segunda-feira, 1 de julho de 2024

O animal que logo sou, Jacques Derrida


Há muito tempo, pode-se dizer que o animal nos olha?

Que animal? O outro.

Frequentemente me pergunto, para ver, quem sou eu - e quem sou eu no momento em que, surpreendido nu, em silêncio, pelo olhar de um animal, por exemplo os olhos de um gato, tenho dificuldade, sim, dificuldade de vencer um incômodo.

Por que essa dificuldade?

Tenho dificuldade de reprimir um movimento de pudor. Dificuldade de calar em mim um protesto contra a indecência. Contra o mal-estar que pode haver em encontrar-se nu, o sexo exposto, nu diante de um gato que nos observa sem se mexer, apenas para ver.

Mal-estar de um tal animal nu diante de outro animal, assim, poder-se-ia dizer uma espécie de animal-estar: a experiência original, única e incomparável deste mal-estar que haveria em aparecer verdadeiramente nu, diante do olhar insistente do animal, um olhar benevolente ou impiedoso, surpreso ou que reconhece. 

Um olhar de vidente, de visionário ou de cego extralúcido.

I~ como se eu tivesse vergonha, então, nu diante do gato, mas também vergonha de ter vergonha. Reflexão da vergonha, espelho de uma vergonha envergonhada dela mesma, de uma vergonha ao mesmo tempo especular, injustificável e inconfessável. No centro ótico de uma tal reflexão se encontraria a coisa - e aos meus olhos o foco dessa experiência incomparável que se chama nudez. E que se acredita ser o próprio do homem, quer dizer, estranha aos animais, nus como são, pensamos então, sem a menor consciência de sê-lo.

Vergonha de quê, e nu diante de quem? Por que se deixar invadir de vergonha? E por que esta vergonha que enrubesce de ter vergonha? Sobretudo, deveria eu precisar, se o gato me observa nu de/ace, face a face, e se eu estou nu aos olhos do gato que me olha da cabeça aos pés, diria eu, apenas para ver, sem se privar de mergulhar sua vista, para ver, com vistas a ver, em direção ao sexo. Para ver, sem ir lá ver, sem ainda tocar nele, e sem lhe dar uma mordida, embora essa ameaça permaneça à flor dos lábios ou na ponta da língua. Acontece aí alguma coisa que não deveria ocorrer - como tudo que ocorre, em suma, um lapso, uma queda, uma falha, uma falta, um sintoma (e sintoma, vocês sabem, quer dizer também a queda: o caso, o acontecimento infeliz, a coincidência, o fim do prazo, a má sorte). É como se, há pouco, eu tivesse dito ou

fosse dizer o interdito, alguma coisa que não se deveria dizer. Como se por um sintoma eu confessasse o inconfessável e, como se diz, eu tivesse querido morder minha língua.

Vergonha de quê, e diante de quem? Vergonha de estar nu como um animal. Acredita-se geralmente, mas nenhum dos filósofos que vou questionar daqui a pouco menciona isso, que o próprio dos animais, e aquilo que os distingue em última instância do homem, é estarem nus sem o saber. Logo, o fato de não estarem nus, de não terem o saber de sua nudez, a consciência do bem e do mal, em suma.

Assim, nus sem o saber, os animais não estariam, em verdade, nus. Eles não estariam nus porque eles são nus. Em princípio, excetuando-se o homem, nenhum animal jamais imaginou se vestir. O vestuário seria o próprio do homem, um dos "próprios" do homem. O "vestir-se" seria inseparável de todas as outras figuras do "próprio elo homem", mesmo que se fale menos disso do que da palavra ou da razão, do logos, da história, do rir, do luto, da sepultura, do dom etc. (A lista dos "próprios do homem" forma sempre uma configuração, desde o primeiro instante. Por essa mesma razão, ela não se limita nunca a um só traço e não é nunca completa: estruturalmente, ela pode imantar um número não finito de outros conceitos, a começar pelo conceito de conceito.)

O animal, portanto, não está nu porque ele é nu.

Ele não tem o sentimento de sua nudez. Não há nudez "na natureza". Existe apenas o sentimento, o afeto, a experiência (consciente ou inconsciente) de existir na nudez. Por ele ser nu, sem existir na nudez, o animal não se sente nem se vê nu. Assim, ele não está nu. Ao menos é o que se pensa. Para o hqmem seria o contrário, e o vestuário responde a uma técnica. Nós teríamos então de pensar juntos, como um mesmo "tema", o pudor e a técnica. E o mal e a história, e o trabalho, e tantas outras coisas que o acompanham. O homem seria o único a inventar-se uma vestimenta para esconder seu sexo. Só seria homem ao tornar-se capaz de nudez, ou seja, pudico, ao saber-se pudico porque não está mais nu. E saber-se, seria saber-se pudico. O animal, este, nu por não ter consciência de estar nu, crê-se que permaneceria tão alheio ao pudor quanto ao impudor. E ao saber de si que isso implica.

O que é o pudor se só se pode ser pudico permanecendo impudico, e reciprocamente? O homem não seria nunca mais nu porque ele tem o sentido da nudez, ou seja, o pudor ou a vergonha. O animal estaria na não-nudez porque nu, e o homem na nudez precisamente lá onde ele não é mais nu. Eis aí uma diferença, eis aí um tempo ou um contratempo entre duas nudezes sem nudez. Esse contratempo está apenas começando a nos incomodar, no que diz respeito à ciência do bem e do mal.

Diante do gato que me olha nu, teria eu vergonha como um animal que não tem o sentido de sua nudez? Ou, ao contrário, vergonha como um homem que guarda o sentido da nudez? Quem sou eu então? Quem é este que eu sou? A quem perguntar, senão ao outro? E talvez ao próprio gato?

Devo precisar imediatamente, o gato do qual falo é um gato real, efetivamente, acreditem-me, um gatinho. Não é uma figura do gato. Ele não entra silenciosamente no quarto para alegorizar todos os gatos do mundo, os felinos que atravessam as mitologias e as religiões, a literatura e as fábulas. Há tantos. O gato do qual falo não pertence à imensa zoopoética de Kafka, que mereceria aqui uma solicitude infinita e original.

O gato que me olha, e ao qual pareço estar, mas não se fiem às aparências, consagrando uma zooteologia negativa, não é tampouco o gato Murr de Hoffmann ou de Kofman, embora ele saúde comigo, nesta ocasião, o livro magnífico e inesgotável que lhe dedicou Sarah Kofman, Autohiogr~[{Ltres/' cujo título ressoa tão bem com o deste encontro. Ele vela sobre este encontro e precisaria ser citado ou relido permanentemente.

Um animal me olha. O que devo pensar dessa frase? O gato que me olha nu, e que é verdadeiramene um gatinho, esse gato do qual falo, que é também uma gata, não é tampouco a gata de Montaigne, que diz no entanto "minha gata" na sua Apologie de Raimond Sehond. Trata-se, vocês o reconhecerão, de um dos maiores textos pré-cartesianos e anticartesianos que existem sobre o animal. Nós nos interessaremos mais tarde por uma certa mutação de Montaigne a Descartes, por um certo evento obscuro e difícil de datar, de identificar mesmo, entre determinadas configurações das quais esses nomes próprios são as metonímias.

Montaigne zomba da "impudência humana sobre o próprio dos animais", da "presunção" e da "imaginação" do homem quando este pretende, por exemplo saber o que se passa na cabeça dos animais. Sobretudo, quando pretende lhes conferir ou lhes recusar algumas faculdades. Ao contrário, seria preciso reconhecer nos animais uma "facilidade" de vocalizar letras e sílabas. Poder que, Montaigne assegura com convicção, "testemunha que eles têm um discurso interno que lhes possibilita serem disciplináveis e voluntários para aprender". Interpelando o homem que "retalha os animais seus confrades e companheiros, e lhes distribui tal porção de faculdades e de forças como bem lhe convém", ele se pergunta - e a questão, então, não é mais tanto o animal, mas a segurat1(,'a ingênua do homem:

Como ele conhece, pelo esforço de sua inteligência, os movimentos internos e os segredos cios animais? Pôr qual comparação entre eles e nós, conclui pela animalidade que lhes atribui?
Quando eu brinco com minha gata, quem é que sabe se ela passa seu tempo comigo mais do que eu o
faço com ela? reconhece ao animal mais que um direito à comunicação, ao signo, à linguagem como signo (isto, Descartes não negará): um poder de responder. Por exemplo: "não é crível que a natureza nos tenha recusado este meio que ela deu a muitos outros animais: efetivamente, que outra coisa se poderia ter que não o falar, esta faculdade que nós observamos neles de se queixar, de se contentar, de pedir socorro entre eles, de convidar ao amor, como eles o fazem pelo uso de suas vozes? Como eles
não falariam entre eles? Eles falam a nós e nós a eles. De quantas maneiras nós falamos a nossos cachorros? E eles nos respondem. Outra linguagem, outros chamamentos partilhamos com eles e com os pássaros, com os porcos, os bois, os cavalos, e mudamos de idioma de acordo com a espécie ... ". E segundo uma citação de Dante sobre a formiga: "Parece que Lactance atribui aos animais, não o falar apenas, mas também o riso".