Marie-Marguerite Turner |
Pudesse eu não ter laços nem limites
Ó vida de mil faces transbordantes
Para poder responder aos teus convites
Suspensos na surpresa dos instantes!
Sophia de Mello Breyner Andresen
Seguramente, em certo sentido, a mulher é misteriosa, como todo mundo. Cada um só é sujeito para si; cada um só pode apreender a si unicamente em sua imanência. Deste ponto de vista, o outro é sempre mistério.
Simone de Beauvoir
Fulvio De Marinis |
Clarice Lispector, Um sopro de vida
o poeta atira pedras na lagoa
círculos concêntricos se propagam
2
o poeta sobe em uma cadeira
para dar corda em um relógio de bolso
3
o poeta lírico se ajoelha
diante de uma cerejeira em flor
e começa a rezar um pai-nosso
4
o poeta se veste de homem-rã
e mergulha na piscina do parque
5
o poeta se atira no vazio
pendurado em um guarda-chuva
do último andar da Torre Diego Portales
6
o poeta se entrincheira na Tumba do Soldado Desconhecido
e dali dispara flechas envenenadas nos transeuntes
7
o poeta maldito
se entretém atirando pássaros nas pedras
Ato sedicioso
o poeta corta as próprias veias
em homenagem a seu país natal
Nicanor Parra
algumas coisas começam pela palavra e continuam o caminho da sensação, da percepção, do conhecimento. outras coisas nunca são palavra e mesmo assim exibem a dupla forma do seu desassossego e de seu encantamento. o labirinto é tudo porque é detenção e é movimento: trata-se de olhar-nos nos olhos, não de conhecer-nos. trata-se de dar-nos palavras, não de negociar o espanto; trata-se de cruzar os olhos, não de cruzar os braços.
Desobedecer a linguagem: educar
Carlos Skliar
There is a place in the heart that
will never be filled
a space
and even during the
best moments
and
the greatest
times
we will know it
we will know it
more than
ever
there is a place in the heart that
will never be filled
and
we will wait
and
wait
in that space.
Charles Bukowski | you get so alone at times that it just makes sense
Escrevo porque preciso
preciso porque estou tonto.
Ninguém tem nada com isso.
Escrevo porque amanhece.
E as estrelas lá no céu
Lembram letras no papel,
Quando o poema me anoitece.
A aranha tece teias.
O peixe beija e morde o que vê.
Eu escrevo apenas.
Tem que ter por quê?
Paulo Leminski
Antonin Artaud
que me sento na cama, distraída, a dobar demoras
e, sem querer, talvez embarace as linhas entre nós.
Mas que, mesmo perdendo o fio da meada por
causa dos outros laços que não desfaço, sei que o
amor dá sempre o novelo melhor da sua mão. Se
o encontrares, diz-lhe que o tempo dele não passou;
que só me atraso outra vez, e ele sabe que me atraso
sempre, mas não de mais; e que os invernos que ele
não gosta de contar, mas assim mesmo conta que nos
separam, escondem a minha nuca na gola do casaco,
mas só para guardar os beijos que me deu. Se o vires,
diz-lhe que o tempo dele não passa, fica sempre.
Maria do Rosário Pedreira
CARO GUARINOS |
Dentro deste mundo há outro mundo
impermeável às palavras.
Nele, nem a vida teme a morte,
nem a primavera dá lugar ao outono.
Histórias e lendas surgem dos tetos e paredes,
até mesmo as rochas e árvores exalam poesia.
Aqui, a coruja transforma-se em pavão,
o lobo, em belo pastor.
Para mudar a paisagem,
basta mudar o que sentes;
E se queres passear por esses lugares,
basta expressar o desejo.
Rumi
Os fatos me atrapalham. Por isso é que agora vou escrever sobre não fatos, isto é, sobre as coisas e o seu mirabolante mistério.
É curiosa a sensação de escrever. Ao escrever não penso nem no leitor nem em mim: nessa hora sou — mas só de mim — sou as palavras propriamente ditas.
Clarice Lispector, Um sopro de vida
Epicteto (50 d.C-135 d.C) filósofo grego antigo, que pertenceu à escola filosófica estoica, no livro: A Arte de Viver
dores nas articulações e rangem, de vez
em quando, sem razão; reclamam óleos
e resinas, tempo e açúcares mais lentos.
Mas também eu estou velha demais para
oficinas, tão cansada de livros e papéis,
morta por viver outras coisas – por amor,
talvez espreitasse de novo nas mangas do
mundo e escrevesse uma fiada de búzios
no pulso da areia. Mas quantos dos teus
beijos perderia? Perdoem-me os que
ainda esperam por mim. Não sei se volto.
Maria do Rosário Pedreira
Sigmund Freud
Clarice Lispector, Um sopro de vida
Foi isto que vi uma vez, e minhas lágrimas não se fartaram de correr, diante do espetáculo."
Nietzsche - Assim falou Zaratustra, Das Velhas e Novas Tábuas
Já encontramos a instituição social em que convergem os interesses econômicos e sexuais do sistema autoritário. Resta-nos perguntar como se processa essa convergência e como ela opera. É desnecessário dizer que a análise da estrutura do caráter típica do homem reacionário (o trabalhador, inclusive) só pode fornecer uma resposta se tivermos consciência da necessidade de fazer tal pergunta (do operário, inclusive). A inibição moral da sexualidade natural na infância, cuja última etapa é o grave dano da sexualidade genital da criança, torna a criança medrosa, tímida, submissa, obediente, “boa” e “dócil”, no sentido autoritário das palavras. Ela tem um efeito de paralisação sobre as forças de rebelião do homem, porque qualquer impulso vital é associado ao medo; e como sexo é um assunto proibido, há uma paralisação geral do pensamento e do espírito crítico. Em resumo, o objetivo da moralidade é a criação do indivíduo submisso que se adapta à ordem autoritária, apesar do sofrimento e da humilhação.
Assim, a família é o Estado autoritário em miniatura, ao qual a criança deve aprender a se adaptar, como uma preparação para o ajustamento geral que será exigido dela mais tarde. A estrutura autoritária do homem é basicamente produzida — é necessário ter isto presente — através da fixação das inibições e medos sexuais na substância viva dos impulsos sexuais.
Compreendemos imediatamente por que motivo a família é considerada pela economia sexual como o principal fator de perpetuação do sistema social autoritário, quando tomamos como exemplo a esposa conservadora típica de um trabalhador. Ela passa tantas privações quanto uma trabalhadora liberada; está sujeita à mesma situação econômica, mas ela vota no partido fascista; e, se nos debruçarmos sobre a diferença real entre a ideologia sexual da mulher liberada típica e da mulher reacionária típica, reconheceremos a importância decisiva da estrutura sexual. A inibição moral, anti-sexual, impede a mulher conservadora de tomar consciência da sua situação social, e liga-a tão fortemente à Igreja, quanto mais esta a faz temer o “bolchevismo sexual”.
Teoricamente, a situação é a seguinte: o marxista comum, que pensa em termos mecanicistas, será tentado a supor que o discernimento da situação social deveria ser particularmente claro quando à miséria econômica se junta a miséria sexual. De acordo com esta suposição, os adolescentes e as mulheres deveriam ser muito mais rebeldes do que os homens. Mas a realidade prova exatamente o contrário, e o economicista vê-se completamente incapaz de lidar com tal fato. Ele achará incompreensível que a mulher reacionária não se interesse sequer em ouvir o seu programa econômico. A explicação é a seguinte: a repressão da satisfação das necessidades materiais tem resultados diferentes da repressão das necessidades sexuais. A primeira leva à revolta, mas a segunda impede a rebelião contra as duas espécies de repressão ao reprimir os impulsos sexuais, retirando-os do domínio do consciente e fixando-se como defesa moral. Na verdade, também a inibição da própria rebelião é inconsciente. Na consciência do homem médio apolítico não se encontram vestígios disso. O resultado é o conservadorismo, o medo da liberdade; em resumo, a mentalidade reacionária.
Não é só através desse processo que a repressão sexual fortalece a reação política e torna o indivíduo das massas passivo e apolítico; ela cria na estrutura do indivíduo uma força secundária, um interesse artificial que também apoia ativamente a ordem autoritária. Quando o processo de repressão sexual impede a sexualidade de atingir a satisfação normal, este recorre aos mais variados tipos de satisfação substituta. Por exemplo, a agressão natural transforma-se em sadismo brutal, que é um importante elemento da base psicológica de massa das guerras imperialistas instigadas por alguns.
Tomemos outro exemplo: sob um ponto de vista de psicologia de massas, o efeito produzido pelo militarismo baseia-se num mecanismo libidinoso: o efeito sexual do uniforme, o efeito erótico do passo de ganso executado ritmicamente, o caráter exibicionista da parada militar, tudo isto é, na prática, muito mais facilmente compreendido por uma balconista ou secretária do que pelos nossos sábios políticos. A reação política, por outro lado, explora conscientemente esses interesses sexuais. Não só cria uniformes elegantes para os homens, como coloca o recrutamento nas mãos de mulheres atraentes. Recordemos, por último, os cartazes publicitários das potências bélicas, que exibiam os seguintes dizeres: “Se você quer conhecer países estrangeiros, aliste-se na marinha real”; neles, os países estrangeiros estão representados por mulheres exóticas. Por que motivo esses cartazes surtem efeito? Porque a nossa juventude se tornou sexualmente faminta, devido à repressão sexual.
Tanto a moralidade sexual, que inibe o desejo de liberdade, como aquelas forças que apoiam interesses autoritários, tiram a sua energia da sexualidade reprimida. Agora, compreendemos melhor um ponto fundamental do processo do “efeito da ideologia sobre a base econômica”: a inibição sexual altera de tal modo a estrutura do homem economicamente oprimido, que ele passa a agir, sentir e pensar contra os seus próprios interesses materiais.
Assim, a psicologia de massas nos permite fundamentar e interpretar as observações de Lênin. Os soldados de 1905, inconscientemente, viam nos oficiais a figura do pai, da época da infância — condensada na ideia de Deus —, que proibia a sexualidade e a quem não se podia eliminar ou desejar matar, embora ele tirasse toda a alegria de viver. Seu arrependimento e sua hesitação, subsequentes à tomada do poder, eram expressão do seu oposto; ódio transformado em compaixão, que, como tal, não podia ser traduzido em ação.
O problema prático da psicologia de massas é, portanto, a ativação da maioria passiva da população, que contribui sempre para a vitória da reação política, e a eliminação das inibições que impedem o desenvolvimento do desejo de liberdade, proveniente da situação econômica e social. A energia psíquica das massas que assistem, entusiasmadas, a um jogo de futebol, ou a um musical barato, em meio a gargalhadas, não poderia ser de novo reprimida se conseguisse libertar-se das suas cadeias e seguir os caminhos que conduzem aos objetivos racionais do movimento pela liberdade.
Wilhelm Reich, A psicologia de massas do fascismo
Sacrificaria o império do mundo por um só momento em que minhas mãos juntas implorassem ao grande Responsável de nossos enigmas e de nossas banalidades. Entretanto, esse momento constitui a qualidade corrente — e como que o tempo oficial — de qualquer crente. Mas quem é verdadeiramente modesto repete a si mesmo: “Demasiado humilde para rezar, demasiado inerte para transpor o limiar de uma igreja, resigno-me à minha sombra e não quero uma capitulação de Deus ante minhas orações”. E aos que lhe propõem a imortalidade, responde: “Meu orgulho não é inesgotável: seus recursos são limitados. Pensam, em nome da fé, vencer seu eu; na realidade, desejam perpetuá-lo na eternidade, pois não lhes basta esta duração presente. Sua soberba excede em refinamento todas as ambições do século. Que sonho de glória, comparado ao seu, não se revela engano e vã ilusão? Sua fé é apenas um delírio de grandeza tolerado pela comunidade, porque utiliza caminhos camuflados; mas seu pó é sua única obsessão: gulosos do intemporal, perseguem o tempo que o dispersa. Só o além é bastante espaçoso para suas cobiças; a terra e seus instantes parecem demasiado frágeis. A megalomania dos conventos supera tudo o que jamais imaginaram as febres suntuosas dos palácios. Quem não admite sua nulidade é um doente mental. E o crente, entre todos, é o menos disposto a consentir. A vontade de durar, levada até tal ponto, apavora-me. Recuso-me à sedução malsã de um Eu indefinido. Quero chafurdar-me em minha mortalidade. Quero permanecer normal.”
(Senhor, dá-me a faculdade de jamais rezar, poupa-me a insanidade de toda adoração, afasta de mim essa tentação de amor que me entregaria para sempre a Ti. Que o vazio se estenda entre meu coração e o céu! Não desejo ver meus desertos povoados com Tua presença, minhas noites tiranizadas por Tua luz, minhas Sibérias fundidas sob Teu sol. Mais solitário do que Tu, quero minhas mãos puras, ao contrário das Tuas que sujaram-se para sempre ao modelar a terra e ao misturar-se nos assuntos do mundo. Só peço à Tua estúpida onipotência respeito para minha solidão e meus tormentos. Não tenho nada a fazer com Tuas palavras. Concede-me o milagre recolhido antes do primeiro instante, a paz que Tu não pudeste tolerar e que Te incitou a abrir uma brecha no nada para inaugurar esta feira dos tempos, e para condenar-me assim ao universo, à humilhação e à vergonha de existir.)
Emil M. Cioran
Breviário de Decomposição
“Destruam meus desejos, apaguem meus ideais, mostrem-me alguma coisa melhor, e serei seu seguidor. Talvez os senhores digam que não vale a pena meter-se comigo; nesse caso, posso responder-lhes da mesma forma. Estamos argumentando seriamente, mas, se não quiserem conceder-me sua atenção, não hei de me humilhar. Tenho meu subsolo.”
“Entre as recordações de cada pessoa, há coisas que ela não conta para qualquer um, somente para os amigos. Há também aquelas que ela não conta nem para os amigos, somente para si mesma, e isso secretamente. Mas, finalmente, há também aquelas que o indivíduo tem medo de revelar até para si mesmo, e um homem respeitável tem tais coisas acumuladas em grande quantidade. E pode ser até mesmo assim: quanto mais respeitável ele é, mais coisas desse tipo ele tem acumuladas. Eu, pelo menos, só recentemente tomei coragem para recordar algumas das minhas aventuras passadas, as quais até agora tinha evitado com uma certa inquietação. E agora, quando não só recordei, como até me decidi a escrevê-las, agora exatamente quero tirar a prova: é possível alguém ser inteiramente sincero consigo mesmo e não temer toda a verdade?”
“Uma noite, ao passar diante de uma pequena taverna, vi pela janela iluminada uns senhores brigando perto do bilhar, batendo-se com os tacos, e depois vi um deles ser atirado pela janela. Se fosse em outra hora, teria sentido asco, mas estava num momento tal, que comecei a invejar o senhor que foi atirado pela janela, a tal ponto que entrei na taverna, na sala de bilhar. ‘Quem sabe não me envolvo numa briga e também me atiram pela janela?’. Não estava bêbado, mas os senhores querem o quê? A angústia pode levar a esse grau de histeria! Mas não deu em nada. Resultou que eu não era capaz nem de pular pela janela, e fui embora sem ter brigado.”
“ ‘Ah, se vocês ao menos soubessem os sentimentos e as ideias de que sou capaz e como sou culto!’, pensava por alguns instantes, dirigindo-me mentalmente ao divã onde meus inimigos estavam sentados. Mas meus inimigos comportavam-se como se eu não estivesse na sala."
“Daqui a quinze anos, quando me libertarem, irei me arrastar no encalço dele, em farrapos, na miséria. Hei de procurar até encontrá-lo em alguma cidade de província. Ele estará casado e feliz. Terá uma filha já adulta. Eu lhe direi: ‘Olhe, monstro, veja minhas faces fundas e meus farrapos! Perdi tudo – carreira, felicidade, arte, ciência, a mulher amada, e tudo por sua causa. Aqui estão as pistolas. Eu vou descarregar a minha pistola e… e eu o perdo
“ ‘Tranquilidade’ era o que eu queria; queria ficar sozinho no subsolo. A ‘vida viva’ me sufocava tanto, devido à minha falta de costume, que até respirar estava difícil."
Fiódor Dostoiévski, Notas do Subsolo