domingo, 17 de outubro de 2021


 Ouve, tu que não existes em nenhum céu:


Estou farto de escavar nos olhos

abismos de ternura

onde cabem todos menos eu.


Estou farto de palavras de perdão

que me ferem a boca

dum frio de lágrimas quentes de punhal.


Estou farto desta dor inútil

de chorar por mim nos outros.


– Eu que nem sequer tenho a coragem de escrever

os versos que me fazem doer.


José Gomes Ferreira

quinta-feira, 7 de outubro de 2021

 

Riccardo Mannelli


Tão ébrio de amor

estou — a harpa do teu corpo

devagar dedilho


Casimiro de Brito

painting by Joseph Q. Daily

 

i want to apologize to all the women

i have called pretty.

before i’ve called them intelligent or brave.

i am sorry i made it sound as though

something as simple as what you’re born with

is the most you have to be proud of

when your spirit has crushed mountains

from now on i will say things like, you are resilient

or, you are extraordinary.

not because i don’t think you’re pretty.

but because you are so much more than that


Rupi Kaur, milk and honey


painting by Yaroslav Sobol

 

Daylight, full of small dancing particles

and the one great turning, our souls

are dancing with you, without feet, they dance.

Can you see them when I whisper in your ear?


Rumi

                                                          painting by Anthony Hinchliffe


 “Quando for grande, quero ser de outra maneira. Quero ser longe. Eu respondia: ninguém é longe. As pessoas são sempre perto de alguma coisa e perto delas mesmas. A minha irmã dizia: são. Algumas pessoas são longe. Quando for grande quero ser longe.”


Valter Hugo Mãe

Poesia

painting by Vladimir Volegov


Impossível qualquer explicação: ou a gente aceita à primeira vista, ou não aceitará nunca: a poesia é o mistério evidente. Ela é óbvia, mas não é chata como um axioma. E, embora evidente, traz sempre um imprevisível, uma surpresa, um descobrimento.


Mário Quintana

Poema do livro “Porta Giratória”

painting by Vidan

 

São os dedos

que tocam

as flores, ou são estas

que delicadamente pedem

às mãos

um gesto

de carícia?


Albano Martins

 

Annick BOUVATTIER


Exerce sobre mim todos os teus poderes,

os mais avassaladores e brutais,

os que deixam na carne a marca sem resgate

de uma morte prometida em cada gesto

e dá-me a perceber que

sempre que te toco é, afinal, o fogo

que estou a tocar, como se quisesse

bordar um monograma de lava

no lenço que cala o queixume dos lábios.

Deixa-me dos teus poderes

somente um rumor ou um aroma,

a inexprimível tentação que os faz

serem tão perenes e secretos,

tão sôfregos de entrega e infinito,

e depois derrota-me na arena

dos teus braços como tenazes de vento

sufocando nesta boca

o sopro que aprisiona o ar dentro do grito.


José Jorge Letria

 

Alexander Kudin


a dizer outra vez

se não me ensinares eu não aprendo

a dizer outra vez que há uma última vez

mesmo para as últimas vezes

últimas vezes em que se implora

últimas vezes em que se ama

em que se sabe e não se sabe em que se finge

uma última vez mesmo para as últimas vezes em que se diz

se não me amares eu não serei amado

se eu não te amar eu não amarei.


Samuel Beckett



 estou aprendendo

a amá-lo

me amando


Raupi Kaur

Ao lado

 

zhaoming wu



havia tantas coisas

que eu te queria dizer

se não fosse o abismo

de te perder num afago

de te ter do outro lado

do medo à minha beira

havia tantas coisas

que eu te queria dizer

se não fosse o amor

que há noites ao teu lado

em que me dói não sei

onde é que a distância ai


Joaquim Castro Caldas

ennio montariello

 

Estar em ti é ser de todos os lugares

pertencer a todas as horas e

a todas as matérias. Ser

a polpa das cerejas

o perfume das mimosas

a ternura das corças

a carne luminosa

das estrelas.

És a minha obra, a minha fala, o meu amor.


Joaquim Pessoa

terça-feira, 21 de setembro de 2021

A Flor

Anthony Van Dyck.

Vejo uma flor seca, sem ar

Cá esquecida num caderno,

E meu espírito prosterno

em esquisito meditar:


Floriu quando? Onde? Em que estação?

Postergou-se? É estranha

Ou é amiga a mão que a apanha?

E a pôs aqui por que razão?


Para recordar um encontro amável

Ou uma separação funesta,

Ou um passeio solitário

Num sítio, na sombria floresta?


E ele estará vivo, ela também?

A que refúgio se retêm?

Ou eles ambos já murcharam

Como esta flor que aqui deixaram?


Alexander Pushkin


 


"A liberdade é a possibilidade do isolamento. Se te é impossível viver só, nasceste escravo."

Fernando Pessoa

 

francesca strino


"Clara habitava um universo inventado por ela, protegido pelas adversidades da vida, onde a verdade prosaica das coisas materiais se confundia com a verdade tumultuosa dos sonhos, nos quais nem sempre funcionavam as leis da física e da lógica ".

(Isabel Allende, ′′ A Casa dos Espíritos ′′)

 



Abre a janela, e olha!

Tudo o que vires é teu.

A seiva que lutou em cada folha,

E a fé que teve medo e se perdeu.


Abre a janela, e colhe!

É o que quiser a tua mão atenta:

Água barrenta,

Água que molhe,

Água que mate a sede…


Abre a janela, quanto mais não seja

Para que haja um sorriso na parede!


Miguel Torga


 

entre o preto e o branco

há tantas cores quantas há entre um azul e o mesmo azul.

eu vejo a cor que eu sinto e não aquela que percebo.


um instante é o mesmo instante que foi antes e é depois.

todo o infinito aí guardado.

mas eu sou o tempo que eu sinto e não aquele que mensuro.


da gradação entre as palavras, o sim bafeja o não e o não roça no sim.

todas as palavras aí contidas.

mas eu digo a palavra que eu sinto e não aquela que se encaixa.


Antoniel Campos

Emerico Toth

 

Não há guarda-chuva

contra o poema

subindo de regiões onde tudo é surpresa

como uma flor mesmo num canteiro.


Não há guarda-chuva

contra o tédio:

o tédio das quatro paredes, das quatro

estações, dos quatro pontos cardeais.


Não há guarda-chuva

contra o mundo

cada dia devorado nos jornais

sob as espécies de papel e tinta.


Não há guarda-chuva

contra o tempo,

rio fluindo sob a casa, correnteza

carregando os dias, os cabelos.


João Cabral de Mello Neto, Poema retirado de A educação pela pedra

daniel gerhartz


 Ai, palavras, ai, palavras,

que estranha potência, a vossa!

ai, palavras, ai, palavras,

sois de vento, ides no vento,

no vento que não retorna,

e, em tão rápida existência,

tudo se forma e transforma!


Sois de vento, ides no vento,

e quedais, com sorte nova!


Ai, palavras, ai, palavras,

que estranha potência, a vossa!

todo o sentido da vida

principia à vossa porta;

o mel do amor cristaliza

seu perfume em vossa rosa;

sois o sonho e sois a audácia,

calúnia, fúria, derrota…


A liberdade das almas,

ai! com letras se elabora…

E dos venenos humanos

sois a mais fina retorta:

frágil, frágil como o vidro

e mais que o aço poderosa!

Reis, impérios, povos, tempos,

pelo vosso impulso rodam…


Detrás de grossas paredes,

de leve, quem vos desfolha?

Pareceis de tênue seda,

sem peso de ação nem de hora…


e estais no bico das penas,

e estais na tinta que as molha,

e estais nas mãos dos juízes,

e sois o ferro que arrocha,

e sois barco para o exílio,

e sois Moçambique e Angola!

Ai, palavras, ai, palavras,

íeis pela estrada afora,

erguendo asas muito incertas,

entre verdade e galhofa,

desejos do tempo inquieto,

promessas que o mundo sopra…


Ai, palavras, ai, palavras,

mirai-vos: que sois, agora?


Acusações, sentinelas,

bacamarte, algema, escolta;

o olho ardente da perfídia,

a velar, na noite morta;

a umidade dos presídios,

a solidão pavorosa;

duro ferro de perguntas,

com sangue em cada resposta;

e a sentença que caminha,

e a esperança que não volta,

e o coração que vacila,

e o castigo que galopa…

Ai, palavras, ai, palavras,

que estranha potência, a vossa!

Perdão podíeis ter sido!


sois madeira que se corta,

sois vinte degraus de escada,

sois um pedaço de corda…

sois povo pelas janelas,

cortejo, bandeiras, tropa…

Ai, palavras, ai, palavras,

que estranha potência, a vossa!

Éreis um sopro na aragem…


sois um homem que se enforca!


Cecília Meireles, Romance das Palavras Aéreas


Alexey Tchernigin



Después que te conocí,

Todas las cosas me sobran:

El Sol para tener día,

Abril para tener rosas.


Por mi bien pueden tomar

Otro oficio las Auroras,

Que yo conozco una luz

Que sabe amanecer sombras.


Francisco de Quevedo

sábado, 28 de agosto de 2021

Demian - Herman Hesse

 


"Não creio ser um homem que saiba. Tenho sido sempre um homem que busca, mas já agora não busco mais nas estrelas e nos livros: começo a ouvir os ensinamentos que o meu sangue murmura em mim. Não é agradável a minha história, não é suave e harmoniosa como as histórias inventadas; sabe a insensatez e a confusão, a loucura e o sonho, como a vida de todos os homens que já não querem mais mentir a si mesmos."(pág. 16)

“Se não passássemos de indivíduos isolados, se cada um de nós pudesse realmente ser varrido por uma bala de fuzil, não haveria sentido algum em relatar histórias. Mas cada homem não é apenas ele mesmo; é também um ponto único, singularíssimo, sempre importante e peculiar, no qual os fenômenos do mundo se cruzam daquela forma uma só vez e nunca mais.” (pág. 20)

"Pela primeira vez saboreei a morte. Tinha um gosto amargo. Pois a morte é nascimento, é angústia e medo ante uma renovação aterradora." (pág. 32)

"Hoje sei muito bem que nada na vida repugna tanto ao homem do que seguir pelo caminho que o conduz a si mesmo."(pág. 62)

“[...] quando intentas algo que te é ordenado de dentro do teu próprio ser, acabas por consegui-lo e podes atrelar tua vontade como se fosse um animal de tiro.” (pág. 76)

"Sempre é bom termos consciência de que dentro de nós há alguém que tudo sabe..." (pág. 106)

"Quando alguém encontra algo de que verdadeiramente necessita, não é o acaso que tal proporciona, mas a própria pessoa; seu próprio desejo e sua própria necessidade a conduzem a isso." (pág. 118)

“Por esses dias, o "acaso", conforme se diz, conduziu-me a um estranho refúgio. Mas o acaso não existe. Quando alguém encontra algo de que verdadeiramente necessita, não é o acaso que tal proporciona, mas a própria pessoa; seu próprio desejo e sua própria necessidade a conduzem a isso.” (pág. 119)

“Não creio que se possam considerar homens todos esses bípedes que caminham pelas ruas, simplesmente porque andam eretos ou levem nove meses para vir à luz. Sabes muito bem que muitos deles não passam de peixes ou de ovelhas, vermes ou sanguessugas, formigas ou vespas. Todos eles revelam possibilidades de chegar a ser homens, mas só quando vislumbram e aprendem a levá-las em parte à sua consciência é que se pode dizer que possuem uma...” (pág. 127)

“Quando odiamos um homem, odiamos em sua imagem algo que trazemos em nós mesmos. Também o que não está em nós mesmos nos deixa indiferentes.” (pág. 135)

"O que verdadeiramente me fazia bem era o progresso do conhecimento de mim mesmo, minha confiança crescente em meus próprios sonhos, ideias e intuições; a revelação, a cada dia mais clara, do poder que em mim mesmo levava."(pág. 142)

"Tudo seguia padrões rígidos, todos faziam as mesmas coisas, e a calorosa alegria das faces juvenis tinha a mesma expressão lamentavelmente vazia e impessoal." (pág. 154)

"Em toda parte era o mesmo! Todos os homens buscavam a "liberdade" e a "felicidade" num ponto qualquer do passado, só de medo de ver erguer-se diante deles a visão da responsabilidade própria e da própria trajetória."(pág. 159)

"Nunca se chega ao porto. Mas quando duas rotas amigas coincidem, o mundo inteiro parece então o anelado porto." (pág. 162)

"Tudo o que me era importante, tudo o que para mim era destino, podia adquirir sua figura. Podia transformar-se em cada um de meus pensamentos, e cada um de meus pensamentos transformar-se nela." (pág. 172)

"Ela era o mar e eu o rio que nele desembocava. Era uma estrela e eu outra que marchava em sua direção. Encontrávamo-nos e nos sentíamos mutuamente atraídos, permanecíamos juntos e girávamos felizes por toda a eternidade em círculos muito próximos e vibrantes, um ao redor do outro." (pág. 173)

"Antes me havia perguntado muitas vezes por que eram tão poucos os homens que conseguiam viver por um ideal. Agora percebia que todos os homens eram capazes de morrer por um ideal. Mas não por um ideal seu, livremente escolhido, mas por um ideal comum e transmitido." (pág. 184)

Herman Hesse, Demian

Sonho

Miriam Briks


A forma que o sonho adquire fica presa

nas mãos, de onde se solta à medida que a noite

avança. E se os olhos estão fechados, é porque

isso é necessário para que se possa ver

a única paisagem que importa: um comboio

de palavras que avança nas linhas da vida,

atirando para o céu do futuro um fumo

de imagens. O poema captá-las-á; e

poderás acordar, então, vendo que o sono

serviu para alguma coisa.


Nuno Júdice 

Nydia Lozano 


 Um poema, dizes, em que

o amor se exprima, tudo

resumindo em palavras.

Mas o que fica

nas palavras

daquilo que se viveu?

Um pó de sílabas,

o ritmo pobre da

gramática, rimas sem nexo…


Nuno Júdice


OK, SOU CIUMENTO

Konstantin Razumov

não é por não dizer que eu não o tenha

(se digo, mais ridículo me vejo).

eu morro quando alguém te deixa um beijo,

ou algo te insinua, tipo senha.


é um 'soco em meu estômago'. é lenha

saber que alguém deseja o que eu desejo

— disfarço com desdém, algum bocejo...

depois me desmorono — mas, convenha:



por que me és tão linda, linda minha?

por que me és tão minha, minha linda?

(vai, diz que o meu ciúme é babaquice...)



confesso. e nem metade do que eu tinha

a dizer, disse. a lista é quase infinda.

é só para que saibas. pronto, disse.


Antoniel Campos

razumov


 As coisas pequenas

em grande as vou viver —

teu corpo a dançar!


Casimiro de Brito

Roberto-Ferri


Se não te amar, não amarei. Se não me amares, não serei amado. Sou o espelho da tua alma alvoraçada. O único de verdade onde te podes reconhecer e por fim encontrar. Antes de ti não sabia quem era, andava no escuro à tua procura. Quando te vi, foi a mim que vi: uma mesma melancolia nos olhos, um sorriso a fazer pouco do mundo, uma maneira de andar como senão tocasses o chão com os pés. Tinhas menos vinte anos, a vida por fazer, a certeza de que os dois seríamos um só que nada nem ninguém poderia afastar. O amor, o meu outro eu. Sim, meu amor, eu sou tu e tu és eu. Vem daqui a inexpugnável, embora inverificável, certeza que tinhas de ser tu, só tu, que não podia ser mais ninguém. Senão seria outro, sem saber quem seria, perdido o meu nome. Tu eras o que vem, o futuro que abre o presente. Se não fosses tu não valia a pena.

Amo-me ainda quando te amo.


Pedro Paixão


 

Ron Rics


Apaixonar-se é individualizar alguém pelos signos, aprendê-los (como a individualização de Albertina no grupo de jovens). É possível que a amizade se nutra de observação e de conversa, mas o amor nasce e se alimenta de interpretação silenciosa. O ser amado aparece como um signo, uma "alma": exprime um mundo possível, desconhecido de nós.

Gilles Deleuze


 

Yuri Krotov.


Não sei de amor senão o amor perdido

O amor que só se tem de nunca o ter

procuro em cada corpo o nunca tido

e é esse que não para de doer.

Não sei de amor senão o amor ferido

de tanto te encontrar e te perder.


Yarek GODFREY 

Não sei de amor senão o não ter tido

teu corpo que não cesso de perder

nem de outro modo sei se tem sentido

este amor que só vive de não ter

o teu corpo que é meu porque perdido

não sei de amor senão esse doer.

Rosanna Miccolis

Não sei de amor senão esse perder

teu corpo tão sem ti e nunca tido

para sempre só meu de nunca o ter

teu corpo que me dóis no corpo ferido

onde não deixou nunca de doer

não sei de amor senão o amor perdido.


vidan

Não sei de amor senão o sem sentido

deste amor que não morre por morrer

o teu corpo tão nu nunca despido

o teu corpo tão vivo de o perder

neste amor que só é de não ter sido

não sei de amor senão esse não ter.

Serge Marshennikov

Não sei de amor senão o não haver

amor que dure mais que o nunca tido.

Há um corpo que não para de doer

só esse é sempre meu de nunca o ser

não sei de amor senão o amor ferido.


vicente romero


Não sei de amor senão o tempo ido

em que amor era amor de puro arder

tudo passa mas não o não ter tido

o teu corpo de ser e de não ser

só esse é amei por nunca ter ardido

não se de amor senão esse perder.



Cintilante na noite um corpo ferido

só nele de o não ter tido eu hei-de arder

não sei de amor senão amor perdido


Manuel Alegre

 

 Serguei Toutounov


Ele era um andarilho.

Ele tinha um olhar cheio de sol

de águas

de árvores

de aves.

Ao passar pela Aldeia

Ele sempre me pareceu a liberdade em trapos.

O silêncio honrava a sua vida.


Manoel de Barros in: Poemas Rupestres

 

Domingo Alvarez Gomez


Deixei atrás os erros do que fui,

Deixei atrás os erros do que quis

E que não pude haver porque a hora flui

E ninguém é exato nem feliz.


Fernando Pessoa


 Pedro Alexandrino Borges


Let me take you down
‘cause I’m going to strawberryfields
nothíng is real, and nothing to get hung about
strawberryfieldsforever

Abriu os dedos. Absolutamente calmo, absolutamente claro, absolutamente só enquanto considerava atento, observando os canteiros de cimento: será possível plantar morangos aqui? Ou se não aqui, procurar algum lugar em outro lugar? Frescos morangos vivos vermelhos.
Achava que sim.
Que sim.
Sim.


Caio Fernando Abreu

O espelho



Esse que em mim envelhece
assomou ao espelho
a tentar mostrar que sou eu.

Os outros de mim,
fingindo desconhecer a imagem,
deixaram-me a sós, perplexo,
com meu súbito reflexo.

A idade é isto: o peso da luz
com que nos vemos.

Mia Couto, O Espelho

quinta-feira, 19 de agosto de 2021

Um poema



Em plena luta de classes
escreveu um poema de amor.

Acossado pela fome de justiça
escreveu um poema de amor.

Entre a tortura e a morte
escreveu um poema de amor.

Entre o sangue e as balas
escreveu um poema de amor.

um poema de amor para ninguém,
para uma mulher que não existia.

Agora,
amado até à raiz da sua sombra
por esta mulher que lhe beija as feridas,

agora,
que na noite gelada ela o cobre com o seu corpo nu,
arma-se com papel e lápis
salta da cama
e sem perturbar o sono da sua amada
escreve um poema social

um poema estremecido por lutas e batalhas
um poema por cujos versos passam
pedindo justiça
as massas camponesas e operárias.


Joaquim Pessoa

domingo, 15 de agosto de 2021

Serge Marshennikov

 

Na tua pele toda a terra treme

alguém fala com Deus alguém flutua

há um corpo a navegar e um anjo ao leme.


Das tuas coxas pode ver-se a Lua

contigo o mar ondula e o vento geme

e há um espírito a nascer de seres tão nua…


Manuel Alegre


Espera



Dei-te a solidão do dia inteiro.

Na praia deserta, brincando com a areia,

No silêncio que apenas quebrava a maré cheia

A gritar o seu eterno insulto,

Longamente esperei que o teu vulto

Rompesse o nevoeiro.


Sophia de Mello Breyner Andersen

Dance universe



When you dance the whole universe dances.

All the realms spun around you in endless celebration.

Your soul loses its grip.

Your body sheds its fatigue.

Hearing my hands clap and my drum beat,

You begin to whirl.


Rumi poem translated by Shahram Shiva

 

vicente romero


A poesia é, de fato, o fruto

de um silêncio que sou eu, sois vós,

por isso tenho que baixar a voz

porque, se falo alto, não me escuto.


A poesia é, na verdade, uma

falta ao revés da fala,

como um silêncio que o poeta exuma

do pó, a voz que jaz embaixo

do falar e no falar se cala.

Por isso o poeta tem que falar baixo

baixo quase sem fala em suma

mesmo que não se ouça coisa alguma.


Aliás, confessa o poeta: “apenas fulge / em alguma parte alguma / da vida.”


Ferreira Gullar

vicente romero

 

explicar com palavras deste mundo

que partiu de mim um barco levando-me


Alejandra Pizarnik

 

vicente romero


o verso

lá do outro lado

é margem inversa

da imagem complexa

de onde com (versam)

os poréns da reflexão

o lago é espelho

de um poema inacabado…


Denison Mendes


 

vicente romero


As palavras são

As línguas dos olhos

Mas o que é um poema

Senão

Um telescópio do desejo

Fixado pela língua?

O voo sinuoso das aves

As altas ondas do mar

A calmaria do vento:

Tudo

Tudo cabe dentro das palavras

E o poeta que vê

Chora lágrimas de tinta.


Ana Hatherly


I have come to shine



I have come

to take you by your hand,

and bring you to myself.


I have come

to shine your way

as you walk this path.


I will make you guiltless,

I will make you fearless,

then I will place you in the

brightest point in the universe.

I have come like a breeze of spring

to your field of flowers,

so I can hold you by my side,

and embrace you tight.


I have come

to take you by your hand,

and bring you to myself.


I have come

to shine your way

as you walk this path.


Like the cry of lovers,

I will help you reach the

roof of heavens.


From the dust of the earth to a human being,

there are a thousand steps.

I have been with you through these steps,

I have held your hand and walked by your side.


And I will be with you

as you move beyond this human form

and soar to the highest heavens.


Rumi poem translated by Shahram Shiva