quarta-feira, 3 de julho de 2024

 

Susana Zárate 


Você é uma espantada num mundo sempre novo. 

A hora deste instante nunca será repetida até o fim dos séculos.


Clarice Lispector, Um sopro de vida

segunda-feira, 1 de julho de 2024

A Solidão Amiga - Rubem Alves


"A noite chegou, o trabalho acabou, é hora de voltar para casa. Lar, doce lar? Mas a casa está escura, a televisão apagada e tudo é silêncio. Ninguém para abrir a porta, ninguém à espera. Você está só. Vem a tristeza da solidão... O que mais você deseja é não estar em solidão...

Mas deixa que eu lhe diga: sua tristeza não vem da solidão. Vem das fantasias que surgem na solidão. Lembro-me de um jovem que amava a solidão: ficar sozinho, ler, ouvir, música... Assim, aos sábados, ele se preparava para uma noite de solidão feliz. Mas bastava que ele se assentasse para que as fantasias surgissem. Cenas. De um lado, amigos em festas felizes, em meio ao falatório, os risos, a cervejinha. Aí a cena se alterava: ele, sozinho naquela sala. Com certeza ninguém estava se lembrando dele. Naquela festa feliz, quem se lembraria dele? E aí a tristeza entrava e ele não mais podia curtir a sua amiga solidão. O remédio era sair, encontrar-se com a turma para encontrar a alegria da festa. Vestia-se, saía, ia para a festa... Mas na festa ele percebia que festas reais não são iguais às festas imaginadas. Era um desencontro, uma impossibilidade de compartilhar as coisas da sua solidão... A noite estava perdida.

Faço-lhe uma sugestão: leia o livro A chama de uma vela, de Bachelard. É um dos livros mais solitários e mais bonitos que jamais li. A chama de uma vela, por oposição às luzes das lâmpadas elétricas, é sempre solitária. A chama de uma vela cria, ao seu redor, um círculo de claridade mansa que se perde nas sombras. Bachelard medita diante da chama solitária de uma vela. Ao seu redor, as sombras e o silêncio. Nenhum falatório bobo ou riso fácil para perturbar a verdade da sua alma. Lendo o livro solitário de Bachelard eu encontrei comunhão. Sempre encontro comunhão quando o leio. As grandes comunhões não acontecem em meio aos risos da festa. Elas acontecem, paradoxalmente, na ausência do outro. Quem ama sabe disso. É precisamente na ausência que a proximidade é maior. Bachelard, ausente: eu o abracei agradecido por ele assim me entender tão bem. Como ele observa, "parece que há em nós cantos sombrios que toleram apenas uma luz bruxoleante. Um coração sensível gosta de valores frágeis". A vela solitária de Bachelard iluminou meus cantos sombrios, fez-me ver os objetos que se escondem quando há mais gente na cena. E ele faz uma pergunta que julgo fundamental e que proponho a você, como motivo de meditação: "Como se comporta a Sua Solidão?" Minha solidão? Há uma solidão que é minha, diferente das solidões dos outros? A solidão se comporta? Se a minha solidão se comporta, ela não é apenas uma realidade bruta e morta. Ela tem vida.

Entre as muitas coisas profundas que Sartre disse, essa é a que mais amo: "Não importa o que fizeram com você. O que importa é o que você faz com aquilo que fizeram com você." Pare. Leia de novo. E pense. Você lamenta essa maldade que a vida está fazendo com você, a solidão. Se Sartre está certo, essa maldade pode ser o lugar onde você vai plantar o seu jardim.

Como é que a sua solidão se comporta? Ou, talvez, dando um giro na pergunta: Como você se comporta com a sua solidão? O que é que você está fazendo com a sua solidão? Quando você a lamenta, você está dizendo que gostaria de se livrar dela, que ela é um sofrimento, uma doença, uma inimiga... Aprenda isso: as coisas são os nomes que lhe damos. Se chamo minha solidão de inimiga, ela será minha inimiga. Mas será possível chamá-la de amiga? 

Drummond acha que sim: "Por muito tempo achei que a ausência é falta./ E lastimava, ignorante, a falta./ Hoje não a lastimo./ Não há falta na ausência. A ausência é um estar em mim./ E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,/ que rio e danço e invento exclamações alegres,/ porque a ausência, essa ausência assimilada,/ ninguém a rouba mais de mim.!"

Nietzsche também tinha a solidão como sua companheira. Sozinho, doente, tinha enxaquecas terríveis que duravam três dias e o deixavam cego. Ele tirava suas alegrias de longas caminhadas pelas montanhas, da música e de uns poucos livros que ele amava. Eis aí três companheiras maravilhosas! Vejo, frequentemente, pessoas que caminham por razões da saúde. Incapazes de caminhar sozinhas, vão aos pares, aos bandos. E vão falando, falando, sem ver o mundo maravilhoso que as cerca. Falam porque não suportariam caminhar sozinhas. E, por isso mesmo, perdem a maior alegria das caminhadas, que é a alegria de estar em comunhão com a natureza. Elas não vêem as árvores, nem as flores, nem as nuvens e nem sentem o vento. Que troca infeliz! Trocam as vozes do silêncio pelo falatório vulgar. Se estivessem a sós com a natureza, em silêncio, sua solidão tornaria possível que elas ouvissem o que a natureza tem a dizer. O estar juntos não quer dizer comunhão. O estar juntos, frequentemente, é uma forma terrível de solidão, um artifício para evitar o contato conosco mesmos. Sartre chegou ao ponto de dizer que "o inferno é o outro." Sobre isso, quem sabe, conversaremos outro dia... 

Mas, voltando a Nietzsche, eis o que ele escreveu sobre a sua solidão:

"Ó solidão! Solidão, meu lar!... Tua voz - ela me fala com ternura e felicidade!

Não discutimos, não queixamos e muitas vezes caminhamos juntos através de portas abertas.

Pois onde quer que estás, ali as coisas são abertas e luminosas. E até mesmo as horas caminham com pés saltitantes.

Ali as palavras e os tempos/poemas de todo o ser se abrem diante de mim. Ali todo ser deseja transformar-se em palavra, e toda mudança pede para aprender de mim a falar."

E o Vinícius? Você se lembra do seu poema O operário em construção? Vivia o operário em meio a muita gente, trabalhando, falando. E enquanto ele trabalhava e falava ele nada via, nada compreendia. Mas aconteceu que, "certo dia, à mesa, ao cortar o pão, o operário foi tomado de uma súbita emoção ao constatar assombrado que tudo naquela casa - garrafa, prato, facão - era ele que os fazia, ele, um humilde operário, um operário em construção (...) Ah! Homens de pensamento, não sabereis nunca o quando aquele humilde operário soube naquele momento! Naquela casa vazia que ele mesmo levantara, um mundo novo nascia de que nem sequer suspeitava. O operário emocionado olhou sua própria mão, sua rude mão de operário, e olhando bem para ela teve um segundo a impressão de que não havia no mundo coisa que fosse mais bela. Foi dentro da compreensão desse instante solitário que, tal sua construção, cresceu também o operário. (...) E o operário adquiriu uma nova dimensão: a dimensão da poesia."

Rainer Maria Rilke, um dos poetas mais solitários e densos que conheço, disse o seguinte: "As obras de arte são de uma solidão infinita." É na solidão que elas são geradas. Foi na casa vazia, num momento solitário, que o operário viu o mundo pela primeira vez e se transformou em poeta.

E me lembro também de Cecília Meireles, tão lindamente descrita por Drummond:

"...Não me parecia criatura inquestionavelmente real; e por mais que aferisse os traços positivos de sua presença entre nós, marcada por gestos de cortesia e sociabilidade, restava-me a impressão de que ela não estava onde nós a víamos... Distância, exílio e viagem transpareciam no seu sorriso benevolente? Por onde estaria a verdadeira Cecília..."

Sim, lá estava ela delicadamente entre os outros, participando de um jogo de relações gregárias que a delicadeza a obrigava a jogar. Mas a verdadeira Cecília estava longe, muito longe, num lugar onde ela estava irremediavelmente sozinha."

O primeiro filósofo que li, o dinamarquês Soeren Kiekeggard, um solitário que me faz companhia até hoje, observou que o início da infelicidade humana se encontra na comparação. Experimentei isso em minha própria carne. Foi quando eu, menino caipira de uma cidadezinha do interior de Minas, me mudei para o Rio de Janeiro, que conheci a infelicidade. Comparei-me com eles: cariocas, espertos, bem falantes, ricos. Eu diferente, sotaque ridículo, gaguejando de vergonha, pobre: entre eles eu não passava de um patinho feio que os outros se compraziam em bicar. Nunca fui convidado a ir à casa de qualquer um deles. Nunca convidei nenhum deles a ir à minha casa. Eu não me atreveria. Conheci, então, a solidão. A solidão de ser diferente. E sofri muito. E nem sequer me atrevi a compartilhar com meus pais esse meu sofrimento. Seria inútil. Eles não compreenderiam. E mesmo que compreendessem, eles nada podiam fazer. Assim, tive de sofrer a minha solidão duas vezes sozinho. Mas foi nela que se formou aquele que sou hoje. As caminhadas pelo deserto me fizeram forte. Aprendi a cuidar de mim mesmo. E aprendi a buscar as coisas que, para mim, solitário, faziam sentido. Como, por exemplo, a música clássica, a beleza que torna alegre a minha solidão...

sua infelicidade com a solidão: não se deriva ela, em parte, das comparações? Você compara a cena de você, só, na casa vazia, com a cena (fantasiada) dos outros, em celebrações cheias de risos... Essa comparação é destrutiva porque nasce da inveja. Sofra a dor real da solidão porque a solidão dói. Dói uma dor da qual pode nascer a beleza. Mas não sofra a dor da comparação. Ela não é verdadeira.

Mas essa conversa não acabou: vou falar depois sobre os companheiros que fazem minha solidão feliz."

( Publicado em Chiado Magazine - 17 de fevereiro de 2015)

O animal que logo sou, Jacques Derrida


Há muito tempo, pode-se dizer que o animal nos olha?

Que animal? O outro.

Frequentemente me pergunto, para ver, quem sou eu - e quem sou eu no momento em que, surpreendido nu, em silêncio, pelo olhar de um animal, por exemplo os olhos de um gato, tenho dificuldade, sim, dificuldade de vencer um incômodo.

Por que essa dificuldade?

Tenho dificuldade de reprimir um movimento de pudor. Dificuldade de calar em mim um protesto contra a indecência. Contra o mal-estar que pode haver em encontrar-se nu, o sexo exposto, nu diante de um gato que nos observa sem se mexer, apenas para ver.

Mal-estar de um tal animal nu diante de outro animal, assim, poder-se-ia dizer uma espécie de animal-estar: a experiência original, única e incomparável deste mal-estar que haveria em aparecer verdadeiramente nu, diante do olhar insistente do animal, um olhar benevolente ou impiedoso, surpreso ou que reconhece. 

Um olhar de vidente, de visionário ou de cego extralúcido.

I~ como se eu tivesse vergonha, então, nu diante do gato, mas também vergonha de ter vergonha. Reflexão da vergonha, espelho de uma vergonha envergonhada dela mesma, de uma vergonha ao mesmo tempo especular, injustificável e inconfessável. No centro ótico de uma tal reflexão se encontraria a coisa - e aos meus olhos o foco dessa experiência incomparável que se chama nudez. E que se acredita ser o próprio do homem, quer dizer, estranha aos animais, nus como são, pensamos então, sem a menor consciência de sê-lo.

Vergonha de quê, e nu diante de quem? Por que se deixar invadir de vergonha? E por que esta vergonha que enrubesce de ter vergonha? Sobretudo, deveria eu precisar, se o gato me observa nu de/ace, face a face, e se eu estou nu aos olhos do gato que me olha da cabeça aos pés, diria eu, apenas para ver, sem se privar de mergulhar sua vista, para ver, com vistas a ver, em direção ao sexo. Para ver, sem ir lá ver, sem ainda tocar nele, e sem lhe dar uma mordida, embora essa ameaça permaneça à flor dos lábios ou na ponta da língua. Acontece aí alguma coisa que não deveria ocorrer - como tudo que ocorre, em suma, um lapso, uma queda, uma falha, uma falta, um sintoma (e sintoma, vocês sabem, quer dizer também a queda: o caso, o acontecimento infeliz, a coincidência, o fim do prazo, a má sorte). É como se, há pouco, eu tivesse dito ou

fosse dizer o interdito, alguma coisa que não se deveria dizer. Como se por um sintoma eu confessasse o inconfessável e, como se diz, eu tivesse querido morder minha língua.

Vergonha de quê, e diante de quem? Vergonha de estar nu como um animal. Acredita-se geralmente, mas nenhum dos filósofos que vou questionar daqui a pouco menciona isso, que o próprio dos animais, e aquilo que os distingue em última instância do homem, é estarem nus sem o saber. Logo, o fato de não estarem nus, de não terem o saber de sua nudez, a consciência do bem e do mal, em suma.

Assim, nus sem o saber, os animais não estariam, em verdade, nus. Eles não estariam nus porque eles são nus. Em princípio, excetuando-se o homem, nenhum animal jamais imaginou se vestir. O vestuário seria o próprio do homem, um dos "próprios" do homem. O "vestir-se" seria inseparável de todas as outras figuras do "próprio elo homem", mesmo que se fale menos disso do que da palavra ou da razão, do logos, da história, do rir, do luto, da sepultura, do dom etc. (A lista dos "próprios do homem" forma sempre uma configuração, desde o primeiro instante. Por essa mesma razão, ela não se limita nunca a um só traço e não é nunca completa: estruturalmente, ela pode imantar um número não finito de outros conceitos, a começar pelo conceito de conceito.)

O animal, portanto, não está nu porque ele é nu.

Ele não tem o sentimento de sua nudez. Não há nudez "na natureza". Existe apenas o sentimento, o afeto, a experiência (consciente ou inconsciente) de existir na nudez. Por ele ser nu, sem existir na nudez, o animal não se sente nem se vê nu. Assim, ele não está nu. Ao menos é o que se pensa. Para o hqmem seria o contrário, e o vestuário responde a uma técnica. Nós teríamos então de pensar juntos, como um mesmo "tema", o pudor e a técnica. E o mal e a história, e o trabalho, e tantas outras coisas que o acompanham. O homem seria o único a inventar-se uma vestimenta para esconder seu sexo. Só seria homem ao tornar-se capaz de nudez, ou seja, pudico, ao saber-se pudico porque não está mais nu. E saber-se, seria saber-se pudico. O animal, este, nu por não ter consciência de estar nu, crê-se que permaneceria tão alheio ao pudor quanto ao impudor. E ao saber de si que isso implica.

O que é o pudor se só se pode ser pudico permanecendo impudico, e reciprocamente? O homem não seria nunca mais nu porque ele tem o sentido da nudez, ou seja, o pudor ou a vergonha. O animal estaria na não-nudez porque nu, e o homem na nudez precisamente lá onde ele não é mais nu. Eis aí uma diferença, eis aí um tempo ou um contratempo entre duas nudezes sem nudez. Esse contratempo está apenas começando a nos incomodar, no que diz respeito à ciência do bem e do mal.

Diante do gato que me olha nu, teria eu vergonha como um animal que não tem o sentido de sua nudez? Ou, ao contrário, vergonha como um homem que guarda o sentido da nudez? Quem sou eu então? Quem é este que eu sou? A quem perguntar, senão ao outro? E talvez ao próprio gato?

Devo precisar imediatamente, o gato do qual falo é um gato real, efetivamente, acreditem-me, um gatinho. Não é uma figura do gato. Ele não entra silenciosamente no quarto para alegorizar todos os gatos do mundo, os felinos que atravessam as mitologias e as religiões, a literatura e as fábulas. Há tantos. O gato do qual falo não pertence à imensa zoopoética de Kafka, que mereceria aqui uma solicitude infinita e original.

O gato que me olha, e ao qual pareço estar, mas não se fiem às aparências, consagrando uma zooteologia negativa, não é tampouco o gato Murr de Hoffmann ou de Kofman, embora ele saúde comigo, nesta ocasião, o livro magnífico e inesgotável que lhe dedicou Sarah Kofman, Autohiogr~[{Ltres/' cujo título ressoa tão bem com o deste encontro. Ele vela sobre este encontro e precisaria ser citado ou relido permanentemente.

Um animal me olha. O que devo pensar dessa frase? O gato que me olha nu, e que é verdadeiramene um gatinho, esse gato do qual falo, que é também uma gata, não é tampouco a gata de Montaigne, que diz no entanto "minha gata" na sua Apologie de Raimond Sehond. Trata-se, vocês o reconhecerão, de um dos maiores textos pré-cartesianos e anticartesianos que existem sobre o animal. Nós nos interessaremos mais tarde por uma certa mutação de Montaigne a Descartes, por um certo evento obscuro e difícil de datar, de identificar mesmo, entre determinadas configurações das quais esses nomes próprios são as metonímias.

Montaigne zomba da "impudência humana sobre o próprio dos animais", da "presunção" e da "imaginação" do homem quando este pretende, por exemplo saber o que se passa na cabeça dos animais. Sobretudo, quando pretende lhes conferir ou lhes recusar algumas faculdades. Ao contrário, seria preciso reconhecer nos animais uma "facilidade" de vocalizar letras e sílabas. Poder que, Montaigne assegura com convicção, "testemunha que eles têm um discurso interno que lhes possibilita serem disciplináveis e voluntários para aprender". Interpelando o homem que "retalha os animais seus confrades e companheiros, e lhes distribui tal porção de faculdades e de forças como bem lhe convém", ele se pergunta - e a questão, então, não é mais tanto o animal, mas a segurat1(,'a ingênua do homem:

Como ele conhece, pelo esforço de sua inteligência, os movimentos internos e os segredos cios animais? Pôr qual comparação entre eles e nós, conclui pela animalidade que lhes atribui?
Quando eu brinco com minha gata, quem é que sabe se ela passa seu tempo comigo mais do que eu o
faço com ela? reconhece ao animal mais que um direito à comunicação, ao signo, à linguagem como signo (isto, Descartes não negará): um poder de responder. Por exemplo: "não é crível que a natureza nos tenha recusado este meio que ela deu a muitos outros animais: efetivamente, que outra coisa se poderia ter que não o falar, esta faculdade que nós observamos neles de se queixar, de se contentar, de pedir socorro entre eles, de convidar ao amor, como eles o fazem pelo uso de suas vozes? Como eles
não falariam entre eles? Eles falam a nós e nós a eles. De quantas maneiras nós falamos a nossos cachorros? E eles nos respondem. Outra linguagem, outros chamamentos partilhamos com eles e com os pássaros, com os porcos, os bois, os cavalos, e mudamos de idioma de acordo com a espécie ... ". E segundo uma citação de Dante sobre a formiga: "Parece que Lactance atribui aos animais, não o falar apenas, mas também o riso".

 

O par informação/opinião é muito geral e permeia também, por exemplo, nossa ideia de aprendizagem, inclusive do que os pedagogos e psicopedagogos chamam de "aprendizagem significativa". Desde pequenos até a universidade, ao largo de toda nossa travessia pelos aparatos educacionais, estamos submetidos a um dispositivo que funciona da seguinte maneira: primeiro é preciso informar-se e, depois, há de opinar, há que dar uma opinião obviamente própria, crítica e pessoal sobre o que quer que seja. A opinião seria como a dimensão "significativa" da assim chamada "aprendizagem significativa". A informação seria o objetivo, a opinião seria o subjetivo, ela seria nossa reação subjetiva ao objetivo. Além disso, como reação subjetiva, é uma reação que se tornou para nós automática, quase reflexa: informados sobre qualquer coisa, nós opinamos. Esse "opinar" se reduz, na maioria das ocasiões, em estar a favor ou contra. Com isso, nos convertemos em sujeitos competentes para responder como Deus manda as perguntas dos professores que, cada vez mais, se assemelham a comprovações de informações e a pesquisas de opinião. Diga-me o que você sabe, diga-me com que informação conta e exponha, em continuação, a sua opinião: esse o dispositivo periodístico do saber e da aprendizagem, o dispositivo que torna impossível a experiência.

*

Em terceiro lugar, a experiência é cada vez mais rara, por falta de tempo. Tudo o que se passa passa demasiadamente depressa, cada vez mais depressa. E com isso se reduz o estímulo fugaz e instantâneo, imediatamente substituído por outro estímulo ou por outra excitação igualmente fugaz e efêmera. O acontecimento nos é dado na forma de choque, do estímulo, da sensação pura, na forma da vivência instantânea, pontual e fragmentada. A velocidade com que nos são dados os acontecimentos e a obsessão pela novidade, pelo novo, que caracteriza o mundo moderno, impedem a conexão significativa entre acontecimentos. Impedem também a memória, já que cada acontecimento é imediatamente substituído por outro que igualmente nos excita por um momento, mas sem deixar qualquer vestígio. O sujeito moderno não só está informado e opina, mas também é um consumidor voraz e insaciável de notícias, de novidades, um curioso impenitente, eternamente insatisfeito. Quer estar permanentemente excitado e já se tornou incapaz de silêncio. Ao sujeito do estímulo, da vivência pontual, tudo o atravessa, tudo o excita, tudo o agita, tudo o choca, mas nada lhe acontece. Por isso, a velocidade e o que ela provoca, a falta de silêncio e de memória, são também inimigas mortais da experiência.

Nessa lógica de destruição generalizada da experiência, estou cada vez mais convencido de que os aparatos educacionais também funcionam cada vez mais no sentido de tornar impossível que alguma coisa nos aconteça. Não somente, como já disse, pelo funcionamento perverso e generalizado do par informação/opinão, mas também pela velocidade. Cada vez estamos mais tempo na escola (e a universidade e os cursos de formação do professorado são parte da escola), mas cada vez temos menos tempo. Esse sujeito da formação permanente e acelerada, da constante atualização, da reciclagem sem fim, é um sujeito que usa o tempo como um valor ou como uma mercadoria, um sujeito que não pode perder tempo, que tem sempre de aproveitar o tempo, que não pode protelar qualquer coisa, que tem de seguir o passo veloz do que se passa, que não pode ficar para trás, por isso mesmo, por essa obsessão por seguir o curso acelerado do tempo, este sujeito já não tem tempo. E na escola o currículo se organiza em pacotes cada vez mais numerosos e cada vez mais curtos. Com isso, também em educação estamos sempre acelerados e nada nos acontece.

Em quarto lugar, a experiência é cada vez mais rara por excesso de trabalho. Esse ponto me parece importante porque às vezes se confunde experiência com trabalho. Existe um clichê segundo o qual nos livros e nos centros de ensino se aprende a teoria, o saber que vem dos livros e das palavras, e no trabalho se adquire a experiência, o saber que vem do fazer ou da prática, como se diz atualmente. Quando se redige o currículo, distingue-se formação acadêmica e experiência de trabalho. Tenho ouvido falar de certa tendência aparentemente progressista no campo educacional que, depois de criticar o modo como nossa sociedade privilegia as aprendizagens acadêmicas, pretende implantar e homologar formas de contagem de créditos para a experiência e para o saber de experiência adquirido no trabalho. Por isso estou muito interessado em distinguir entre experiência e trabalho e, além disso, em criticar qualquer contagem de créditos para a experiência, qualquer conversão da experiência em créditos, em mercadoria, em valor de troca. Minha tese não é somente porque a experiência não tem nada a ver com o trabalho, mas, ainda mais fortemente, que o trabalho, essa modalidade de relação com as pessoas, com as palavras e com as coisas que chamamos trabalho, é também inimiga mortal da experiência.

O sujeito moderno, além de ser um sujeito informado que opina, além de estar permanentemente agitado e em movimento, é um ser que trabalha, quer dizer, que pretende conformar o mundo, tanto o mundo "natural" quanto o mundo "social" e "humano", tanto a "natureza externa" quanto a "natureza interna", segundo seu saber, seu poder e sua vontade. O trabalho é esta atividade que deriva desta pretensão. O sujeito moderno é animado por portentosa mescla de otimismo, de progressismo e de agressividade: crê que pode fazer tudo o que se propõe (e se hoje não pode, algum dia poderá) e para isso não duvida em destruir tudo o que percebe como um obstáculo à sua onipotência. O sujeito moderno se relaciona com o acontecimento do ponto de vista da ação. Tudo é pretexto para sua atividade. Sempre está a se perguntar sobre o que pode fazer. Sempre está desejando fazer algo, produzir algo, regular algo. Independentemente de este desejo estar motivado por uma boa vontade ou uma má vontade, o sujeito moderno está atravessado por um afã de mudar as coisas. E nisso coincidem os engenheiros, os políticos, os industrialistas, os médicos, os arquitetos, os sindicalistas, os jornalistas, os cientistas, os pedagogos e todos aqueles que põem no fazer coisas a sua existência. Nós somos sujeitos ultra-informados, transbordantes de opiniões e superestimulados, mas também sujeitos cheios de vontade e hiperativos. E por isso, porque sempre estamos querendo o que não é, porque estamos sempre em atividade, porque estamos sempre mobilizados, não podemos parar. E, por não podermos parar, nada nos acontece.

A experiência, a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque, requer um gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que correm: requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço.

2. Até aqui, a experiência e a destruição da experiência. Vamos agora ao sujeito da experiência. Esse sujeito que não é o sujeito da informação, da opinião, do trabalho, que não é o sujeito do saber, do julgar, do fazer, do poder, do querer. Se escutamos em espanhol, nessa língua em que a experiência é "o que nos passa", o sujeito da experiência seria algo como um território de passagem, algo como uma superfície sensível que aquilo que acontece afeta de algum modo, produz alguns afetos, inscreve algumas marcas, deixa alguns vestígios, alguns efeitos. Se escutamos em francês, em que a experiência é "ce que nous arrive", o sujeito da experiência é um ponto de chegada, um lugar a que chegam as coisas, como um lugar que recebe o que chega e que, ao receber, lhe dá lugar. E em português, em italiano e em inglês, em que a experiência soa como "aquilo que nos acontece, nos sucede", ou "happen to us", o sujeito da experiência é sobretudo um espaço onde têm lugar os acontecimentos.

Em qualquer caso, seja como território de passagem, seja como lugar de chegada ou como espaço do acontecer, o sujeito da experiência se define não por sua atividade, mas por sua passividade, por sua receptividade, por sua disponibilidade, por sua abertura. Trata-se, porém, de uma passividade anterior à oposição entre ativo e passivo, de uma passividade feita de paixão, de padecimento, de paciência, de atenção, como uma receptividade primeira, como uma disponibilidade fundamental, como uma abertura essencial.

O sujeito da experiência é um sujeito "ex-posto". Do ponto de vista da experiência, o importante não é nem a posição (nossa maneira de pormos), nem a "o-posição" (nossa maneira de opormos), nem a "im-posição" (nossa maneira de impormos), nem a "pro-posição" (nossa maneira de propormos), mas a "ex-posição", nossa maneira de "ex-pormos", com tudo o que isso tem de vulnerabilidade e de risco. Por isso é incapaz de experiência aquele que se põe, ou se opõe, ou se impõe, ou se propõe, mas não se "ex-põe". É incapaz de experiência aquele a quem nada lhe passa, a quem nada lhe acontece, a quem nada lhe sucede, a quem nada o toca, nada lhe chega, nada o afeta, a quem nada o ameaça, a quem nada ocorre.

3. Vamos agora ao que nos ensina a própria palavra experiência. A palavra experiência vem do latim experiri, provar (experimentar). A experiência é em primeiro lugar um encontro ou uma relação com algo que se experimenta, que se prova. O radical é periri, que se encontra também em periculum, perigo. A raiz indo-européia é per, com a qual se relaciona antes de tudo a idéia de travessia, e secundariamente a idéia de prova. Em grego há numerosos derivados dessa raiz que marcam a travessia, o percorrido, a passagem: peirô, atravessar; pera, mais além; peraô, passar através, perainô, ir até o fim; peras, limite. Em nossas línguas há uma bela palavra que tem esse per grego de travessia: a palavra peiratês, pirata. O sujeito da experiência tem algo desse ser fascinante que se expõe atravessando um espaço indeterminado e perigoso, pondo-se nele à prova e buscando nele sua oportunidade, sua ocasião. A palavra experiência tem o ex de exterior, de estrangeiro,3 de exílio, de estranho4 e também o ex de existência. A experiência é a passagem da existência, a passagem de um ser que não tem essência ou razão ou fundamento, mas que simplesmente "ex-iste" de uma forma sempre singular, finita, imanente, contingente. Em alemão, experiência é Erfahrung, que contém o fahren de viajar. E do antigo alto-alemão fara também deriva Gefahr, perigo, e gefährden, pôr em perigo. Tanto nas línguas germânicas como nas latinas, a palavra experiência contém inseparavelmente a dimensão de travessia e perigo.

4. Em Heidegger (1987) encontramos uma definição de experiência em que soam muito bem essa exposição, essa receptividade, essa abertura, assim como essas duas dimensões de travessia e perigo que acabamos de destacar:

[...] fazer uma experiência com algo significa que algo nos acontece, nos alcança; que se apodera de nós, que nos tomba e nos transforma. Quando falamos em "fazer" uma experiência, isso não significa precisamente que nós a façamos acontecer, "fazer" significa aqui: sofrer, padecer, tomar o que nos alcança receptivamente, aceitar, à medida que nos submetemos a algo. Fazer uma experiência quer dizer, portanto, deixar-nos abordar em nós próprios pelo que nos interpela, entrando e submetendo-nos a isso. Podemos ser assim transformados por tais experiências, de um dia para o outro ou no transcurso do tempo. (p. 143)

O sujeito da experiência, se repassarmos pelos verbos que Heidegger usa neste parágrafo, é um sujeito alcançado, tombado, derrubado. Não um sujeito que permanece sempre em pé, ereto, erguido e seguro de si mesmo; não um sujeito que alcança aquilo que se propõe ou que se apodera daquilo que quer; não um sujeito definido por seus sucessos ou por seus poderes, mas um sujeito que perde seus poderes precisamente porque aquilo de que faz experiência dele se apodera. Em contrapartida, o sujeito da experiência é também um sujeito sofredor, padecente, receptivo, aceitante, interpelado, submetido. Seu contrário, o sujeito incapaz de experiência, seria um sujeito firme, forte, impávido, inatingível, erguido, anestesiado, apático, autodeterminado, definido por seu saber, por seu poder e por sua vontade.

Nas duas últimas linhas do parágrafo, "Podemos ser assim transformados por tais experiências, de um dia para o outro ou no transcurso do tempo", pode ler-se outro componente fundamental da experiência: sua capacidade de formação ou de transformação. É experiência aquilo que "nos passa", ou que nos toca, ou que nos acontece, e ao nos passar nos forma e nos transforma. Somente o sujeito da experiência está, portanto, aberto à sua própria transformação.

5. Se a experiência é o que nos acontece, e se o sujeito da experiência é um território de passagem, então a experiência é uma paixão. Não se pode captar a experiência a partir de uma lógica da ação, a partir de uma reflexão do sujeito sobre si mesmo enquanto sujeito agente, a partir de uma teoria das condições de possibilidade da ação, mas a partir de uma lógica da paixão, uma reflexão do sujeito sobre si mesmo enquanto sujeito passional. E a palavra paixão pode referir-se a várias coisas.

Primeiro, a um sofrimento ou um padecimento. No padecer não se é ativo, porém, tampouco se é simplesmente passivo. O sujeito passional não é agente, mas paciente, mas há na paixão um assumir os padecimentos, como um viver, ou experimentar, ou suportar, ou aceitar, ou assumir o padecer que não tem nada que ver com a mera passividade, como se o sujeito passional fizesse algo ao assumir sua paixão. Às vezes, inclusive, algo público, ou político, ou social, como um testemunho público de algo, ou uma prova pública de algo, ou um martírio público em nome de algo, ainda que esse "público" se dê na mais estrita solidão, no mais completo anonimato.

"Paixão" pode referir-se também a certa heteronomia, ou a certa responsabilidade em relação com o outro que, no entanto, não é incompatível com a liberdade ou a autonomia. Ainda que se trate, naturalmente, de outra liberdade e de outra autonomia diferente daquela do sujeito que se determina por si mesmo. A paixão funda sobretudo uma liberdade dependente, determinada, vinculada, obrigada, inclusa, fundada não nela mesma mas numa aceitação primeira de algo que está fora de mim, de algo que não sou eu e que por isso, justamente, é capaz de me apaixonar.

E "paixão" pode referir-se, por fim, a uma experiência do amor, o amor-paixão ocidental, cortesão, cavalheiresco, cristão, pensado como posse e feito de um desejo que permanece desejo e que quer permanecer desejo, pura tensão insatisfeita, pura orientação para um objeto sempre inatingível. Na paixão, o sujeito apaixonado não possui o objeto amado, mas é possuído por ele. Por isso, o sujeito apaixonado não está em si próprio, na posse de si mesmo, no autodomínio, mas está fora de si, dominado pelo outro, cativado pelo alheio, alienado, alucinado.

Na paixão se dá uma tensão entre liberdade e escravidão, no sentido de que o que quer o sujeito é, precisamente, permanecer cativo, viver seu cativeiro, sua dependência daquele por quem está apaixonado. Ocorre também uma tensão entre prazer e dor, entre felicidade e sofrimento, no sentido de que o sujeito apaixonado encontra sua felicidade ou ao menos o cumprimento de seu destino no padecimento que sua paixão lhe proporciona. O que o sujeito ama é precisamente sua própria paixão. Mas ainda: o sujeito apaixonado não é outra coisa e não quer ser outra coisa que não a paixão. Daí, talvez, a tensão que a paixão extrema suporta entre vida e morte. A paixão tem uma relação intrínseca com a morte, ela se desenvolve no horizonte da morte, mas de uma morte que é querida e desejada como verdadeira vida, como a única coisa que vale a pena viver, e às vezes como condição de possibilidade de todo renascimento.

6. Até aqui vimos algumas explorações sobre o que poderia ser a experiência e o sujeito da experiência. Algo que vimos sob o ponto de vista da travessia e do perigo, da abertura e da exposição, da receptividade e da transformação, e da paixão. Vamos agora ao saber da experiência. Definir o sujeito da experiência como sujeito passional não significa pensá-lo como incapaz de conhecimento, de compromisso ou ação. A experiência funda também uma ordem epistemológica e uma ordem ética. O sujeito passional tem também sua própria força, e essa força se expressa produtivamente em forma de saber e em forma de práxis. O que ocorre é que se trata de um saber distinto do saber científico e do saber da informação, e de uma práxis distinta daquela da técnica e do trabalho.

O saber de experiência se dá na relação entre o conhecimento e a vida humana. De fato, a experiência é uma espécie de mediação entre ambos. É importante, porém, ter presente que, do ponto de vista da experiência, nem "conhecimento" nem "vida" significam o que significam habitualmente.

Atualmente, o conhecimento é essencialmente a ciência e a tecnologia, algo essencialmente infinito, que somente pode crescer; algo universal e objetivo, de alguma forma impessoal; algo que está aí, fora de nós, como algo de que podemos nos apropriar e que podemos utilizar; e algo que tem que ver fundamentalmente com o útil no seu sentido mais estreitamente pragmático, num sentido estritamente instrumental. O conhecimento é basicamente mercadoria e, estritamente, dinheiro; tão neutro e intercambiável, tão sujeito à rentabilidade e à circulação acelerada como o dinheiro. Recordem-se as teorias do capital humano ou essas retóricas contemporâneas sobre a sociedade do conhecimento, a sociedade da aprendizagem, ou a sociedade da informação.

Em contrapartida, a "vida" se reduz à sua dimensão biológica, à satisfação das necessidades (geralmente induzidas, sempre incrementadas pela lógica do consumo), à sobrevivência dos indivíduos e da sociedade. Pense-se no que significa para nós "qualidade de vida" ou "nível de vida": nada mais que a posse de uma série de cacarecos para uso e desfrute.

Nestas condições, é claro que a mediação entre o conhecimento e a vida não é outra coisa que a apropriação utilitária, a utilidade que se nos apresenta como "conhecimento" para as necessidades que se nos dão como "vida" e que são completamente indistintas das necessidades do Capital e do Estado.

Para entender o que seja a experiência, é necessário remontar aos tempos anteriores à ciência moderna (com sua específica definição do conhecimento objetivo) e à sociedade capitalista (na qual se constituiu a definição moderna de vida como vida burguesa). Durante séculos, o saber humano havia sido entendido como um páthei máthos, como uma aprendizagem no e pelo padecer, no e por aquilo que nos acontece. Este é o saber da experiência: o que se adquire no modo como alguém vai respondendo ao que vai lhe acontecendo ao longo da vida e no modo como vamos dando sentido ao acontecer do que nos acontece. No saber da experiência não se trata da verdade do que são as coisas, mas do sentido ou do sem-sentido do que nos acontece. E esse saber da experiência tem algumas características essenciais que o opõem, ponto por ponto, ao que entendemos como conhecimento.

Se a experiência é o que nos acontece e se o saber da experiência tem a ver com a elaboração do sentido ou do sem-sentido do que nos acontece, trata-se de um saber finito, ligado à existência de um indivíduo ou de uma comunidade humana particular; ou, de um modo ainda mais explícito, trata-se de um saber que revela ao homem concreto e singular, entendido individual ou coletivamente, o sentido ou o sem-sentido de sua própria existência, de sua própria finitude. Por isso, o saber da experiência é um saber particular, subjetivo, relativo, contingente, pessoal. Se a experiência não é o que acontece, mas o que nos acontece, duas pessoas, ainda que enfrentem o mesmo acontecimento, não fazem a mesma experiência. O acontecimento é comum, mas a experiência é para cada qual sua, singular e de alguma maneira impossível de ser repetida. O saber da experiência é um saber que não pode separar-se do indivíduo concreto em quem encarna. Não está, como o conhecimento científico, fora de nós, mas somente tem sentido no modo como configura uma personalidade, um caráter, uma sensibilidade ou, em definitivo, uma forma humana singular de estar no mundo, que é por sua vez uma ética (um modo de conduzir-se) e uma estética (um estilo). Por isso, também o saber da experiência não pode beneficiar-se de qualquer alforria, quer dizer, ninguém pode aprender da experiência de outro, a menos que essa experiência seja de algum modo revivida e tornada própria.

A primeira nota sobre o saber da experiência sublinha, então, sua qualidade existencial, isto é, sua relação com a existência, com a vida singular e concreta de um existente singular e concreto. A experiência e o saber que dela deriva são o que nos permite apropriar-nos de nossa própria vida. Ter uma vida própria, pessoal, como dizia Rainer Maria Rilke, em Los Cuadernos de Malthe, é algo cada vez mais raro, quase tão raro quanto uma morte própria. Se chamamos existência a esta vida própria, contingente e finita, a essa vida que não está determinada por nenhuma essência nem por nenhum destino, a essa vida que não tem nenhuma razão nem nenhum fundamento fora dela mesma, a essa vida cujo sentido se vai construindo e destruindo no viver mesmo, podemos pensar que tudo o que faz impossível a experiência faz também impossível a existência.

7. A ciência moderna, a que se inicia em Bacon e alcança sua formulação mais elaborada em Descartes, desconfia da experiência. E trata de convertê-la em um elemento do método, isto é, do caminho seguro da ciência. A experiência já não é o meio desse saber que forma e transforma a vida dos homens em sua singularidade, mas o método da ciência objetiva, da ciência que se dá como tarefa a apropriação e o domínio do mundo. Aparece assim a idéia de uma ciência experimental. Mas aí a experiência converteu-se em experimento, isto é, em uma etapa no caminho seguro e previsível da ciência. A experiência já não é o que nos acontece e o modo como lhe atribuímos ou não um sentido, mas o modo como o mundo nos mostra sua cara legível, a série de regularidades a partir das quais podemos conhecer a verdade do que são as coisas e dominá-las. A partir daí o conhecimento já não é um páthei máthos, uma aprendizagem na prova e pela prova, com toda a incerteza que isso implica, mas um mathema, uma acumulação progressiva de verdades objetivas que, no entanto, permanecerão externas ao homem. Uma vez vencido e abandonado o saber da experiência e uma vez separado o conhecimento da existência humana, temos uma situação paradoxal. Uma enorme inflação de conhecimentos objetivos, uma enorme abundância de artefatos técnicos e uma enorme pobreza dessas formas de conhecimento que atuavam na vida humana, nela inserindo-se e transformando-a. A vida humana se fez pobre e necessitada, e o conhecimento moderno já não é o saber ativo que alimentava, iluminava e guiava a existência dos homens, mas algo que flutua no ar, estéril e desligado dessa vida em que já não pode encarnar-se.

A segunda nota sobre o saber da experiência pretende evitar a confusão de experiência com experimento ou, se se quiser, limpar a palavra experiência de suas contaminações empíricas e experimentais, de suas conotações metodológicas e metodologizantes. Se o experimento é genérico, a experiência é singular. Se a lógica do experimento produz acordo, consenso ou homogeneidade entre os sujeitos, a lógica da experiência produz diferença, heterogeneidade e pluralidade. Por isso, no compartir a experiência, trata-se mais de uma heterologia do que de uma homologia, ou melhor, trata-se mais de uma dialogia que funciona heterologicamente do que uma dialogia que funciona homologicamente. Se o experimento é repetível, a experiência é irrepetível, sempre há algo como a primeira vez. Se o experimento é preditível e previsível, a experiência tem sempre uma dimensão de incerteza que não pode ser reduzida. Além disso, posto que não se pode antecipar o resultado, a experiência não é o caminho até um objetivo previsto, até uma meta que se conhece de antemão, mas é uma abertura para o desconhecido, para o que não se pode antecipar nem "pré-ver" nem "pré-dizer".

JORGE LARROSA BONDÍA 


 O amor é isso: duas solidões que se protegem, se tocam e se acolhem.

 Rainer Maria Rilke, no livro "Cartas a um jovem poeta"

O Narrador, Walter Benjamim

8
Nada facilita mais a memorização das narrativas que aquela sóbria concisão que as salva da análise psicológica. Quanto maior a naturalidade com que o narrador renuncia às sutilezas psicológicas, mais facilmente a história se gravará na memória do ouvinte, mais completamente ela se assimilará à sua própria experiência e mais irresistivelmente ele cederá à inclinação de recontá-la um dia. Esse processo de assimilação se dá em camadas muito profundas e exige um estado de distensão que se torna cada vez mais raro. Se o sono é o ponto mais alto da distensão física, o tédio é o ponto
mais alto da distensão psíquica. O tédio é o pássaro de sonho que choca os ovos da experiência. O menor sussurro nas folhagens o assusta. Seus ninhos - as atividades intimamente associadas ao tédio - já se extinguiram na cidade e estão em vias de extinção no campo. Com isso, desaparece o dom de ouvir, e desaparece a comunidade dos ouvintes. Contar histórias sempre foi a arte de contá-las de novo, e ela se perde quando as histórias não são mais conservadas. Ela se perde porque ninguém mais fia ou tece enquanto ouve a história. Quanto mais o ouvinte se esquece de si mesmo, mais profundamente se grava nele o que é ouvido. Quando o ritmo do trabalho se apodera dele, ele escuta as histórias de tal maneira que adquire espontaneamente o dom de narrá-las. Assim se teceu a rede em que está guardado o dom narrativo. E assim essa rede se desfaz hoje por todos os lados, depois de ter sido tecida, há milênios, em torno das mais antigas formas de trabalho manual.

9
A narrativa, que durante tanto tempo floresceu num meio de artesão - no campo, no mar e na cidade -, é ela própria, num certo sentido, uma forma artesanal de comunicação. Ela não está interessada em transmitir o "puro em si" da coisa narrada como uma informação ou um relatório. Ela mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida retirá-la dele. Assim se imprime na narrativa a marca do narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso. Os narradores gostam de começar sua história com uma descrição das circunstâncias em que foram informados dos fatos que vão contar a seguir, a menos que prefiram atribuir essa história a uma experiência autobiográfica. Leskov começa A fraude com uma descrição de uma viagem de trem, na qual ouviu de um companheiro de viagem os episódios que vai narrar; ou pensa no enterro de Dostoievski, no qual travou conhecimento com a heroína de A propósito da Sonata de Kreuzer; ou evoca uma reunião num círculo de leitura, no qual soube dos fatos relatados em Homens interessantes. Assim, seus vestígios estão presentes de muitas maneiras nas coisas narradas, seja na qualidade de quem as viveu, seja na qualidade de quem as relata.
O próprio Leskov considerava essa arte artesanal - a narrativa - como um ofício manual. "A literatura", diz ele em uma carta, "não é para mim uma arte, mas um trabalho manual."
Não admira que ele tenha se sentido ligado ao trabalho manual e estranho à técnica industrial. Tolstoi, que tinha afinidades com essa atitude, alude de passagem a esse elemento central do talento narrativo de Leskov, quando diz que ele foi o primeiro "a apontar a insuficiência do progresso econômico... É estranho que Dostoievski seja tão lido... Em compensação, não compreendo por que não se lê Leskov.
Ele é um escritor fiel à verdade". No malicioso e petulante A pulga de aço, intermediário entre a lenda e a farsa, Leskov exalta, nos ourives de Tula, o trabalho artesanal. Sua obra-prima, a pulga de aço, chega aos olhos de Pedro, o Grande e o convence de que os russos não precisam envergonhar-se dos ingleses.
Talvez ninguém tenha descrito melhor que Paul Valéry a imagem espiritual desse mundo de artífices, do qual provém o narrador. Falando das coisas perfeitas que se encontram na natureza, pérolas imaculadas, vinhos encorpados e maduros, criaturas realmente completas, ele as descreve como "o produto precioso de uma longa cadeia de causas semelhantes entre si". O acúmulo dessas causas só teria limites temporais quando fosse atingida a perfeição. "Antigamente o homem imitava essa paciência", prossegue Valéry. "Iluminuras, marfins profundamente entalhados; pedras duras, perfeitamente polidas e claramente gravadas; lacas e pinturas obtidas pela superposição de uma quantidade de camadas finas e translúcidas... - todas essas produções de uma indústria tenaz e virtuosística cessaram, e já passou o tempo em que o tempo não contava. O homem de hoje não cultiva o que não pode ser abreviado." Com efeito, o homem conseguiu abreviar até a narrativa.
Assistimos em nossos dias ao nascimento da short story, que se emancipou da tradição oral e não mais permite essa lenta superposição de camadas finas e translúcidas, que representa a melhor imagem do processo pelo qual a narrativa perfeita vem à luz do dia, como coroamento das várias camadas constituídas pelas narrações suces- sivas.

Walter Benjamim, O Narrador