Voltando (porque tua volta sinto-a num presságio) acenderei luzes
na minha porta e falaremos só o necessário.
Terás pão e vinho sobre a mesa.
Virás acabrunhado (quem sabe) como o filho que retorna.
Nesse dia, a lamparina de teu quarto deixarás que fique acesa a
noite inteira.
O amor sobrevive.
E seremos talvez amor e morte ao mesmo tempo.
I
Stela, me perguntaram
se permaneces no tempo.
Se teu rosto de coral
e teus cabelos de pedra
ficarão indefinidos
no espaço, pedindo sol.
Ainda ontem te vi.
Olhar quase estagnado.
Descias azuis escadas
com aquele teu xale verde.
Aquele xale de Stela
parecia feito d’água:
verde aguado, verde aguado.
Debaixo dos teus dois braços
trazias rosas molhadas.
Aquelas rosas de Stela
e Stela me perguntando
se a morte é cousa que passa.
Stela, que desconsolo.
Não sabes onde termina
a aurora de tua presença.
No tempo, se é que existes,
só ficarás peregrina.
Como pesa: Stela e eu.
II
Me mataria em março
se te assemelhasses
às cousas perecíveis.
Mas não. Foste quase exato:
doçura, mansidão, amor, amigo.
Me mataria em março
se não fosse a saudade de ti
e a incerteza de descanso.
Se só eu sobrevivesse quase nula,
inerte como o silêncio:
o verdadeiro silêncio de catedral vazia,
sem santo, sem altar. Só eu mesma.
E se não fosse verão,
e se não fosse o medo da sombra,
e o medo da campa na escuridão,
o medo de que por sobre mim
surgissem plantas e enterrassem
suas raízes nos meus dedos.
Me mataria em março
se o medo fosse amor.
Se março, junho.
III
Gostaria de encontrar-te.
Falar das cousas
que já estão perdidas.
Tuas mãos trementes
se desmanchariam
na sonoridade
dos meus ditos.
Faria de teus olhos
luz,
de tua boca
um eco.
Nos teus ouvidos
eu falaria de amigos.
Quem sabe se amarias escutar-me.
IV
Brotaram flores
nos meus pés.
E o quotidiano
na minha vida
complicou-se.
Diferença triste
aborrecendo o andar
de minhas horas.
Rosa Maria
tem flores na cabeça.
Maria Rosa as leva no vestido.
E esse nascer de flores
nos meus pés,
atrai olhares de espanto.
Ainda ontem
me vieram dizer
se eu as vendia.
Meus pés iriam
com flores andar
sobre o teu silêncio.
Tua vida
no meu caminho,
na caminhada grotesca
daqueles meus pés floridos.
De tanto serem zombadas
morreram adolescentes.
Pobres pés, pobres flores.
murcharam ontem,
hoje secaram.
E o quotidiano
na minha vida
complicou-se.
V
Amargura no dia
amargura nas horas,
amargura no céu
depois da chuva,
amargura nas tuas mãos
amargura em todos os teus gestos.
Só não existe amargura
onde não existe o ser.
Estão sendo atropelados
em seus caminhos,
os que nada mais têm a encontrar.
Os que sentiram amargura de fel
escorrendo da boca,
os que tiveram os lábios
macerados de amor.
Estão terrivelmente sozinhos
os doidos, os tristes, os poetas.
Só não morro de amargura
porque nem mais morrer eu sei.
VI
Água esparramada em cristal,
buraco de concha,
segredarei em teus ouvidos
os meus tormentos.
Apareceu qualquer cousa
em minha vida toda cinza,
embaçada, como água
esparramada em cristal.
Ritmo colorido
dos meus dias de espera,
duas, três, quatro horas,
e os teus ouvidos
eram buracos de concha,
retorcidos
no desespero de não querer ouvir.
Me fizeram de pedra
quando eu queria
ser feita de amor.
VII
Maria anda como eu:
Impossibilitada de fazer
tudo o que quer.
Tem mãos amarradas,
ar de doente, olhar de demente,
cansada.
Maria vai acabar como eu:
covarde nas decisões,
amante das cousas indefinidas
e querendo compreender suicidas.
Maria vai acabar assim sem rumo,
andando por aí,
fazendo versos
e tendo acessos
nostálgicos.
Maria vai acabar
bem tristemente.
De qualquer jeito,
lendo jornais,
tendo marido
indefinido.
(Não sei por que Maria
quer compreender
muito, demais,
a vida do suicida.
E Maria vai acabar
se fartando da vida.)
A vida, coitada,
é camarada, gosta de Maria,
quer fazer Maria viver mais,
porque Maria é desgraçada.
Quer deixá-la para o fim,
assim à mostra,
e eu francamente não entendo
por que Maria não gosta
da vida
VIII
Canção do mundo
perdida na tua boca.
Canção das mãos
que ficaram na minha cabeça.
Eram tuas e pareciam asas.
Pareciam asas
que há muito quisessem repousar.
Canção indefinida
feita na solidão
de todos os solitários.
Os homens de bem
me perguntaram
o que foi feito da vida.
Ela está parada.
Angustiadamente parada.
O que foi feito
da ternura dos que amaram…
Ficou na minha cabeça,
nas tuas mãos que pareciam asas.
Que pareciam asas.
IX
Colapso hibernal
das cousas ausentes.
Desfila diante de mim
o teu olhar parado.
Na minha frente
há figuras de mortos
tecendo roupas brancas,
e na tua vida
há qualquer cousa de triste
que não foi contado.
Coragem de viver os dias
sem falar de loucos
quando há qualquer louco
no infinito,
pedindo uma lembrança
e contei os seus dias de vida
nos meus sonhos.
Existe um deus qualquer
nas minhas entranhas.
Pobre loucura
atrofiando o amor da amada.
Teu pobre olhar
atrofiou minha vida inteira.
X
Olhamos eternamente
para as estrelas
como mendigos
que eternamente
olham para as mãos.
E imaginamos
cousas absurdas
de realização.
Cousas que não existem
e cujo valor
é o de consistirem
parte da ilusão.
E olhamos eternamente
para as estrelas
porque parecem diferentes.
E quando agrupadas
eu as revejo individualizadas.
Estrelas… só.
Quem sabe se naquela imensidão
elas sofrem o mal dissolvente,
passivo,
mas dissolvente ainda: solidão.
Brilham para o mundo.
No entanto estão sozinhas
na lúgubre fantasia de pontas.
Nunca, meditem,
nunca as encontraremos
pois elas olham
igualmente para nós
e nos desejam
porque estão sós.
XI
Quando terra e flores
eu sentir sobre o meu corpo,
gostaria de ter ao meu lado tuas mãos.
E depois, guardar meus olhos dentro delas.
XII
Dia doze… e eu não suportarei
o estado normal das cousas.
O ano que vem, não vou desejar
felicidades a ninguém.
Nem bom natal, nem boas entradas.
Meus amigos sabem de tudo o que eu sei.
E continuam a viver sem interrupção,
apressadamente como no ato do amor.
São doidos e não percebem que amanhã
Cristina não virá.
Que amanhã Cristina vai morrer
porque ama a vida.
Amanhã serei corajosamente Cristina.
Eu, amando todos os que sofrem.
Eu… essência.
Mas os meus amigos, coitados,
não percebem.
Fazem filhos nascer, fazem tragédia.
Não sabem que o amor não é amor
e a natureza é um mito.
Não sabem de nada os meus amigos.
E não vou explicar
porque podem ficar sentidos.
São puros, vão morrer como anjos.
Vão morrer sem nada saber
daqueles dias perdidos.
Vão morrer sem saber que estão morrendo.
XIII
Me falaram de um deus.
Eu chorava na quietude
dos dias sós.
A irmã morta sorria
o riso pálido dos santos.
Me falaram de um deus.
Deus em branco.
Deus que faz de flores, pedras.
E de pedras, compreensão.
Deus amargurado.
Chora e geme
na quietude dos dias sós.
Consolo.
XIV
Fui monja
vestida de negro
em labirinto azul.
Antes do Ser
havia um homem
consciente
destruindo o lirismo
descuidado
das minhas madrugadas.
Estava presente
nas conversas dos bares
— solitárias histórias.
Estava presente
na fusão dos homens medíocres
e dos homens sem cor.
Em azul e negro
eu vi o esboço
de um caso triste,
aquele doido
procurando as mãos.
As mãos que deixara
Hilda Hilst
imagens: Nydia Lozano