mau, nem bom, nem canalha, nem homem honrado, nem herói, nem inseto. Agora vivo no meu canto, provocando a mim mesmo com a desculpa rancorosa e inútil de que o homem inteligente não pode seriamente se tornar nada, apenas o tolo o faz. Sim, senhores, o homem do século XIX que possui inteligência tem obrigação moral de ser uma pessoa sem caráter; já um homem com caráter, um homem de ação, é de preferência um ser limitado. Essa é a minha convicção aos quarenta anos. Tenho agora quarenta. E quarenta anos é toda uma vida, é a velhice mais avançada. Depois dos quarenta é indecoroso viver, é vulgar, imoral! Quem vive além dos quarenta? Respondam-me sincera e honestamente. Pois vou lhes dizer quem vive: os tolos e os canalhas. Direi isso na cara de todos os anciãos, dos anciãos respeitáveis, perfumados e de cabelos brancos! Direi isso na cara de todo mundo! Tenho direito de dizer isso porque eu mesmo vou viver até os sessenta. Até os setenta! Até os oitenta! Esperem! Deixem-me tomar fôlego!”

“Destruam meus desejos, apaguem meus ideais, mostrem-me alguma coisa melhor, e serei seu seguidor. Talvez os senhores digam que não vale a pena meter-se comigo; nesse caso, posso responder-lhes da mesma forma. Estamos argumentando seriamente, mas, se não quiserem conceder-me sua atenção, não hei de me humilhar. Tenho meu subsolo.”

“Entre as recordações de cada pessoa, há coisas que ela não conta para qualquer um, somente para os amigos. Há também aquelas que ela não conta nem para os amigos, somente para si mesma, e isso secretamente. Mas, finalmente, há também aquelas que o indivíduo tem medo de revelar até para si mesmo, e um homem respeitável tem tais coisas acumuladas em grande quantidade. E pode ser até mesmo assim: quanto mais respeitável ele é, mais coisas desse tipo ele tem acumuladas. Eu, pelo menos, só recentemente tomei coragem para recordar algumas das minhas aventuras passadas, as quais até agora tinha evitado com uma certa inquietação. E agora, quando não só recordei, como até me decidi a escrevê-las, agora exatamente quero tirar a prova: é possível alguém ser inteiramente sincero consigo mesmo e não temer toda a verdade?”

“Uma noite, ao passar diante de uma pequena taverna, vi pela janela iluminada uns senhores brigando perto do bilhar, batendo-se com os tacos, e depois vi um deles ser atirado pela janela. Se fosse em outra hora, teria sentido asco, mas estava num momento tal, que comecei a invejar o senhor que foi atirado pela janela, a tal ponto que entrei na taverna, na sala de bilhar. ‘Quem sabe não me envolvo numa briga e também me atiram pela janela?’. Não estava bêbado, mas os senhores querem o quê? A angústia pode levar a esse grau de histeria! Mas não deu em nada. Resultou que eu não era capaz nem de pular pela janela, e fui embora sem ter brigado.”

“ ‘Ah, se vocês ao menos soubessem os sentimentos e as ideias de que sou capaz e como sou culto!’, pensava por alguns instantes, dirigindo-me mentalmente ao divã onde meus inimigos estavam sentados. Mas meus inimigos comportavam-se como se eu não estivesse na sala."

“Daqui a quinze anos, quando me libertarem, irei me arrastar no encalço dele, em farrapos, na miséria. Hei de procurar até encontrá-lo em alguma cidade de província. Ele estará casado e feliz. Terá uma filha já adulta. Eu lhe direi: ‘Olhe, monstro, veja minhas faces fundas e meus farrapos! Perdi tudo – carreira, felicidade, arte, ciência, a mulher amada, e tudo por sua causa. Aqui estão as pistolas. Eu vou descarregar a minha pistola e… e eu o perdo


o’. Então atiro para o ar e desapareço para sempre…”

“ ‘Tranquilidade’ era o que eu queria; queria ficar sozinho no subsolo. A ‘vida viva’ me sufocava tanto, devido à minha falta de costume, que até respirar estava difícil."

Fiódor Dostoiévski, Notas do Subsolo