domingo, 9 de janeiro de 2022

Ricardo Sanz


O dia deu em chuvoso. 

A manhã, contudo, esteve bastante azul. 

O dia deu em chuvoso. 

Desde manhã eu estava um pouco triste.

Antecipação! Tristeza? Coisa nenhuma? 

Não sei: já ao acordar estava triste. 

O dia deu em chuvoso.


Bem sei, a penumbra da chuva é elegante. 

Bem sei: o sol oprime, por ser tão ordinário, um elegante. 

Bem sei: ser susceptível às mudanças de luz não é elegante. 

Mas quem disse ao sol ou aos outros que eu quero ser elegante? 

Deem-me o céu azul e o sol visível. 

Névoa, chuvas, escuros — isso tenho eu em mim.


Hoje quero só sossego. 

Até amaria o lar, desde que o não tivesse. 

Chego a ter sono de vontade de ter sossego. 

Não exageremos! 

Tenho efetivamente sono, sem explicação. 

O dia deu em chuvoso.


Carinhos? Afetos? São memórias... 

É preciso ser-se criança para os ter... 

Minha madrugada perdida, meu céu azul verdadeiro! 

O dia deu em chuvoso.

Boca bonita da filha do caseiro, 

Polpa de fruta de um coração por comer... 

Quando foi isso? Não sei... 

No azul da manhã...


O dia deu em chuvoso.


Álvaro de Campos. Fernando Pessoa