quarta-feira, 24 de agosto de 2022

Vicente Romero


Roubar-me os mares, ares, voo, tolhendo

meus pés na terra atroz – foi o bastante?

Mas, malgrado o teu cálculo estupendo,


não me arrancaste os lábios murmurantes.


Vorôniej




 Os livros são pequenos pedaços do incomensurável.

Stefan Zweig

Laszlo Gulyas 


Há prosa que dança, que canta, que se declama a si mesma. Há ritmos verbais que são bailados, em que a ideia se desnuda sinuosamente, numa sensualidade translúcida e perfeita. E há também na prosa sutilezas convulsas em que um grande ator, o Verbo, transmuda ritmicamente em sua substância corpórea o mistério impalpável do universo.

Bernardo Soares (Fernando Pessoa)

Livro do desassossego

 

Pasquale Picazio


Oceano secreto

Quando te amo 

obedeço às estrelas. 

Um número preside 

nosso encontro na treva. 

Vamos e voltamos 

como os dias e as noites 

as estações e as marés 

a água e a terra. 

Amor, respiração 

do nosso oceano secreto. 


Lêdo Ivo, em "Crepúsculo Civil", 1990.



Quando encontrares um homem

Que transforme

Cada partícula tua

Em poesia,

Que faça de cada um dos teus cabelos

Um poema,

Quando encontrares um homem

Capaz,

Como eu,

De te lavar e adornar

Com poesia,

Hei-de implorar-te

Que o sigas sem hesitação

Pois o que importa

Não é que sejas minha ou dele

Mas sim da poesia.


Nizar Qabbani

Alena Nikonenko

Era uma vez duas vezes. E como não há duas sem três,

algum castigo tens guardado para mim. Não sei se me

roubarás os livros, se me esconderás os melros, se me

negarás os beijos. Alguma coisa destas tu farás.

Podes roubar-me os livros.

Hei-de recuperá-los, verso a verso, como a aranha que

reconstrói a teia, como o pensamento que reconstrói a

ideia, como o vento que reconstrói a duna.

Podes esconder-me os melros.

Saberei cantar. Darei asas à minha esperança para a ver

poisar em todos os verdes, brilhar em todos os muros,

debicar todos os desejos.

Não me negues os beijos.

Morrerei de fome. E de sede. E de saudade.


Morrerei de te ver e não te ter.

Morrerei de não morder a tua boca.

Morrerei de não viver.

Morrerei.


 Joaquim Pessoa, in Ano Comum

 



Morde-me com o querer-me que tens nos olhos

Despe-te em sonho ante o sonhares-me vendo-te,

Dá-te vária, dá sonhos de ti própria aos molhos

Ao teu pensar-me querendo-te…


Desfolha sonhos teus de dando-te variamente,

Ó perversa, sobre o êxtase da atenção

Que tu em sonhos dás-me… E o teu sonho de mim é quente

No teu olhar absorto ou em abstracção…


Possue-me-te, seja eu em ti meu spasmo e um rocio

De voluptuosos eus na tua coroa de rainha… 

Meu amor será o sair de mim do teu ócio

E eu nunca serei teu, ó apenas-minha?


Fernando Pessoa

in Poesia 1902-1917

 




Ninho de palavras escuras, rumor de folhas e de mãos pequenas, insectos de delicada chama, diminutos fulgores silenciosos. Entre confusas claridades verdes, na plena umidade, o fogo abre a flor do corpo, intacta e branca. Os astros acendem-se como animais que sobem a direcção do vento.

Esta é a morada ardente e sossegada, o obscuro jardim do corpo e das palavras lisas. Uma alegria de formas, de sons, de cores. A navegação luminosas pela árvore do corpo, pela sua água, pelo seu horizonte de lábios. O corpo abriu-se e multiplica-se num só corpo e estremece numa ampla respiração como folhagem solar.


António Ramos Rosa


 "Os corpos, abraçados, vão mudando de posição enquanto dormimos, virando para cá, para lá, sua cabeça em meu peito, minha perna sobre seu ventre, e ao girarem os corpos vai girando a cama e giram o quarto e o mundo. ‘Não, não’, você me explica, achando que está acordada: ‘Não estamos mais aí. Mudamos para outro país enquanto dormíamos’."

 Eduardo Galeano, no livro “Dias e noites de amor e de guerra”

terça-feira, 23 de agosto de 2022


 "The only important thing in a book is the meaning that it has for you.” 

W. Somerset Maugham

sexta-feira, 5 de agosto de 2022

Do novo ídolo


“Ainda em algumas partes há povos e rebanhos; mas entre nós, irmãos, entre nós há Estados.

Estados? Que é isso? Vamos! Abri os ouvidos, porque vos vou falar da morte dos povos.

Estado chama-se o mais frio dos monstros. Mente também friamente, e eis que mentira rasteira sai da sua boca: “Eu, o Estado, sou o Povo”.

É uma mentira! Os que criaram os povos e suspenderam sobre eles uma fé e um amor, esses eram criadores: serviam a vida.

Os que armam laços ao maior número e chamam a isso um Estado são destruidores; suspendem sobre si uma espada e mil apetites.

Onde há ainda povo não se compreende o Estado que é detestado como uma transgressão aos costumes e às leis.

Eu vos dou este sinal: cada povo fala uma língua do bem e do mal, que o vizinho não compreende. Inventou a sua língua para os seus costumes e as suas leis.

Mas o Estado mente em todas as línguas do bem e do mal, e em tudo quanto diz mente, tudo quanto tem roubou-o.

Tudo nele é falso; morde com dentes roubados. Até as suas entranhas são falsas.

Uma confusão das línguas do bem e do mal: é este o sinal do Estado. Na Verdade, o que este sinal indica é a vontade da morte; está chamando os pregadores da morte.

Vêm ao mundo homens demais, para os supérfluos inventou-se o Estado!

Vede como ele atrai os supérfluos! Como os engole, como os mastiga e remastiga!

“Na terra nada há maior do que eu; eu sou o dedo ordenador de Deus” — assim grita o monstro. E não são só os que têm orelhas compridas e vista curta que caem de joelhos!

Ai! também em vossas almas grandes murmuram as suas sombrias mentiras! Aí eles advinham os corações ricos que gostam de se prodigalizar!

Sim; adivinha-vos a vós também, vencedores do antigo Deus. Saístes rendido do combate, e agora a vossa fadiga ainda serve ao novo ídolo!

Ele queria rodear-se de heróis e homens respeitáveis. A este frio monstro agrada-lhe acalentar-se ao sol da pura consciência.

A vós outros quer ele dar tudo, se adorardes. Assim compra o brilho da vossa virtude e o altivo olhar dos vossos olhos.

Convosco quer atrair os supérfluos! Sim; inventou com isso uma artimanha infernal, um corcel de morte, ajaezado com adorno brilhante das honras divinas.

Inventou para o grande número uma morte que se preza de ser vida, uma servidão à medida do desejo de todos os pregadores da morte.

O Estado é onde todos bebem veneno, os bons e os maus; onde todos se perdem a si mesmos, os bons e os maus; onde o lento suicídio de todos se chama “a vida”.

Vede, pois, esses supérfluos! Roubam as obras dos inventores e os tesouros dos sábios; chamam a civilização ao seu latrocínio, e tudo para eles são doenças e contratempo.

Vede, pois, esses supérfluos. Estão sempre doentes; expelem a bílis, e a isso chamam periódicos. Devoram-se e nem sequer se podem dirigir.

Vede, pois, esses adquirem riquezas, e fazem-se mais pobres. Querem o poder, esses ineptos, e primeiro de tudo o palanquim do poder: muito dinheiro!

Vede trepar esses ágeis macacos! Trepam uns sobre os outros e arrastam-se para o lodo e para o abismo.

Todos querem abeirar-se do trono; é a sua loucura — como se a felicidade estivesse no trono! — Frequentemente também o trono está no lodo.

Para mim todos eles são doidos e macacos trepadores e buliçosos. O seu ídolo, esse frio monstro, cheira mal; todos eles, esses idólatras, cheiram mal.

Meus irmãos, quereis por agora afogar-vos na exalação de suas bocas e de seus apetites? Antes disso, arrancai as janelas e saltai para o ar livre!

Evitai o mau cheiro! Afastai-vos da idolatria dos supérfluos.

Evitai o mau cheiro! Afastai-vos do fumo desses sacrifícios humanos!

Ainda agora o mundo é livre para as almas grandes. Para os que vivem solitários ou aos pares ainda há muitos sítios vagos onde se aspira a fragrância dos mares silenciosos.

Ainda têm franca uma vida livre as almas grandes. Na verdade, quem pouco possui tanto menos é possuído. Bendita seja a nobreza!

Além onde acaba o Estado começa o homem que não é supérfluo; começa o canto dos que são necessários, a melodia única e insubstituível.

Além, onde acaba o Estado... olhai, meus irmãos! Não vedes o arco-íris e a ponte do Super-homem?”


Friedrich Nietzsche

Assim falava Zaratustra


 Costuma-se chamar juventude a época feliz e velhice a época triste da vida. Isso estaria correto se as paixões nos tornassem felizes. Porém a juventude é governada e distraída por elas, proporcionando-lhe poucas alegrias e muitos sofrimentos. Com a idade as paixões esfriam e deixam o indivíduo em paz, que em seguida se reveste de um tom contemplativo; porque o conhecimento se torna livre e assume o controle. Visto que o conhecimento está por si mesmo isento de dor, somos mais felizes quanto mais conscientes estivermos de sua predominância em nossa natureza. Na idade madura sabe-se precaver melhor contra a desgraça; na juventude, suportá-la. Não precisamos mais que refletir que todo prazer é negativo e toda dor é positiva para compreender que as paixões não poderiam nos tornar felizes, e que a idade avançada não deve ser desdenhada porque alguns prazeres lhe estejam proibidos. Porque todo prazer não é mais que a satisfação de uma necessidade ou carência. Não se é desgraçado por perder um prazer quando a necessidade deixa de existir, assim como não se é desgraçado por não poder comer depois de já haver comido, ou ter de permanecer acordado depois de uma boa noite de sono. Platão, em sua introdução à República, tem razão ao julgar a velhice feliz por estar despojada do instinto sexual que até então nos molestava e atormentava continuamente. Quase se poderia afirmar que as fantasias diversas e infindáveis que o instinto sexual engendra, assim como as emoções que daí resultam, mantêm o homem numa benigna e constante demência enquanto está sob a influência desse instinto ou desse diabo de que se vê possuído continuamente; de modo que não chega a ser completamente racional senão após sua extinção. Não obstante, é certo que, em geral e à parte de todas as circunstâncias e situações individuais, uma certa melancolia e tristeza são próprias da juventude, enquanto que uma certa serenidade é própria da velhice. A razão disso é simplesmente que o jovem ainda está sujeito ao domínio e ao trabalho forçado imposto por esse demônio que dificilmente lhe concede uma hora de liberdade e que também é o autor, direto ou indireto, de quase todas as calamidades que afligem ou ameaçam o homem. Mas a idade madura tem a serenidade daquele que rompeu com as correntes que levou durante muito tempo e que agora desfruta de poder mover-se livremente. Por outro lado, se poderia dizer que, uma vez extinto o impulso sexual, se há consumido o verdadeiro cerne da vida, e não resta mais que a casca. Na verdade, a vida parece com uma comédia cuja representação, começada por homens vivos, é terminada por autômatos revestidos pelos mesmos trajes.


Arthur Schopenhauer, Aforismos para a sabedoria de vida 

 


O amar admite não apenas uma, mas três oposições. Além da oposição amor-ódio, existe a de amar-ser amado, e amor e ódio, tomados conjuntamente, opõem-se ao estado de indiferença ou insensibilidade. Dessas três antíteses, a segunda, amar-ser amado, corresponde inteiramente à conversão de atividade em passividade, e pode ser remetida a uma situação fundamental, como o instinto de olhar. Esta situação se chama: amar a si mesmo, o que para nós é a característica do narcisismo. Conforme o objeto ou o sujeito seja trocado por um exterior, ocorre a tendência ativa a uma meta, amar, ou a passiva, ser amado, das quais a última permanece mais próxima do narcisismo. 

Sigmund Freud