domingo, 2 de janeiro de 2022

Presságios - Hilda Hilst


Voltando (porque tua volta sinto-a num presságio) acenderei luzes

na minha porta e falaremos só o necessário.

Terás pão e vinho sobre a mesa.

Virás acabrunhado (quem sabe) como o filho que retorna.

Nesse dia, a lamparina de teu quarto deixarás que fique acesa a

noite inteira.

O amor sobrevive.

E seremos talvez amor e morte ao mesmo tempo.




I

Stela, me perguntaram

se permaneces no tempo.

Se teu rosto de coral

e teus cabelos de pedra

ficarão indefinidos

no espaço, pedindo sol.


Ainda ontem te vi.

Olhar quase estagnado.

Descias azuis escadas

com aquele teu xale verde.

Aquele xale de Stela

parecia feito d’água:

verde aguado, verde aguado.


Debaixo dos teus dois braços

trazias rosas molhadas.


Aquelas rosas de Stela

e Stela me perguntando

se a morte é cousa que passa.


Stela, que desconsolo.

Não sabes onde termina

a aurora de tua presença.


No tempo, se é que existes,

só ficarás peregrina.


Como pesa: Stela e eu.


II


Me mataria em março

se te assemelhasses

às cousas perecíveis.

Mas não. Foste quase exato:

doçura, mansidão, amor, amigo.


Me mataria em março

se não fosse a saudade de ti

e a incerteza de descanso.

Se só eu sobrevivesse quase nula,

inerte como o silêncio:

o verdadeiro silêncio de catedral vazia,

sem santo, sem altar. Só eu mesma.


E se não fosse verão,

e se não fosse o medo da sombra,

e o medo da campa na escuridão,

o medo de que por sobre mim

surgissem plantas e enterrassem

suas raízes nos meus dedos.


Me mataria em março

se o medo fosse amor.

Se março, junho.


III

Gostaria de encontrar-te.


Falar das cousas

que já estão perdidas.


Tuas mãos trementes

se desmanchariam

na sonoridade

dos meus ditos.


Faria de teus olhos

luz,

de tua boca

um eco.


Nos teus ouvidos

eu falaria de amigos.


Quem sabe se amarias escutar-me.


IV


Brotaram flores

nos meus pés.

E o quotidiano

na minha vida

complicou-se.


Diferença triste

aborrecendo o andar

de minhas horas.

Rosa Maria

tem flores na cabeça.

Maria Rosa as leva no vestido.

E esse nascer de flores

nos meus pés,

atrai olhares de espanto.


Ainda ontem

me vieram dizer

se eu as vendia.

Meus pés iriam

com flores andar

sobre o teu silêncio.

Tua vida

no meu caminho,

na caminhada grotesca

daqueles meus pés floridos.


De tanto serem zombadas

morreram adolescentes.

Pobres pés, pobres flores.

murcharam ontem,

hoje secaram.


E o quotidiano

na minha vida

complicou-se.


V


Amargura no dia

amargura nas horas,

amargura no céu

depois da chuva,

amargura nas tuas mãos


amargura em todos os teus gestos.


Só não existe amargura

onde não existe o ser.


Estão sendo atropelados

em seus caminhos,

os que nada mais têm a encontrar.

Os que sentiram amargura de fel

escorrendo da boca,

os que tiveram os lábios

macerados de amor.


Estão terrivelmente sozinhos

os doidos, os tristes, os poetas.


Só não morro de amargura

porque nem mais morrer eu sei.


VI

Água esparramada em cristal,

buraco de concha,

segredarei em teus ouvidos

os meus tormentos.

Apareceu qualquer cousa

em minha vida toda cinza,

embaçada, como água

esparramada em cristal.

Ritmo colorido

dos meus dias de espera,

duas, três, quatro horas,

e os teus ouvidos

eram buracos de concha,

retorcidos

no desespero de não querer ouvir.


Me fizeram de pedra

quando eu queria

ser feita de amor.


VII


Maria anda como eu:

Impossibilitada de fazer

tudo o que quer.


Tem mãos amarradas,

ar de doente, olhar de demente,

cansada.


Maria vai acabar como eu:

covarde nas decisões,

amante das cousas indefinidas

e querendo compreender suicidas.


Maria vai acabar assim sem rumo,

andando por aí,

fazendo versos

e tendo acessos

nostálgicos.


Maria vai acabar

bem tristemente.

De qualquer jeito,

lendo jornais,

tendo marido

indefinido.


(Não sei por que Maria

quer compreender

muito, demais,

a vida do suicida.

E Maria vai acabar

se fartando da vida.)


A vida, coitada,

é camarada, gosta de Maria,

quer fazer Maria viver mais,

porque Maria é desgraçada.

Quer deixá-la para o fim,

assim à mostra,

e eu francamente não entendo

por que Maria não gosta

da vida


VIII


Canção do mundo

perdida na tua boca.


Canção das mãos

que ficaram na minha cabeça.


Eram tuas e pareciam asas.


Pareciam asas

que há muito quisessem repousar.


Canção indefinida

feita na solidão

de todos os solitários.


Os homens de bem

me perguntaram

o que foi feito da vida.


Ela está parada.

Angustiadamente parada.


O que foi feito

da ternura dos que amaram…


Ficou na minha cabeça,

nas tuas mãos que pareciam asas.

Que pareciam asas.


IX


Colapso hibernal

das cousas ausentes.

Desfila diante de mim

o teu olhar parado.

Na minha frente

há figuras de mortos

tecendo roupas brancas,

e na tua vida

há qualquer cousa de triste

que não foi contado.


Coragem de viver os dias

sem falar de loucos

quando há qualquer louco

no infinito,

pedindo uma lembrança

e contei os seus dias de vida

nos meus sonhos.


Existe um deus qualquer

nas minhas entranhas.


Pobre loucura

atrofiando o amor da amada.

Teu pobre olhar

atrofiou minha vida inteira.



X


Olhamos eternamente

para as estrelas

como mendigos

que eternamente

olham para as mãos.


E imaginamos

cousas absurdas

de realização.

Cousas que não existem

e cujo valor

é o de consistirem

parte da ilusão.


E olhamos eternamente

para as estrelas

porque parecem diferentes.

E quando agrupadas

eu as revejo individualizadas.

Estrelas… só.

Quem sabe se naquela imensidão

elas sofrem o mal dissolvente,

passivo,

mas dissolvente ainda: solidão.


Brilham para o mundo.

No entanto estão sozinhas

na lúgubre fantasia de pontas.


Nunca, meditem,

nunca as encontraremos

pois elas olham

igualmente para nós

e nos desejam

porque estão sós.


XI


Quando terra e flores

eu sentir sobre o meu corpo,

gostaria de ter ao meu lado tuas mãos.

E depois, guardar meus olhos dentro delas.


XII


Dia doze… e eu não suportarei

o estado normal das cousas.

O ano que vem, não vou desejar

felicidades a ninguém.


Nem bom natal, nem boas entradas.


Meus amigos sabem de tudo o que eu sei.

E continuam a viver sem interrupção,

apressadamente como no ato do amor.

São doidos e não percebem que amanhã

Cristina não virá.

Que amanhã Cristina vai morrer

porque ama a vida.


Amanhã serei corajosamente Cristina.

Eu, amando todos os que sofrem.

Eu… essência.


Mas os meus amigos, coitados,

não percebem.

Fazem filhos nascer, fazem tragédia.

Não sabem que o amor não é amor

e a natureza é um mito.


Não sabem de nada os meus amigos.

E não vou explicar

porque podem ficar sentidos.

São puros, vão morrer como anjos.

Vão morrer sem nada saber

daqueles dias perdidos.


Vão morrer sem saber que estão morrendo.


XIII


Me falaram de um deus.

Eu chorava na quietude

dos dias sós.


A irmã morta sorria

o riso pálido dos santos.


Me falaram de um deus.

Deus em branco.

Deus que faz de flores, pedras.

E de pedras, compreensão.


Deus amargurado.

Chora e geme

na quietude dos dias sós.


Consolo.


XIV


Fui monja

vestida de negro

em labirinto azul.


Antes do Ser

havia um homem

consciente

destruindo o lirismo

descuidado

das minhas madrugadas.


Estava presente

nas conversas dos bares

— solitárias histórias.

Estava presente

na fusão dos homens medíocres

e dos homens sem cor.


Em azul e negro

eu vi o esboço

de um caso triste,

aquele doido

procurando as mãos.

As mãos que deixara


Hilda Hilst

imagens: Nydia Lozano