Vicente Romero |
Roubar-me os mares, ares, voo, tolhendo
meus pés na terra atroz – foi o bastante?
Mas, malgrado o teu cálculo estupendo,
não me arrancaste os lábios murmurantes.
Vorôniej
Laszlo Gulyas |
Há prosa que dança, que canta, que se declama a si mesma. Há ritmos verbais que são bailados, em que a ideia se desnuda sinuosamente, numa sensualidade translúcida e perfeita. E há também na prosa sutilezas convulsas em que um grande ator, o Verbo, transmuda ritmicamente em sua substância corpórea o mistério impalpável do universo.
Bernardo Soares (Fernando Pessoa)
Livro do desassossego
Quando encontrares um homem
Que transforme
Cada partícula tua
Em poesia,
Que faça de cada um dos teus cabelos
Um poema,
Quando encontrares um homem
Capaz,
Como eu,
De te lavar e adornar
Com poesia,
Hei-de implorar-te
Que o sigas sem hesitação
Pois o que importa
Não é que sejas minha ou dele
Mas sim da poesia.
Nizar Qabbani
Alena Nikonenko |
Era uma vez duas vezes. E como não há duas sem três,
algum castigo tens guardado para mim. Não sei se me
roubarás os livros, se me esconderás os melros, se me
negarás os beijos. Alguma coisa destas tu farás.
Podes roubar-me os livros.
Hei-de recuperá-los, verso a verso, como a aranha que
reconstrói a teia, como o pensamento que reconstrói a
ideia, como o vento que reconstrói a duna.
Podes esconder-me os melros.
Saberei cantar. Darei asas à minha esperança para a ver
poisar em todos os verdes, brilhar em todos os muros,
debicar todos os desejos.
Não me negues os beijos.
Morrerei de fome. E de sede. E de saudade.
Morrerei de te ver e não te ter.
Morrerei de não morder a tua boca.
Morrerei de não viver.
Morrerei.
Joaquim Pessoa, in Ano Comum
Despe-te em sonho ante o sonhares-me vendo-te,
Dá-te vária, dá sonhos de ti própria aos molhos
Ao teu pensar-me querendo-te…
Desfolha sonhos teus de dando-te variamente,
Ó perversa, sobre o êxtase da atenção
Que tu em sonhos dás-me… E o teu sonho de mim é quente
No teu olhar absorto ou em abstracção…
Possue-me-te, seja eu em ti meu spasmo e um rocio
De voluptuosos eus na tua coroa de rainha…
Meu amor será o sair de mim do teu ócio
E eu nunca serei teu, ó apenas-minha?
Fernando Pessoa
in Poesia 1902-1917
Esta é a morada ardente e sossegada, o obscuro jardim do corpo e das palavras lisas. Uma alegria de formas, de sons, de cores. A navegação luminosas pela árvore do corpo, pela sua água, pelo seu horizonte de lábios. O corpo abriu-se e multiplica-se num só corpo e estremece numa ampla respiração como folhagem solar.
António Ramos Rosa
Eduardo Galeano, no livro “Dias e noites de amor e de guerra”
Estados? Que é isso? Vamos! Abri os ouvidos, porque vos vou falar da morte dos povos.
Estado chama-se o mais frio dos monstros. Mente também friamente, e eis que mentira rasteira sai da sua boca: “Eu, o Estado, sou o Povo”.
É uma mentira! Os que criaram os povos e suspenderam sobre eles uma fé e um amor, esses eram criadores: serviam a vida.
Os que armam laços ao maior número e chamam a isso um Estado são destruidores; suspendem sobre si uma espada e mil apetites.
Onde há ainda povo não se compreende o Estado que é detestado como uma transgressão aos costumes e às leis.
Eu vos dou este sinal: cada povo fala uma língua do bem e do mal, que o vizinho não compreende. Inventou a sua língua para os seus costumes e as suas leis.
Mas o Estado mente em todas as línguas do bem e do mal, e em tudo quanto diz mente, tudo quanto tem roubou-o.
Tudo nele é falso; morde com dentes roubados. Até as suas entranhas são falsas.
Uma confusão das línguas do bem e do mal: é este o sinal do Estado. Na Verdade, o que este sinal indica é a vontade da morte; está chamando os pregadores da morte.
Vêm ao mundo homens demais, para os supérfluos inventou-se o Estado!
Vede como ele atrai os supérfluos! Como os engole, como os mastiga e remastiga!
“Na terra nada há maior do que eu; eu sou o dedo ordenador de Deus” — assim grita o monstro. E não são só os que têm orelhas compridas e vista curta que caem de joelhos!
Ai! também em vossas almas grandes murmuram as suas sombrias mentiras! Aí eles advinham os corações ricos que gostam de se prodigalizar!
Sim; adivinha-vos a vós também, vencedores do antigo Deus. Saístes rendido do combate, e agora a vossa fadiga ainda serve ao novo ídolo!
Ele queria rodear-se de heróis e homens respeitáveis. A este frio monstro agrada-lhe acalentar-se ao sol da pura consciência.
A vós outros quer ele dar tudo, se adorardes. Assim compra o brilho da vossa virtude e o altivo olhar dos vossos olhos.
Convosco quer atrair os supérfluos! Sim; inventou com isso uma artimanha infernal, um corcel de morte, ajaezado com adorno brilhante das honras divinas.
Inventou para o grande número uma morte que se preza de ser vida, uma servidão à medida do desejo de todos os pregadores da morte.
O Estado é onde todos bebem veneno, os bons e os maus; onde todos se perdem a si mesmos, os bons e os maus; onde o lento suicídio de todos se chama “a vida”.
Vede, pois, esses supérfluos! Roubam as obras dos inventores e os tesouros dos sábios; chamam a civilização ao seu latrocínio, e tudo para eles são doenças e contratempo.
Vede, pois, esses supérfluos. Estão sempre doentes; expelem a bílis, e a isso chamam periódicos. Devoram-se e nem sequer se podem dirigir.
Vede, pois, esses adquirem riquezas, e fazem-se mais pobres. Querem o poder, esses ineptos, e primeiro de tudo o palanquim do poder: muito dinheiro!
Vede trepar esses ágeis macacos! Trepam uns sobre os outros e arrastam-se para o lodo e para o abismo.
Todos querem abeirar-se do trono; é a sua loucura — como se a felicidade estivesse no trono! — Frequentemente também o trono está no lodo.
Para mim todos eles são doidos e macacos trepadores e buliçosos. O seu ídolo, esse frio monstro, cheira mal; todos eles, esses idólatras, cheiram mal.
Meus irmãos, quereis por agora afogar-vos na exalação de suas bocas e de seus apetites? Antes disso, arrancai as janelas e saltai para o ar livre!
Evitai o mau cheiro! Afastai-vos da idolatria dos supérfluos.
Evitai o mau cheiro! Afastai-vos do fumo desses sacrifícios humanos!
Ainda agora o mundo é livre para as almas grandes. Para os que vivem solitários ou aos pares ainda há muitos sítios vagos onde se aspira a fragrância dos mares silenciosos.
Ainda têm franca uma vida livre as almas grandes. Na verdade, quem pouco possui tanto menos é possuído. Bendita seja a nobreza!
Além onde acaba o Estado começa o homem que não é supérfluo; começa o canto dos que são necessários, a melodia única e insubstituível.
Além, onde acaba o Estado... olhai, meus irmãos! Não vedes o arco-íris e a ponte do Super-homem?”
Friedrich Nietzsche
Assim falava Zaratustra
Arthur Schopenhauer, Aforismos para a sabedoria de vida