sábado, 8 de janeiro de 2022

A arte da vida - Zygmunt Bauman


Você não é uma entidade isolada, mas uma parte única e insubstituível do cosmo. Não se esqueça disso. Você é uma peça essencial do quebra-cabeça da humanidade. Epicteto, A arte de Viver.

  É desejo de todo homem ... viver feliz, mas quando se trata de ver claramente o que torna a vida feliz, eles tateiam em busca da luz; de fato, uma medida da dificuldade de atingir a vida feliz é que, quanto maior a energia que um homem gasta empenhando-se por ela, mais dela se afasta caso tenha errado em algum ponto do caminho... Sêneca, "Sobre a vida feliz" 


• Introdução • O que há de errado com a felicidade? 


Uma vez que os bens capazes de tornar a vida mais feliz começam a se afastar dos domínios não-monetários para o mercado de mercadorias, não há como os deter; o movimento tende a desenvolver um impulso próprio e se torna autopropulsor e auto-acelerador, reduzindo ainda mais o suprimento de bens que, pela sua natureza, só podem ser produzidos pessoalmente e só podem florescer em ambientes de relações humanas intensas e íntimas. Quanto menos for possível oferecer a outras pessoas bens do primeiro tipo, "que o dinheiro não pode comprar", ou quanto menos houver disposição para cooperar com outros em sua produção (a disposição para cooperar é frequentemente saudada como o bem mais satisfatório que se pode oferecer), mais profundos serão os sentimentos de culpa e infelicidade resultantes. O desejo de compensar e redimir a culpa impulsiona o pecador a buscar substitutos compráveis mais caros para aquilo que não é mais oferecido às pessoas com que ele convive, e assim a gastar ainda mais horas longe delas a fim de ganhar mais dinheiro. A chance de produzir e compartilhar os bens dolorosamente desejados que se está demasiadamente ocupado e exausto para obter e oferecer é, assim, ainda mais empobrecida.

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Podemos deduzir das estatísticas como é forte e generalizada a crença de que há um vínculo íntimo entre a felicidade e o volume e qualidade do consumo: um pressuposto subjacente a todas as estratégias mediadas pelas lojas. O que também podemos aprender é com que sucesso os mercados conseguem empregar esse pressuposto oculto como uma máquina que produz lucros - identificando o consumo gerador de felicidade com o consumo dos objetos e serviços postos à venda nas lojas.

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Um dos efeitos mais seminais de se igualar a felicidade à compra de mercadorias que se espera que gerem felicidade é afastar a probabilidade de a busca da felicidade algum dia chegar ao fim. Essa busca nunca vai terminar - seu fim equivaleria ao fim da felicidade como tal. Não sendo possível atingir um estado seguro de felicidade, só a busca desse alvo teimosamente esquivo é que pode manter felizes (ainda que moderadamente) os corredores. Na pista que leva à felicidade, não existe linha de chegada. Os pretensos meios se transformam em fins: o único consolo disponível em relação ao caráter esquivo do sonhado e ambicionado "estado de felicidade" é permanecer no curso; enquanto se está na corrida, sem cair exausto nem receber um cartão vermelho, a esperança de uma vitória futura se mantém viva. 

Alterando sutilmente o sonho da felicidade - da visão de uma vida plena e satisfatória para a busca dos meios considerados necessários para que uma vida assim seja alcançada -, os mercados fazem com que essa busca nunca possa terminar. Seus alvos substituem uns aos outros a uma velocidade estonteante. Os que nela estão empenhados (e, evidentemente, seus zelosos treinadores e guias) entendem plenamente que, se a busca alcançar seu propósito declarado, os alvos perseguidos têm que cair em desuso rapidamente, perder o brilho, a atração e o poder de sedução, ser abandonados e substituídos (muitas vezes seguidas) por outros alvos, "novos e aperfeiçoados", destinados a sofrer destino semelhante. Imperceptivelmente, a visão da felicidade muda da antecipação da alegria pós-aquisição para o ato de compra que a precede - um ato transbordante de expectativa jubilosa; jubilosa de uma esperança ainda imaculada e intacta. 

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 "Eu o odiava. Na verdade, eu o adorava, mas depois, quando o levei para casa, achei que era curto demais. Mas depois eu li a Vogue e vi aquela mulher de short - e era o meu short da Topshop! Desde então não me separo dele." É isso que a logo, a marca e a localização podem fazer por seus clientes: guiá-los no caminho confusamente sinuoso e minado que leva à felicidade. A felicidade de receber o certificado publicamente reconhecido e respeitado que confirma (com autoridade!) que se está na trilha certa, que ainda se está na competição, e que se tem permissão para manter vivas as esperanças. 

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Obviamente, hipotecar o futuro é assunto grave, uma decisão séria para se tomar. Liberty tem 12 anos e um longo futuro pela frente, mas não importa que se tenha um futuro longo ou curto: buscar a felicidade numa sociedade de mercado de consumo caracterizada por marcas, logos e lojas exige que ele seja hipotecado.

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Anular o passado, "renascer", adquirir um eu [self] diferente e mais atraente ao mesmo tempo em que se descarta aquele que está velho, usado e não é mais desejado, reencarnar como "uma pessoa completamente diversa" e começar de "um novo início"... essas sedutoras ofertas são difíceis de rejeitar de imediato. Com efeito, por que trabalhar para o autoaperfeiçoamento com todos os esforços extenuantes e o doloroso auto-sacrifício que essa labuta inevitavelmente exige? E no caso de todo esse esforço, abnegação e austeridade doentia não conseguir compensar as perdas num tempo suficientemente curto, por que pôr dinheiro a perder? Não é óbvio que é mais barato, e mais rápido, e mais completo, e mais conveniente, e mais fácil de se alcançar, eliminar as perdas e começar a ganhar - livrar-se da pele velha, das manchas, verrugas e tudo mais, e comprar uma nova, prontinha para ser usada? Não há nada de novo em tentar fugir quando as coisas realmente esquentam. As pessoas têm procurado fazer isso, com resultados variados, em todas as épocas. O que de fato é novo é o sonho gêmeo de fugir do próprio eu e adquirir um outro feito sob encomenda - e a convicção de que transformar esse sonho em realidade é algo que está a nosso alcance. Não apenas uma opção possível, mas a mais fácil, a que tem probabilidade de funcionar em caso de encrenca; um atalho opcional, uma escolha menos trabalhosa, que consome menos tempo e energia, e portanto mais barata, em todos os aspectos, se avaliada, segundo o conselho de Simmel, pelo volume dos outros valores que tiveram de ser abandonados ou cortados. Se a felicidade está permanentemente ao alcance, e se alcançá-la leva apenas os poucos minutos necessários para folhear as Páginas Amarelas e sacar o cartão de crédito, então, obviamente, um eu que não consiga atingir a felicidade não pode ser "real" ou "genuíno", mas antes uma relíquia da indolência, ignorância ou inépcia - senão das três em conjunto. Esse eu deve ser uma imitação ou uma fraude. A ausência de felicidade, ou uma felicidade insuficiente, ou menos intensa que o tipo proclamado como alcançável por todos que tentaram o bastante e usaram os meios e habilidades adequados, é todo o motivo de que se precisa para recusar o "eu" que se tem e embarcar e prosseguir numa viagem de autodescoberta (ou autoinvenção). Eus fraudulentos ou arruinados devem ser descartados com base na "inautenticidade", enquanto a busca pelo verdadeiro prossegue. E há pouca razão para abandonar essa busca quando se tem certeza de que em breve o momento vivido fará parte da história e outro momento chegará, trazendo novas promessas, explodindo de novos potenciais, pressagiando um novo início... 

Numa sociedade de compradores e numa vida de compras, estamos felizes enquanto não perdemos a esperança de sermos felizes. Estamos seguros em relação à infelicidade enquanto uma parte dessa esperança ainda palpita. E portanto a chave para a felicidade e o antídoto da miséria é manter viva a esperança de ficar feliz. Mas ela só pode permanecer viva sob a condição de uma rápida sucessão de "novas oportunidades" e "novos inícios", e da perspectiva de uma cadeia infinitamente longa de novos inícios à frente. Essa condição é produzida dividindo-se a vida em episódios, ou seja, em fatias de tempo preferivelmente independentes e autossuficientes, cada uma com enredo, personagens e final próprios. Esse último requisito - o final - é alcançado se os personagens que atuam, ou sobre os quais se atua no curso do episódio, presumivelmente se engajam apenas pelo tempo de sua duração, sem compromisso de serem admitidos no episódio seguinte. Como cada episódio tem sua própria trama, cada qual precisa de um novo elenco. Um compromisso indefinido, interminável, limitaria seriamente a variedade de tramas disponíveis para os episódios subsequentes. Um compromisso indefinido e a busca da felicidade parecem conflitantes. Numa sociedade de consumidores, todos os laços e vínculos devem seguir o padrão da relação entre o comprador e as mercadorias que ele adquire: das mercadorias não se espera que abusem da hospitalidade, e elas devem deixar o palco da vida no momento em que comecem a perturbá-lo em vez de adorná-lo; dos compradores não se espera - nem estão eles dispostos a isso - que jurem fidelidade eterna às aquisições que trazem para casa ou que lhes concedam direito de residência permanente. As relações do tipo consumista são, desde o começo, "até segunda ordem". 

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... um "homem que queria viver sua vida"." Esse homem se mantinha fechado por trás das paredes das obrigações que o cercavam, constantemente adensadas por um número cada vez maior de armadilhas e emboscadas da vida familiar, o tempo todo sonhando com mais liberdade. Ele decidiu livrar-se das responsabilidades ao mesmo tempo em que aumentava o fardo que o mantinha preso ao solo, tornando exaustivo o menor movimento. Envolvido (ou melhor, envolvendo-se) nessas contradições insolúveis, o herói de Kennedy não sofria uma opressão maior do que qualquer pessoa. Não era vítima de ninguém, nem alvo de ressentimento ou malícia. Seus sonhos de liberdade para se autoafirmar não eram obstados por ninguém a não ser ele mesmo, e apenas seus próprios esforços de autoafirmação faziam com que a carga sob a qual ele afundava e gemia fosse composta dos frutos cobiçados e, de fato, acalentados desses esforços: de sua carreira, sua casa, seus filhos, seu amplo crédito - todos esses admiráveis e cobiçados "benefícios da vida" que ofereciam uma boa razão, como sugere Kennedy, para se levantar da cama de manhã...

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Nossas vidas, quer o saibamos ou não e quer o saudemos ou lamentemos, são obras de arte. Para viver como exige a arte da vida, devemos, tal como qualquer outro tipo de artista, estabelecer desafios que são (pelo menos no momento em que estabelecidos) difíceis de confrontar diretamente; devemos escolher alvos que estão (ao menos no momento da escolha) muito além de nosso alcance, e padrões de excelência que, de modo perturbador, parecem permanecer teimosamente muito acima de nossa capacidade (pelo menos a já atingida) de harmonizar com o que quer que estejamos ou possamos estar fazendo. Precisamos tentar o impossível. E, sem o apoio de um prognóstico favorável fidedigno (que dirá da certeza), só podemos esperar que, com longo e penoso esforço, sejamos capazes de algum dia alcançar esses padrões e atingir esses alvos, e assim mostrar que estamos à altura do desafio. A incerteza é o hábitat natural da vida humana - ainda que a esperança de escapar da incerteza seja o motor das atividades humanas. Escapar da incerteza é um ingrediente fundamental, mesmo que apenas tacitamente presumido, de todas e quaisquer imagens compósitas da felicidade. É por isso que a felicidade "genuína, adequada e total" sempre parece residir em algum lugar à frente: tal como o horizonte, que recua quando se tenta chegar mais perto dele. 


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• As Misérias da Felicidade • 


O Financial Times, leitura diária obrigatória para milhares de ricos e poderosos, e para um número muito maior de malsucedidos cujo sonho é se juntar a eles, publica mensalmente um luxuoso suplemento intitulado "Como Gastá-lo", o "o" referindo-se ao dinheiro. Ou melhor, àquele que sobra depois de se cuidar de todos os investimentos que prometem mais dinheiro ainda, e de pagar as enormes contas de manutenção de casa e jardim, os custos das roupas sob medida, as pensões dos ex-parceiros e os débitos dos carros de luxo. Em outras palavras, essa margem de livre escolha (às vezes ampla, e que sempre se deseja mais ampla ainda) diante dos tipos de necessidades a que os ricos e poderosos são obrigados a sucumbir. O "o" a ser gasto é a esperada recompensa por dias repletos de escolhas perigosas e enervantes e por muitas noites insones assombradas pelo horror de passos em falso e apostas erradas. É a alegria que faz as dores valerem a pena. Em suma, "o" significa felicidade. Ou melhor, a esperança de felicidade que é felicidade. Ou pelo menos se imagina e se espera ardentemente que assim seja...

Ann Rippin fez o esforço de folhear sucessivos números de "Como Gastá-lo" para descobrir o que se oferece ao "jovem moderno em trajetória ascendente" como fonte/símbolo/evidência material da felicidade alcançada. Como era de se esperar, todos os caminhos para a felicidade sugeridos passavam por lojas, restaurantes, salões de massagem e outros locais em que se pode gastar dinheiro. E dinheiro grande: 30 mil libras por uma garrafa de conhaque, ou uma adega de 75 mil libras para armazená-la na companhia de outras garrafas e encantar (provocar inveja? humilhar? envergonhar? arrasar?) o grupo de amigos convidados a visitá-lo e admirá-lo. Mas, além dos preços que certamente manterão quase toda a raça humana do lado de fora, algumas lojas e restaurantes têm algo extra a oferecer, algo que vai evitar que o resto da raça humana sequer se aproxime da porta: um endereço secreto, terrivelmente difícil de obter e que presenteia os pouquíssimos que o conseguem com o sentimento celestial de "ter sido escolhido" - ser elevado a alturas que os simples mortais nem sonhariam atingir. O tipo de sentimento que talvez tenha sido experimentado pelos místicos ao ouvirem o anjo mensageiro anunciando a divina graça, mas, em nossos tempos sóbrios, realistas, pragmáticos da "felicidade agora!", dificilmente disponível por meio de atalhos que não passem por lojas. 

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A mensagem parece tão sensata quanto direta: o caminho para a felicidade passa pelas lojas e, quanto mais exclusivas, maior a felicidade alcançada. Atingir a felicidade significa a aquisição de coisas que outras pessoas não têm chance nem perspectivas de adquirir. A felicidade exige que se pareça estar à frente dos competidores... 

As lojas das ruas populares não prosperariam se não fossem as butiques ocultas em ruelas ou com endereços seletiva (e esparsamente!) divulgados. As butiques das ruelas vendem produtos diferentes daqueles oferecidos nas lojas das ruas populares, mas passam a mesma mensagem, prometem realizar sonhos espantosamente semelhantes. O que as butiques fizeram pelos poucos escolhidos certamente emprestará autoridade e credibilidade às promessas das cópias massificadas vendidas nas lojas. E as promessas, em ambos os casos, são marcantemente parecidas: torná-lo "melhor que..." - e portanto capaz de sobrepujar, humilhar, rebaixar e degradar outras pessoas que sonharam fazer o que você fez, mas fracassaram. Em suma, a promessa da regra universal de estar à frente dos competidores trabalhando para você... 

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Max Scheler observava, já em 1912, que em vez de experimentar valores antes de compará-los, a pessoa média só aprecia um valor "por comparação, e no curso da comparação", com as posses, condições, situação ou qualidade de outra(s) pessoa(s). O problema é que um efeito colateral frequente desse tipo de comparação é a descoberta de que não se possui um valor apreciado. Essa descoberta e, mais ainda, a consciência de que a aquisição e o desfrute desse valor estão além da capacidade da pessoa provocam os mais fortes sentimentos e desencadeiam duas reações opostas, mas igualmente vigorosas: um desejo irresistível (ainda mais tormentoso pela suspeita de que pode ser impossível realizá-lo) e o ressentimento - o rancor causado pelo impulso desesperado de evitar a autodepreciação e o autodesprezo, diminuindo, ridicularizando e degradando o valor em questão, juntamente com seus portadores. E podemos observar que, por ser composta de dois impulsos mutuamente contraditórios, a experiência da humilhação provoca uma atitude muito ambivalente - o protótipo da "dissonância cognitiva", um foco de comportamento irracional e uma fortaleza impenetrável contra os argumentos da razão. É também uma fonte de perpétua ansiedade e desconforto espiritual para todos que aflige. 

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Num conselho que poderia ser dirigido aos consumidores da sociedade de consumidores — já que foi escrito numa linguagem que eles entenderiam com facilidade e recorre a metáforas singularmente evocativas de sua visão de mundo (mesmo que não esteja particularmente sintonizado com suas inclinações e preferências) -, Epicteto, um velho escravo romano que se converteu num dos fundadores da escola estóica de filosofia, sugeriu o seguinte:  

Imagine sua vida como se fosse um banquete onde você deve se comportar com cortesia. Quando os pratos lhe forem passados, estenda a mão e sirva-se de uma porção moderada. Se algum prato não lhe for apresentado, aproveite o que já está no seu. Ou se o prato ainda não chegou a você, espere pacientemente a sua vez. Transfira essa mesma atitude de comedimento e gratidão cortês a seus filhos, esposa, carreira e finanças. Não há necessidade de cobiçar, invejar e apoderar-se. Você vai ganhar sua porção correta quando chegar a hora.4 O problema, porém, é que a sociedade de consumidores faz tudo que se possa imaginar para que a crença na verdade da promessa tranquilizadora de Epicteto pareça contrária à experiência - e, por esse motivo, sua advertência de controle, abstinência e cautela se torne difícil de aceitar. Nossa sociedade de consumidores também faz tudo que se possa imaginar para tornar a prática do conselho de Epicteto uma tarefa desanimadora e um esforço árduo. Mas não a torna impossível. A sociedade pode (ornar (e de fato torna) certas escolhas menos prováveis de serem feitas pelos homens do que outras. Mas nenhuma sociedade pode privá-los da escolha. 

Haveria alguma coisa a dizer sobre a felicidade com confiança, sem esperar oposição? Há: que a felicidade é uma coisa boa - a ser desejada e acalentada. Ou que é melhor ser feliz do que infeliz. Mas esses dois pleonasmos são quase tudo que pode ser dito sobre a felicidade com uma segurança bem fundamentada. Todas as outras frases envolvendo a palavra "felicidade" certamente provocarão controvérsia. Para um observador de fora, a felicidade de uma pessoa pode ser bem difícil de distinguir do horror de uma outra. 

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Embora Immanuel Kant tenha lutado toda a sua vida (e com grandes resultados) para aguçar e clarificar conceitos nebulosos ou discutíveis na esperança de chegar a uma definição que "resolvesse o assunto" de um modo que fosse imune a todo e qualquer contra-argumento, e portanto tendente a ser aceitável e finalmente aceito por todos os seres humanos, sentiu-se obrigado a abandonar essa esperança no caso do conceito de "felicidade". "O conceito de felicidade", declarou ele, "é de tal modo indeterminado que, embora todos desejem atingi-la, não podem, contudo, afirmar de modo definitivo e consistente o que é que realmente desejam e pretendem." Podemos acrescentar: quando se trata da felicidade, não se pode ser ao mesmo tempo definitivo e consistente. Quanto mais se é definitivo, menor a chance de permanecer consistente. E isso não causa espanto, já que ser definitivo sobre a forma que a felicidade deve assumir significa centralizar a atenção e a energia no modelo escolhido e deixar de fora, ou lançar à sombra, todo o resto - ainda que todo modelo, quando adotado às expensas de todos os outros, tenda a parecer cada vez mais suspeito à medida que se multiplicam as tumbas de um número crescente de possibilidades natimortas, abortadas ou desprezadas. Espera-se que a realização venha num pacote que negocie com a tentação da inconsistência: de recuar ou mover-se para os lados... O desejo de felicidade, que, a crermos em Platão, Sócrates já proclamava ser um fato bruto da vida, parece ser um eterno companheiro da existência humana. Mas igualmente eterna parece ser a aparente impossibilidade de sua realização e satisfação lotais, inquestionáveis, je ne regrette rien. E igualmente eterna, não obstante todas as frustrações que isso causa, é a impossibilidade de os seres humanos algum dia deixarem de desejar a felicidade - e, com efeito, fazer o possível para procurá-la, consegui-la e mantê-la. 

Seguindo sua estratégia usual de resolver as questões resultantes da complexidade da condição humana decompondo-as num inventário de seus componentes mais simples, Aristóteles relacionou em sua Retórica as qualidades e realizações pessoais que - uma vez possuídos ou ganhos — se condensariam numa vida feliz.6 Ele concordava que a felicidade pode ser definida de uma série de maneiras: como "prosperidade combinada com virtude", "independência da vida", "gozo seguro do máximo prazer", "boa condição da propriedade e do corpo, juntamente com o poder de proteger sua propriedade e seu corpo e de fazer uso deles". Mas então ele ofereceu uma lista dos bens "internos" e "externos" que são indispensáveis para a felicidade, qualquer que seja a fórmula que se escolha para uma vida feliz. A lista, em sua opinião, tinha fundamento empírico e era composta de desejos que provavelmente seriam relatados por todos os cidadãos de Atenas, como: bom berço, muitos amigos, bons amigos, riqueza, bons filhos, muitos filhos, saúde, beleza, força, grande estatura, capacidade atlética, fama, honra, boa sorte, virtude. Não há nessa lista uma hierarquia de valores - todos os ingredientes estão colocados no mesmo nível de importância, indicando que nenhum deles pode ser sacrificado em proveito de outro sem diminuir a felicidade, e que a presença ou abundância de qualquer um deles não poderia realmente compensar a ausência ou escassez de um outro. Essa sugestão fazia coro com o restante da filosofia de vida de Aristóteles, famoso por suspeitar de qualquer escolha radical, unilateral, aconselhando em vez disso a moderação, a avaliação equilibrada e a escolha do "meio-termo" como a única estratégia correta e eficaz a ser perseguida dentre as realidades notoriamente variegadas e inconsistentes. 

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Para a maioria de nossos contemporâneos, a perspectiva de "mais da mesma coisa" não é um valor por direito próprio; só se torna um valor quando é complementada por uma cláusula de cancelamento. "Mais da mesma coisa" pode ser atraente num momento de prazer e contentamento. Mas, tal como em outras áreas, a maior parte das pessoas não esperaria que o desejo permanecesse para sempre e não desejaria que o objeto do desejo continuasse "o mesmo" indefinidamente. Como o Fausto de Christopher Marlowe penosamente aprendeu, desejar que um momento de alegria permaneça "o mesmo" indefinidamente é uma forma segura de obter um compromisso por prazo indeterminado com o inferno em vez da felicidade... Para grande parte de nossos contemporâneos, é na verdade a condição de "estar no seu caminho" (ainda a uma certa distância do objetivo, puxado e empurrado por desejos ainda insatisfeitos, compelido a sonhar e a continuar tentando, e esperando, transformar esses sonhos em realidade) que, apesar de ser um teste enervante para a paciência, é saudada como um valor e, com certeza, um valor muito precioso. Mais provavelmente, nossos contemporâneos concordariam (se não por palavras, ao menos em seus corações) que o oposto dessa condição, o estado de repouso, não seria um estado de felicidade, mas de tédio; e para a maioria de nós "estar entediado" é sinônimo de extrema infelicidade, outro nome da condição que mais tememos. Se a felicidade pode ser um "estado", só pode ser um estado de excitação estimulado pela incompletude... No limiar da era moderna, "o estado de felicidade" foi substituído na prática e nos sonhos dos que o procuravam pela busca da felicidade. A partir desse limiar, a maior felicidade foi e continua sendo associada à satisfação de desafiar códigos e superar obstáculos, e não às recompensas a serem encontradas no ponto extremo do desafio contínuo e do esforço prolongado.

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O advento da busca da felicidade como principal motor do pensamento e ação humanos prenuncia para alguns, embora também ameace para outros, uma verdadeira revolução cultural, mas também social e econômica. Culturalmente, ele pressagia, sinaliza ou acompanha a passagem da rotina perpétua à inovação constante, da reprodução e retenção daquilo "que sempre foi" ou "que sempre se teve" para a criação e/ou apropriação daquilo "que nunca foi" ou "nunca se teve"; de "empurrar" para "puxar", da necessidade para o desejo, da causa para o propósito. Socialmente, coincide com a passagem da regra da tradição para a "fusão dos sólidos e a profanação do sagrado". Economicamente, desencadeia a mudança da satisfação de necessidades para a produção dos desejos. Se o "estado de felicidade" como motivo de pensamento e ação foi essencialmente um fator de conservação e estabilização, a "busca da felicidade" é uma poderosa força desestabilizadora. Para as redes de vínculos inter-humanos e seus ambientes sociais, assim como para os esforços humanos de autoidentificação, ela é de fato o anticongelante mais eficaz. Pode muito bem ser considerada o principal fator psicológico do complexo causai responsável pela passagem da fase "sólida" para a fase "líquida" da modernidade. 

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Veredicto de Epicuro, que Sêneca cita com aprovação irrestrita: "Se você modela a sua vida de acordo com a natureza, nunca será pobre; se de acordo com as opiniões das pessoas, nunca será rico." Ou seu comentário de que "não há nada que nos provoque problema maior do que o fato de aceitarmos um rumor, pensando que aquilo que ganhou tão ampla aprovação é o melhor, e que, como temos tantos a seguir como bons, vivemos pelo princípio não da razão, mas da imitação". E sua advertência de que "os desejos naturais são limitados; os que brotam de falsas opiniões não têm onde parar, pois a falsidade não tem ponto final". E, finalmente, por sua própria decisão de tomar a "multidão" como a coisa "particularmente importante a evitar", já que "quanto maior o tamanho da massa com que nos misturamos, maior o perigo". "Nada é tão danoso para o caráter quanto gastar seu tempo num espetáculo - pois é então, por meio do entretenimento, que os vícios se insinuam na pessoa com facilidade maior que a habitual."14 Em suma: evite a multidão, evite as grandes platéias, siga seu próprio plano de ação, que é o plano da filosofia — da sabedoria que você pode adquirir e tornar sua. Em sua curta jornada sobre a terra, o homem, diz Sêneca, é igual a Deus em sua eternidade. Em um de seus aspectos, o homem chega a ser superior a Deus: Ele tem a Natureza para defendê-Lo do medo - mas qualquer que seja a defesa do medo que o homem possa conseguir, ele precisa, deve, obtê-la por sua própria sabedoria. 

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("Um homem é tão infeliz quanto se convence de que é"15). Em vez de procurar o caminho para a felicidade dentro dos limites de sua condição, fazem um longo desvio, esperando que em algum lugar da rota seu destino odioso e repulsivo possa ser evitado ou enganado - apenas para aterrissar de volta no desespero que os estimulou a começar a viagem de descoberta (ardentemente desejada, mas inatingível). A única descoberta que os seres humanos talvez possam fazer em sua viagem é que a rota que tomaram foi apenas um desvio que mais cedo ou mais tarde os trará de volta à linha de chegada.  

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Como todas as coisas se desvanecem rapidamente, nossos próprios corpos perdidos no mundo físico, suas memórias perdidas no tempo; a natureza de todos os objetos dos sentidos - especialmente daqueles que nos atraem com o prazer, nos assustam com a dor ou ganham o aplauso da vaidade - como são baratos, desprezíveis, inferiores, perecíveis e inertes ... Todas as coisas do corpo escorrem como um rio, todas as coisas da mente são sonhos e ilusões... O que então pode nos acompanhar em nosso caminho? Uma coisa, só uma coisa: a filosofia.

O conselho de Marco Aurélio é manter distância do tumulto, de todas coisas que são desprezíveis por serem perecíveis e baratas, por serem inferiores: "Veja as coisas terrenas como se estivesse olhando para elas de algum ponto acima."18 Ao fazê-lo, pode-se resistir e evitar o encanto ilusório de coisas que não vão, que não podem, manter sua promessa de felicidade, e é possível resistir à tentação de se entregar a uma coisa cujo destino é terminar em frustração.  

Você sabe, a partir da experiência, que em todas as suas perambulações jamais encontrou a boa vida - nem na lógica, nem na riqueza, nem na glória, nem na satisfação; em lugar nenhum. Onde então se pode encontrá-la? Em fazer o que a natureza humana exige ... Ao ter princípios que governem seus impulsos e ações. 

E quais seriam esses princípios? Marco Aurélio cita alguns deles, escolhidos de modo a poderem ser exibidos por todos "sem qualquer desculpa de feita de talento ou aptidão": integridade, dignidade, trabalho duro, abnegação, contentamento, frugalidade, gentileza, independência, simplicidade, discrição, magnanimidade. "Lembre-se de que sua mente reguladora se torna invencível quando se recolhe à sua própria autosuficiência. ... A mente livre de paixões é uma fortaleza: não há lugar mais forte para as pessoas se recolherem."20 Usando a linguagem de nossa época, poderíamos dizer que Marco Aurélio aponta o caráter e a consciência pessoais como derradeiro refúgio das pessoas em busca da felicidade: o único lugar em que os sonhos de felicidade, destinados a morrer sem prole ou testamento em qualquer outro lugar, não tendem a serem frustrados. A receita da felicidade oferecida por Marco Aurélio é autosuficiente, auto-referencial e acima de tudo autolimitadora. Conheça as falsas trilhas, evite-as, aceite os limites impostos pela natureza e dos quais ela não vai recuar. As paixões - erráticas como são e desconhecendo limites - o conduziriam de modo aleatório, mas felizmente você tem sua mente, uma arma poderosa para desqualificar as paixões e tirar-lhes o poder. O segredo de uma vida feliz é manter as paixões estritamente atadas, dando rédeas livres a sua mente. Muitos séculos depois, Blaise Pascal pareceu fundir as mensagens de Sêneca e Marco Aurélio e destilar a essência comum de sua mistura:  

Não é no espaço que devo procurar minha dignidade humana, mas na organização do meu pensamento. Não me fará bem possuir terras. Pelo espaço o Universo me agarra e me engole como uma partícula; pelo pensamento sou eu que o agarro.

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Mas o problema, como Pascal apressou-se em acrescentar, é que a maioria das pessoas se comporta na maior parte do tempo contrariamente a essa correta advertência. Buscam a felicidade em outros lugares, onde não se pode encontrá-la. "A causa única da infelicidade do homem", concluiu Pascal em uma de suas frases mais memoráveis, "é que ele não sabe como ficar quieto em seu quarto." Correr de um lugar para outro é só uma forma de "desligarem suas mentes de si mesmos". Como há pouca chance para o pensamento quando você está correndo, continue correndo - e a tarefa intensamente árdua de olhar a si mesmo mais de perto pode ser mantida à distância: perpetuamente, infinitamente, ou pelo menos enquanto haja força suficiente em suas pernas para permanecer na pista. A maioria das pistas, como sabemos, são circuitos fechados: redondos ou elípticos, não levam a lugar algum; servem apenas para correr em círculos. O nome que as pessoas escolhem para o jogo do que creem ser a busca da felicidade (crêem erroneamente, para seu próprio prejuízo, sentenciando-se a um despertar amargo) é correr, não chegar.  

Um dado homem vive sua vida livre do tédio apostando uma pequena quantia todos os dias. Dê-lhe a cada manhã o dinheiro que ele pode ganhar naquele dia, mas sob a condição de que não jogue, e você o tornará infeliz. Pode-se dizer que o que ele quer é a diversão de jogar, e não a vitória... Ele precisa da excitação, precisa iludir-se imaginando que seria feliz se ganhasse o que não gostaria de receber como presente se isso significasse abandonar o jogo. 

Pascal sugere que as pessoas evitam olhar para dentro e se mantêm correndo na vã esperança de fugir de um encontro face a face com seu destino, o que significa enfrentar com determinação sua absoluta insignificância sempre que relembram a infinitude do universo. E ele os censura e castiga por fazê-lo. É, diz ele, essa mórbida inclinação de não sair da controvérsia em vez de permanecer numa posição fixa que deveria ser culpada por toda infelicidade. Seria possível objetar, contudo, que Pascal, ainda que apenas implicitamente, não nos apresenta a escolha entre uma vida feliz ou infeliz, mas entre dois tipos de infelicidade: quer optemos por correr ou ficar parados, estamos destinados a ser infelizes. A única (suposta e enganosa!) vantagem de estar em movimento (enquanto continuarmos nos movendo) é que adiamos por algum tempo a hora dessa verdade. Essa é, muitos concordariam, uma vantagem genuína de sair correndo em vez de permanecer em nossos quartos - e com toda certeza é uma tentação difícil de resistir. E eles preferirão render-se a essa tentação, permitir-se ser encantados e seduzidos - no mínimo porque enquanto permanecerem seduzidos conseguirão protelar o perigo de descobrir a compulsão e o vício que os impele a correr, resguardados pelo que agora se chama "liberdade de escolha" ou "autoafirmação". Porém, inevitavelmente, acabarão ansiando pelas virtudes que um dia tiveram mas agora abandonaram para se livrar da agonia que colocá-las em prática, e assumir a responsabilidade por essa prática, poderia ter causado. Assim, não admira que os filósofos insistam em que são necessárias qualidades exclusivas, esparsamente outorgadas, como "mente nobre", conhecimento sólido e caráter forte (às vezes também nervos de aço) para resistir a essa tentação - e portanto recusar-se a se entregar.  

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"Os novos narcisistas", como Lasch memoravelmente chamou os "homens psicológicos" capazes de perceber, esmiuçar e avaliar a condição do planeta unicamente através do prisma dos problemas pessoais, são "assombrados não pela culpa, mas pela ansiedade". Ao recordarem suas experiências "interiores", eles "procuram não fornecer um relato objetivo de um fragmento representativo da realidade, mas seduzir outros" a lhes darem "sua atenção, aplauso ou simpatia", e assim sustentar seu inseguro senso de eu [self]. A vida pessoal tornou-se parecida com a guerra e tão cheia de estresse quanto o próprio mercado. O coquetel "reduz a sociabilidade ao combate social". Sem muito mais em que basear a ansiada segurança de sua posição social, ressoando como autoconfiança e autoestima, exceto os ativos pessoais de propriedade pessoal ou a serem adquiridos pessoalmente, não admira que as demandas por reconhecimento, como diz Jean-Claude Kaufmann, "inundem a sociedade". "Todo mundo busca ansiosamente a aprovação, a admiração ou o amor nos olhos dos outros." E observemos que as bases para a autoestima fornecidas pela "aprovação e admiração" de outros são notoriamente frágeis. Como se sabe, os olhos se movem, e as coisas sobre as quais eles recaem ou pelas quais deslizam são conhecidas por sua propensão a virar e revirar de maneiras impossíveis de prever, de modo que o impulso e compulsão de "observar atentamente" na verdade nunca cessam. O calor da vigilância atual pode muito bem transformar a aprovação e aclamação de ontem na condenação e no ridículo de amanhã. O reconhecimento é como o falso coelho numa caçada: sempre perseguido pelos cães, jamais preso em suas mandíbulas. 

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Como assinalou Hannah Arendt, não há testamento que especifique o que pertence a quem. O que chamamos de "legado" ou "herança" é pouco mais que o ato de submeter o passado ao capricho do destino.37 O passado é refém do futuro - e tende a permanecer refém para sempre, embora freqüentemente essa libertação ou alforria tenha sido cuidadosamente negociada, e apesar do elevado resgate já pago. A famosa afirmação de Orwell, "quem controla o passado controla o futuro; quem controla o presente controla o passado", continua atual e extremamente plausível muito tempo depois de sua inspiração original - as ambições e práticas do "Ministério da Verdade" totalitário - ter afundado no passado (e, para muitos de nossos contemporâneos, no esquecimento). O problema, porém, é que pouquíssimos indivíduos podem agora apregoar plausivelmente que controlam o presente, e um número menor ainda pode ser reconhecido por fazer realmente o que se gaba de poder fazer. Com a atual limitação de ambos os lados - do passado, a que agora se nega a autoridade de um guia credenciado, e de um futuro que já ignora as ordens e imolações do presente e os ameaça com uma negligência parecida com aquela com que o presente trata seu passado, o mundo parece permanecer perpetuamente in statu nascendi - em "estado de devir". O curso que esse devir acabará assumindo é cronicamente indeterminado; sua direção tende a mudar (ou flutuar) aleatoriamente em vez de obedecer a uma ordem específica - enigmática, mas ainda assim previsível - do tipo postulado não muito tempo atrás sob o nome de "leis da história". 

O filósofo Martin Heidegger sugeriu que devíamos observar as coisas, tornarmo-nos conscientes e conhecedores delas, trazê-las para o foco de nossa atenção e só transformá-las em alvos de ação intencional quando houvesse "algo errado" - quando elas falhassem, começassem a se comportar de uma forma estranha a que não estivéssemos acostumados, ou, de algum outro modo, "saíssem da norma", desafiando nossos pressupostos tácitos sobre como é o mundo e o que se pode esperar que aconteça nele. Poderíamos dizer, com Heidegger, que a mãe do conhecimento e ao mesmo tempo o estímulo da ação é o desapontamento. O historiador Barrington Moore Jr. assinalou que no passado as pessoas tendiam a se rebelar e pegar em armas nem tanto para obter a "justiça", mas para que a "injustiça" fosse derrotada. "Injustiça" era o que perturbava uma vida tão regular e rotineira que permanecia virtualmente despercebida, sem causar a sensação de que algum mal estivesse sendo feito e sem sentimento de dor (muito menos dor "injusta"). Só podiam visualizar a "justiça" (se e assim que chamavam o propósito de sua rebelião) como um ato de negação, rejeição, anulação, compensação ou reparação dessa ―injustiça". Com muita frequência, a demanda por justiça foi um apelo conservador, referindo-se a algo perdido ou que assim se imaginava. Um mecanismo para restaurar o que foi levado ("injustamente", "imerecidamente") e voltar aos bons e velhos tempos (terríveis, mas conhecidos e habituais, "normais"). Em resumo, a familiaridade do ambiente não tornava as pessoas necessariamente felizes, mas estabelecia o padrão do que era normal ou "natural", e portanto "inquestionável" e "inevitável". Era o desconhecido afastamento do padrão e da norma, uma novidade "anormal" por definição e portanto passível de manipulação, que tendia a ser percebido como uma afronta - e portanto a chocar, causar clamor e estimular as pessoas a pegarem em armas. Quando irrompeu o desconhecido, o familiar se tornou (ainda que apenas retrospectivamente) a encarnação da felicidade: antes sob ataque, o familiar se sentia como a própria felicidade. Os servos feudais, por exemplo, dificilmente se considerariam felizes quando trabalhavam seis vezes por semana nos campos do senhor; mas acrescentar mais uma hora às exigências costumeiras deste os faria "perceber" como deviam ser felizes quando seus deveres feudais tomavam apenas seis dias e nem uma hora a mais. O ultraje da felicidade negada pode tê-los estimulado a se rebelar. Em tempos mais recentes, foi amplamente notado que as maiores desigualdades de salários costumeiramente "devidos" a diferentes categorias de empregados foram placidamente consideradas aceitáveis, no todo, por aqueles situados nos degraus inferiores da escala; só quando estes ficaram atrás de pessoas até então tratadas como iguais é que se sentiram "destituídos" - privados de seus direitos, incluindo o direito à felicidade - e estimulados a se rebelar e entrar em greve. A "destituição", percebida como uma injustiça cometida e que exige ser remediada pelo bem da felicidade, tem sido como uma regra de uma variedade relativa. 

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As regras descobertas por Heidegger ou Barrington Moore Jr. baseavam-se num mundo em que a linha que separa o "normal" do "anormal" podia ser traçada com nitidez; em que "normal" era sinônimo do que era mais comum, monótono, repetitivo, rotineiro e resistente à mudança. Essas regras estavam em casa num mundo no qual se esperava explicitamente que as coisas durassem ou se presumia tacitamente que persistissem no mesmo lugar e na mesma condição e mantivessem a mesma forma, a menos que fossem tiradas da inércia por uma força extraordinária (ou seja, "fora da ordem" e assim, por definição, imprevisível) e, como regra, externa. Permanência e uniformidade eram os princípios orientadores desse mundo. Qualquer mudança era suficientemente gradual e lenta para ser imperceptível: colocadas entre coisas permanentes, as pessoas tinham tempo abundante para "ajustar-se", "acomodar-se" e – lentamente, e por isso de modo imperceptível - adotar novos hábitos, rotinas e expectativas. Sem dificuldade nem hesitação, podiam separar o "regular" do "acidental" e o "legítimo" do "injustificado". Atrozes e miseráveis como suas condições pudessem parecer "objetivamente", era possível que não se sentissem desconfortáveis enquanto conhecessem seu lugar e suas escolhas, e estivessem conscientes do que estava armazenado e de como reagir ao que provavelmente ocorreria. O único significado que a idéia de "felicidade" pode ter tido para eles era a ausência de infelicidade; e "infelicidade" provavelmente significaria ruptura da rotina e frustração da expectativa. 

No interior de sociedades rijamente estratificadas e marcadas, por uma polarização aguda no acesso a valores materiais e simbólicos (prestígio, respeito, garantia contra a humilhação), são as pessoas situadas "no meio", no espaço que se estende entre o topo e a base, que tendem a ser mais sensíveis às ameaças de infelicidade. Enquanto as classes mais elevadas pouco ou nada precisavam fazer para manter sua condição superior, e as classes de baixo pouco ou nada podiam fazer para melhorar sua situação inferior, para as classes médias tudo que elas não tinham, mas cobiçavam, parecia acessível, enquanto tudo que tinham e prezavam podia ser facilmente perdido num único momento de desatenção. Mais que qualquer outra categoria de pessoas, elas tendiam a viver em estado de perpétua ansiedade, oscilando constantemente entre o medo da infelicidade e breves intervalos de aparente segurança e seu desfrute. Os filhos das famílias de classe média precisariam trabalhar duro e lutar muito se desejassem manter intacta a fortuna da família e recriar, por seu próprio esforço e astúcia, a posição confortável de que seus pais desfrutavam; foi principalmente para descrever os riscos e temores tipicamente relacionados a essa tarefa que termos como "ruína", "degradação social", ou agonia e humilhação de ser rebaixado, foram cunhados. Com efeito, a classe média era a única categoria da sociedade dividida em classes que continuava permanentemente comprimida entre duas fronteiras socioculturais, cada qual reminiscente de uma linha de frente em vez de um limite pacífico e seguro. A fronteira de cima era um local de incessantes incursões de reconhecimento e fervorosa defesa de suas poucas cabeças-de-ponte; a de baixo tinha de ser estritamente vigiada - podia facilmente permitir a entrada de intrusos, enquanto oferecia pouca proteção aos de dentro, a menos que a mantivessem plenamente fechada e intensamente protegida. 

Entre as razões para interpretar o advento da era moderna como uma transformação promovida principalmente por interesses da classe média (ou, seguindo Karl Marx, como uma vitoriosa "revolução burguesa"), as obsessões tipicamente de classe média com a fragilidade e inconfiabilidade da posição social, e seus esforços igualmente obsessivos de defesa e estabilização, de fato preocupam. Ao esboçarem os contornos de uma sociedade que desconhecia a infelicidade, os projetos utópicos que proliferaram na aurora da idade moderna refletiam, reciclavam e registravam sonhos e anseios predominantemente de classe média. 

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Jean-Jacques Rousseau sugeriu que os seres humanos precisam ser coagidos à liberdade — pelo menos à liberdade vislumbrada pelos filósofos e vista por eles como uma exigência implacável da razão. Podemos dizer que o mundo gerado pelo "projeto moderno" se comporta, na prática se não na teoria, como se os homens tivessem de ser coagidos a buscar a felicidade (pelo menos a felicidade vislumbrada por seus consultores autonomeados e conselheiros contratados, assim como pelos redatores de publicidade)... Vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana, os seres humanos tendem a ser treinados, preparados, exortados, persuadidos e tentados a abandonar as maneiras que consideravam corretas e adequadas, dar as costas àquilo que prezavam e que imaginavam que os fazia felizes, e tornar-se diferentes do que são. Veem-se pressionados a se transformar em trabalhadores prontos a sacrificar o resto de suas vidas pela empresa competitiva ou pela competição empresarial; em consumidores movidos por desejos e vontades infinitamente expansíveis; em cidadãos que abraçam total e irrestritamente a versão "não há alternativa" da "correção política" do momento, que os incita, entre outras coisas, a serem fechados e cegos à generosidade desinteressada e indiferentes ao bem comum se este não puder ser utilizado para reforçar seus egos... 


 2 •  

• Nós, os artistas da vida • 


Ser um indivíduo (ou seja, ser responsável por sua escolha de vida, sua escolha entre as escolhas, e pelas consequências das escolhas que fez) não é em si uma questão de escolha, mas um decreto do destino. Com muita frequência, porém, é preciso exercer essa responsabilidade em condições que fogem inteiramente ao nosso alcance, seja intelectual ou prático. A vida humana consiste num confronto perpétuo entre as "condições externas" (percebidas como "realidade", por definição um assunto sempre resistente, e muitas vezes desafiador, à vontade do agente) e designa seus autores/atores5: seu propósito de superar a resistência, o desafio e/ou inércia, ativos ou passivos, da matéria e reconstruir a realidade de acordo com a visão da "boa vida" que escolheram. Sobre essa visão, Paul Ricoeur diz que é "uma névoa de ideias e sonhos de realização", sob cuja luz opaca o grau de sucesso ou fracasso na vida é registrado e determinado.2 Sob essa luz, certos passos e seus resultados, embora não outros, são avaliados como sensatos, e certos propósitos, mas não outros, destacados como não apenas úteis, mas "autotélicos", ou seja, "bons por direito próprio", sem necessidade de serem justificados e defendidos como meios de implementação - de outro objetivo, mais elevado. 

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Permitam-me repetir: nos dias de hoje, cada homem e cada mulher é um artista nem tanto por escolha quanto, por assim dizer, por um decreto do destino universal. "Ser artista por decreto" significa que a inação também conta como ação; assim como nadar e navegar, deixar-se levar pelas ondas é a priori considerado um ato de arte criativa e tende a ser retrospectivamente registrado como tal. Mesmo quem se recusa a acreditar na lógica da sucessão, continuidade e importância de suas escolhas, decisões e realizações, e na viabilidade e plausibilidade de seus projetos para domar a sorte, anular a providência ou destino e manter a vida num curso estável, pré-planejado e preferido - nem estes ficam esperando as coisas acontecerem. Ainda precisam "ajudar a sorte" encarregando-se de um numero incalculável de pequenas tarefas que devem realizar, por decreto das circunstâncias, como que seguindo os esquemas de um kit de montagem. Tal como os que não veem razão para postergar a satisfação e decidem "viver o momento", as pessoas preocupadas com o futuro e que estão em guarda contra as possibilidades negativas que ainda têm pela frente estão convencidas da volatilidade das promessas da vida. Todos eles parecem apaziguados com a impossibilidade de decisões infalíveis, de prever exatamente qual dos inumeráveis passos sucessivos se revelará (retrospectivamente!) como uma das escolhas corretas, ou qual das sementes aleatoriamente espalhadas vai trazer frutos saborosos e abundantes, e que brotos irão murchar e morrer antes que uma súbita rajada de vento ou uma vespa em busca de alimentos tenha a chance de polinizá-los. E assim, não importa em que mais acreditem, todos concordam em que é preciso ter pressa, que não fazer nada ou agir languidamente e com indiferença é nocivo. 

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Num tom um pouco mais sério, o mundo líquido-moderno está num estado de revolução permanente, um estado que não admite as revoluções de uma só vez, os "eventos singulares" que constituem lembranças dos tempos da modernidade "sólida". Se ainda se permite falar em "revoluções" hoje, é apenas em retrospecto - quando, olhando para trás, percebemos que uma quantidade suficiente de mudanças pequenas e aparentemente insignificantes se acumulou para produzir uma transformação não apenas quantitativa, mas qualitativa, na condição humana. Crivada de seus imaculados referentes, a ideia de "revolução" foi banalizada: os redatores de comerciais usam e abusam dela, apresentando qualquer produto "novo e aperfeiçoado" como "revolucionário"... Em meio a mudanças constantes e ubíquas, é difícil, talvez impossível, apreender corretamente a natureza "sublevacionista" ale mesmo das transformações mais profundas, embora ininterruptas e incompletas. Menos possível ainda é planejar antecipadamente essas transformações e prever seu impacto sobre o estado da sociedade. Se uma sublevação genuína de fato ocorre, contudo, as experiências de vida que vão se sedimentar após a transformação decerto serão profundamente diferentes das que ao lembradas do passado. O que para as pessoas situadas de um lado da transformação foi, na melhor das hipóteses, uma exceção, uma quebra da rotina, parecerá um estado de coisas normal para as que estão do outro lado. A "turbulência comunicativa" se tornará então o primeiro sintoma da divisão intergeracional emergente. Nem é tanto um "conflito de interesses" (um lustre ideológico aplicado num estágio posterior do problema comunicativo) quanto um desacordo a respeito de assuntos relevantes e urgentes, e de problemas que surgem de áreas de ignorância diferentemente situadas e não superpostas. As experiências essenciais para um grupo têm poucos ou nenhum referente nas experiências de outro, enquanto temas de importância-chave para um deles simplesmente "não se aplicam" ao outro. 

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Quando jovem, tal como a maioria de meus contemporâneos, li atentamente as instruções de Jean-Paul Sartre a respeito da escolha do projet de la vie. A escolha do projeto de vida significava a "escolha das escolhas", a meta-escolha que determinaria de uma vez por todas, do princípio ao fim, todas as outras (subordinadas, derivadas, contingentes). Aprendemos com Sartre que para cada projeto haveria, em anexo, um mapa rodoviário e uma descrição detalhada do itinerário. Uma vez escolhido o destino, o resto seria apenas uma questão de determinar o caminho mais curto e menos acidentado com a ajuda do mapa, de uma bússola e da sinalização... Não tínhamos dificuldade em entender a mensagem de Sartre e considerá-la de acordo com aquilo que o mundo à nossa volta parecia anunciar ou implicar. No mundo de Sartre - o mundo de que minha geração compartilhava -, os mapas envelheciam lentamente, se tanto (alguns deles até se gabavam de serem "definitivos"), as estradas construídas podiam ser recapeadas de vez em quando para acomodar um número crescente de veículos mais pesados e com maior velocidade, mas continuariam a conduzir ao mesmo destino a cada vez que alguém se aventurasse por elas, e embora a tinta das placas nos cruzamentos e dos postes sinalizadores pudesse ter sido retocada diversas vezes, suas mensagens nunca mudavam. Na companhia de outros jovens da minha idade, também assisti pacientemente, sem um murmúrio de protesto, que dirá rebelião, a conferências de psicologia social baseadas em experimentos de laboratório com ratos famintos presos num labirinto procurando a única sucessão de curvas "correta" (ou seja, o único itinerário dentro do labirinto que levava a uma recompensa: um apetitoso pedaço de toucinho) a fim de aprendê-la e memorizá-la pelo resto de suas vidas. Nós não protestávamos, já que na confusão e na luta dos ratos de laboratório, tal como na advertência de Sartre, ouvíamos os ecos de nossas próprias experiências de vida... A maioria dos jovens de hoje certamente não vai reconhecer sua própria experiência nas preocupações dos ratos de laboratório. Também é provável que dessem de ombros se aconselhados a desenhar imediatamente, no início da estrada, toda a sua trajetória de vida.  Na verdade, apresentariam objeções: Será que nós sabemos o que o próximo mês vai nos trazer? Só podemos estar certos de uma coisa, acrescentariam: que o próximo mês ou ano será diferente do momento que estamos vivendo agora; que, sendo diferente, invalidará muito do conhecimento que temos agora e a maior parte do know-how que atualmente empregamos (embora seja impossível dizer qual parte); que certamente teremos de esquecer grande parte do que aprendemos, ao mesmo tempo em que precisaremos nos livrar de muitas coisas das quais nos orgulhamos e pelas quais hoje somos louvados (embora, mais uma vez, não haja como adivinhar qual delas terá de sair de cena); e que as escolhas mais recomendadas hoje podem ser depreciadas amanhã como equívocos vergonhosos. O que se segue (não é mesmo?, perguntariam) é que a habilidade que realmente precisamos adquirir é, primeiro e acima de tudo, a flexibilidade (nome neutralizado, e portanto politicamente correto nos dias atuais, para pusilanimidade) - a capacidade de esquecer e descartar prontamente antigos ativos transformados em passivos, assim como a capacidade de mudar cursos e trilhas imediatamente e sem remorso; e que aquilo que precisamos lembrar eternamente é a necessidade de evitar um juramento de lealdade por toda a vida a o que ou a quem quer que seja. As boas curvas, afinal, tendem a aparecer subitamente e do nada, e a desaparecer de modo igualmente abrupto; pobres dos otários que, por ação ou omissão, se comportam como se pudessem permanecer nelas para sempre... Parece que hoje, embora ainda se possa sonhar em descrever antecipadamente um cenário para toda a vida, e mesmo trabalhar arduamente para transformar esse sonho em realidade, apegar-se a qualquer cenário, mesmo ao do seu próprio sonho, é assunto arriscado e pode mostrar-se suicida. Os cenários de outrora podem ficar datados e fora de uso antes mesmo de se iniciarem os ensaios da peça; e, mesmo se conseguirem sobreviver até a noite de abertura, a carreira da peça pode revelar-se abominavelmente curta. Ter todo o palco da vida (que dirá a totalidade dela) comprometido com tal cenário preconcebido certamente será igual a negligenciar a oportunidade de realizar muitas produções (não há como saber quantas...) mais atualizadas, mais de acordo com a moda atual e, por essa razão, mais promissoras. Afinal, novas oportunidades vivem batendo à porta - e não há como dizer quando e em que porta não bater... 

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É, antes, o princípio geral em que as histórias tipicamente líquido-modernas se concentram: que, em composição com um destino benevolente, qualquer ingrediente acrescentado de maneira fortuita, ainda que seja comum, simples e inexpressivo, pode fazer com que os cristais brilhantes do sucesso se sedimentem a partir da solução espessa a que chamamos "vida". Qualquer ingrediente: não necessariamente o trabalho árduo, a abnegação, o ascetismo ou o autossacrifício sugeridos pelas histórias clássico-modernas. 

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a invenção das redes computadorizadas foi altamente conveniente(...) é que ela põe fim à desconfortável necessidade de tomar partido nas antigas disputas, agora ofensivas e fora de moda, entre trabalho e lazer, esforço e descanso, ação intencional e inatividade, ou mesmo aplicação e indolência. As horas gastas na frente do computador enquanto você zapeia pelo espaço denso dos websites - em que são gastas essas horas? Trabalho ou diversão? Esforço ou prazer? Você não pode dizer, você não sabe, e francamente não se importa - e deve ser absolvido dos pecados de sua ignorância e indiferença, já que uma resposta fidedigna a esses dilemas não será encontrada nem o poderá ser até que o destino mostre suas cartas. 

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Sobre o que esses blogs informam o "público da internet"? Sobre tudo que ocorre com seus proprietários/autores/operadores (não dá para saber o que, por algum motivo, pode subitamente atrair as atenções dos Rupert Murdochs ou Charles Saatchis da vida...). Criar um "site pessoal", um blog, é apenas outra variedade de loteria: você vai comprando bilhetes "por via das dúvidas", com ou sem a ilusão de que haja regras que o capacitem (ou a qualquer outra pessoa) a prever os vencedores, pelo menos o tipo de regras que você poderia aprender e lembrar a fim de observá-las fielmente, e com resultados positivos, em sua prática. John Lanchester, que examinou um grande número de blogs, descobriu um blogueiro contando em detalhes o que tinha consumido no café-da-manhã, outro descrevendo as alegrias do jogo da noite anterior, uma blogueira queixando-se das falhas íntimas e secretas de seu parceiro, outro mostrando uma feia fotografia de seu cachorro, outro ainda meditando sobre os desconfortos da vida de um policial e mais um listando os momentos mais saborosos das aventuras sexuais de um americano na China.8 E foi encontrada mais uma característica compartilhada por todos ou quase todos os blogs, independentemente da variedade de seus conteúdos: uma sinceridade e franqueza desavergonhadas ao apresentarem em público as experiências mais privadas e as mais íntimas aventuras. Falando cruamente, uma evidente falta de inibição em apresentar o seu eu (ou pelo menos algumas partes ou aspectos dele) no mercado. Talvez um item ou outro pudesse fazer alguém importante interromper a sua navegação e examinar mais de perto; talvez pudesse inflamar a imaginação de um potencial comprador, até mesmo um rico e poderoso - ou talvez apenas de internautas comuns, mas em número suficiente para atrair as atenções de membros do reduzido grupo dos poderosos e inspirá-los a fazer uma oferta irrecusável aos blogueiros, elevando aos píncaros o seu preço de mercado? Confissões públicas (quanto mais suculentas melhor) dos assuntos mais pessoais e supostamente secretos são um tipo de "moeda substituta" a que podem recorrer os que não têm acesso às moedas rotineiramente usadas pelos investidores mais "sérios" (leia-se: com mais recursos). Não há muito sentido na arte da vida a menos que exista a esperança, ainda que incerta, de que os objets d'art que ela produz serão admirados nas ruas e praças públicas ou na intimidade do boudoir ou sala de computador de alguém... 

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Praticar a arte da vida, fazer de sua existência uma "obra de arte", significa, em nosso mundo líquido-moderno, viver num estado de transformação permanente, autorredefinir-se perpetuamente tornando-se (ou pelo menos tentando se tornar) uma pessoa diferente daquela que se tem sido até então. "Tornar-se outra pessoa" significa, contudo, deixar de ser quem se foi até agora, romper e remover a forma que se tinha, tal como uma cobra se livra de sua pele ou uma ostra de sua concha; rejeitar, uma a uma, as personas usadas - que o fluxo constante de "novas e melhores" oportunidades disponíveis revela serem gastas, demasiado estreitas ou apenas não tão satisfatórias quanto foram no passado. Para apresentar em público um novo eu e admirá-lo no espelho e nos olhos dos outros, é preciso tirar o velho eu das vistas, nossas e de outras pessoas, e possivelmente também da memória, nossa e delas. Ocupados com a "autodefinição" e a "autoafirmação", nós praticamos a destruição criativa. Diariamente. 

Para muitas pessoas, particularmente para os jovens que só deixaram atrás de si umas poucas marcas, na maioria superficiais e fáceis de apagar, essa nova edição da arte da vida pode muito bem parecer atraente e desejável. Reconhecidamente, não sem boas razões. Esse novo tipo de arte promete uma longa corrente, aparentemente infinita, de futuras alegrias. Além disso, promete que a pessoa em busca de uma vida alegre e satisfatória jamais sofrerá uma derrota final, definitiva, irrevogável, que após cada recuo haverá uma segunda chance e a possibilidade de recuperação, com permissão de parar de perder e "começar de novo", "começar do (novo) começo" - ou mesmo recuperar ou obter plena compensação pelo que se perdeu no ato de "renascer" (leia-se: aderindo a um outro "jogo único na cidade", este, espera-se, mais afortunado e simpático ao usuário), de modo que as partes destrutivas dos sucessivos atos de destruição criativa possam ser facilmente esquecidas e o gosto amargo da perda possa ser superado pela doçura das novas paisagens e de suas promessas ainda não testadas. Nos tempos já relembrados em que Jean-Paul Sartre propôs que a realização consistente do "projeto de vida" constituía a essência da arte da vida, as sucessivas situações existenciais e seus desafios não pareciam como episódios autosustentáveis e independentes para o público. Certa ou erradamente, eram percebidos como estágios de um itinerário predefinido, dispostos um após outro numa ordem precisa, "natural", talvez até predeterminada. Algo semelhante às contas de um rosário, dispostas numa sucessão predeterminada, inegociável e inalterável que qualquer pessoa que reze o terço terá de seguir obrigatoriamente. Desde o primeiro momento e até o fim da existência, seguindo a forma indicada por Sartre, a trajetória de vida passaria por um itinerário planejado muito antes de se dar o primeiro passo. O projet de la vie da Sartre era o equivalente secular do caminho da salvação, da vida como uma peregrinação à encruzilhada entre a graça e a maldição eternas - exceto que, em sua versão secular, a graça, a redenção e a salvação não tinham utilidade para uma vida no além-túmulo; na versão secular, tanto a peregrinação quanto seu destino final estavam totalmente inseridas e contidas na vida corpórea deste mundo. Mas as duas versões, o equivalente secular e seu original religioso, apresentavam a vida como a peregrinação para um destino designado definitivamente — e ambas presumiam que, uma vez escolhido o destino, seria possível obter e absorver instruções exatas sobre como atingi-lo. O que se deixou ao peregrino e permaneceu sob sua responsabilidade foi apenas o dever de seguir fielmente o caminho, resistindo à tentação de supostos atalhos, de estradas mais pitorescas ou trilhas mais fáceis de percorrer. 

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 A ordem "você deve (ou não deve) fazer isso ou aquilo" estimula o ressentimento e alimenta a revolta. Por outro lado, a sugestão de que "você quer isso, você o merece, você deve isso a si mesmo, você pode consegui-lo, logo, vá atrás" apela a um amour de soi sempre faminto por elogios. Nutre uma auto-estima eternamente insaciada e encoraja a exploração do inexplorado... Em nossa sociedade de consumidores, o impulso de replicar o estilo de vida atualmente recomendado pelas últimas ofertas do mercado e louvado por seus porta-vozes, pagos ou voluntários - e também, por conseqüência, a compulsão de revisar perpetuamente a identidade e a persona pública -, deixou de ser associado à coerção (uma coerção externa, e por isso particularmente ofensiva e irritante). Tende a ser percebido, ao contrário, como manifestações da liberdade pessoal (lisonjeira e gratificante). Só se a pessoa tenta optar por sair e retirar-se da busca de uma identidade evasiva, permanentemente inacabada, ou se ela é rejeitada e eliminada da busca, ou recusada a priori, é que vai aprender como é limitada essa liberdade - como são poderosas as forças que possuem e/ou administram a pista de corrida, vigiam as entradas e estimulam os corredores a correrem; e só então essa pessoa vai descobrir como é severa a punição dada aos infelizes ou insubordinados. Quem sabe disso muito bem são as pessoas que não têm conta bancária nem cartão de crédito e não podem pagar o preço do ingresso. Muitas outras ainda podem sentir o espectro de todos esses horrores a partir das premonições sombrias que as assaltam nas noites que se seguem a dias ocupados em vender e comprar - ou, de modo ainda mais tangível, dos alertas máximos que ocorrem quando a conta bancária entra no vermelho ou o crédito disponível cai para zero.

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Se "ser livre" significa ser capaz de agir de acordo com os próprios desejos e perseguir os objetivos que se escolheu, a versão líquido-moderna, consumista, da arte da vida pode prometer liberdade para todos, mas a distribui de modo esparso e seletivo.

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Num perspicaz estudo das reflexões filosóficas sobre a arte da vida, Alexander Nehamas revela e tenta explicar o misterioso fascínio dos filósofos europeus pela pessoa de Sócrates," ou ao menos pelo retrato pitoresco de seu estilo de vida incomum que nos deixaram Xenofontes e Platão. O próprio Sócrates não registrou nenhum dos pensamentos imortalizados por esses dois autores. Sócrates evitou confessar as razões pelas quais se tornou o que era. Como diz Nehamas, ele era "teimosamente calado sobre si mesmo". Não obstante as diferenças numerosas, agudas e profundas em suas percepções do mundo e sobre a função da filosofia, assim como em suas simpatias e valores políticos, as mentes mais poderosas da era moderna e legiões de seus seguidores estavam de acordo em escolher o Sócrates de Platão como o modelo de uma vida digna e significativa. Além disso, todos o destacavam pela mesma razão: escolheram Sócrates (e particularmente o Sócrates dos primeiros diálogos de Platão) porque esse antigo sábio e precursor do pensamento moderno foi plena e verdadeiramente um "self-made man" um perito em matéria de autocriação e autoafirmação, que no entanto nunca apresentou o caminho que escolheu como o único modelo de um modo de vida válido que todos os outros seres humanos deveriam seguir (foi só nos diálogos finais, a começar pela Apologia, que, numa súbita reviravolta, Platão passou a recomendar para imitação universal não apenas a consistência com que Sócrates se manteve fiel ao caminho escolhido, mas também a escolha em si. Mas, como aponta Nehamas, aliando-se à opinião generalizada entre os estudiosos de Platão, os argumentos por ele invocados para convencer seus leitores de que a dedicação à filosofia ao estilo de Sócrates era a única receita para uma vida decente eram tão inconvincentes quanto fracos ou falhos, e relativamente fáceis de contestar). Para os grandes filósofos modernos que recomendavam Sócrates como um modelo a ser seguido, "imitar Sócrates" significava compor seu próprio eu, personalidade e/ou identidade de modo livre e autônomo - e não copiar a personalidade de Sócrates que ele criou para si próprio, nem qualquer outra, independentemente de quem possa tê-la composto e praticado. O significado de viver sua vida "de maneira socrática" era a autodefinição, a autoafirmação e a presteza em aceitar que a vida não pode ser senão uma obra de arte por cujos méritos e deficiências o ator/autor (misturados numa mesma pessoa; o projetista e simultaneamente executor do projeto) tem plena e total responsabilidade.

"Imitar Sócrates" significava, em outras palavras, recusar firmemente a imitação - a imitação da pessoa "Sócrates" ou de qualquer outra pessoa, ainda que valorosa. O modelo de vida que Sócrates escolheu, dolorosamente composto e laboriosamente cultivado para ele mesmo, pode ter-se ajustado com perfeição ao seu tipo de pessoa, mas não se ajustaria necessariamente aos que faziam questão de viver como ele viveu. Uma imitação servil do modo de vida específico que Sócrates construiu por si mesmo, e ao qual sempre se manteve absoluta e incondicionalmente leal, resultaria numa traição a seu legado, na rejeição de sua mensagem - uma mensagem convocando as pessoas a ouvirem, acima de tudo, a sua própria razão, e portanto clamando por autonomia e responsabilidade individuais. Tal imitação poderia servir para uma copiadora ou um scanner, mas jamais resultaria numa criação artística original, o que (sugeriu Sócrates) a vida humana deveria lutar para se tornar... 

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Como insinua Claude Dubar, "a identidade nada mais é que o resultado - simultaneamente estável e provisório, individual e coletivo, subjetivo e objetivo, biográfico e estruturado - de diversos processos de socialização que ao mesmo tempo constroem os indivíduos e definem as instituições". Podemos observar, contudo, que a própria "socialização", diferentemente de opiniões universalmente sustentadas não faz muito tempo e ainda expressadas com frequência, não é um processo unidirecional, mas um produto complexo e instável da interação contínua entre o anseio pela liberdade individual de autocriação e o desejo, igualmente forte, de segurança que só o selo da aprovação social, autenticado por uma comunidade (ou por comunidades) de referência, pode oferecer. A tensão entre ambas raramente é amenizada por muito tempo e dificilmente desaparece por inteiro. 

De Singly corretamente sugere que, ao teorizar sobre as identidades atuais, seria melhor se as metáforas de "raízes" e "desarraigamento" (ou, permitam-me acrescentar, o tropos correlatos do "encaixe" e "desencaixe") - implicando um ato único de emancipação individual da tutela da comunidade de nascença e o caráter final e irreversível desse ato - fossem abandonadas e substituídas pelos tropos do lançar e içar âncoras.14 Com efeito, diferentemente do caso do "desarraigamento" e do "desencaixe", não há nada irrevogável, muito menos final, em içar uma âncora. Quando extraídas do solo em que cresceram, as raízes tendem a secar, matando a planta que nutriam e tornando sua restauração algo próximo do miraculoso - as âncoras são içadas apenas para serem lançadas novamente, e o podem ser com facilidade semelhante em muitos portos de escala. Além disso, as raízes designam e determinam antecipadamente a forma a ser assumida pelas plantas que crescem a partir delas, e excluem a possibilidade de qualquer outra. Mas as âncoras são apenas utensílios que servem para a anexação ou desanexação, explicitamente temporária, a um lugar, e de maneira alguma definem as características e qualidades do navio. As extensões de tempo que separam o lançamento da âncora de seu içamento são apenas fases da trajetória da embarcação. A escolha do porto em que a âncora será lançada da próxima vez é mais provavelmente determinada pelo tipo de carga que o navio transporta no momento: um porto que é bom para um tipo de carga pode ser totalmente inadequado para outro.

No geral, a metáfora das âncoras captura o que falta à metáfora do "desarraigamento": o entrelaçamento de continuidade e descontinuidade na história de todas as identidades contemporâneas, ou pelo menos de um número crescente delas. Tal como navios atracados, sucessiva ou intermitentemente, em vários portos de escala, também os eus das "comunidades de referência" (às quais eles procuram ser admitidos em sua jornada por toda a vida em busca do reconhecimento e confirmação de sua identidade) têm suas credenciais verificadas e aceitas em cada parada sucessiva - cada "comunidade de referência" estabelece suas próprias exigências quanto ao tipo de provas a serem apresentadas. O registro do navio e/ou o diário do capitão estão, com muita frequência, entre os documentos de que a aprovação depende, e a cada nova parada o passado (constantemente engolido pelos registros de paradas anteriores) é reexaminado e reavaliado. Evidentemente, existem portos, como existem comunidades, que não são tão pedantes na verificação de credenciais nem dão muita importância aos destinos passados, presentes e futuros de seus visitantes. Admitem praticamente qualquer navio (ou "identidade"), incluindo aqueles que provavelmente serão obrigados a retornar da entrada da maioria dos outros portos (ou dos postos de verificação de qualquer outra comunidade). Mas, então, visitar esses portos (e "comunidades") resulta em pouco valor de "identificação" e é melhor ser evitado, já que depositar lá cargas preciosas pode se revelar no futuro um risco e não uma vantagem. Paradoxalmente, a emancipação do eu precisa de comunidades fortes, seletivas e exigentes como seus instrumentos. A autocriação é um imperativo, e de fato uma realização inevitável, mas a idéia de auto-afirmação parece mais uma simples fábula da imaginação (e é amplamente condenada como um caso de autismo ou auto-ilusão). E que diferença faria todo esse esforço investido na autocriação para a posição, confiança e capacidade de ação do indivíduo se a afirmação, seu ato e propósito final, não acontecesse? Mas a afirmação capaz de realizar o trabalho de autocriação só pode ser oferecida por uma autoridade: uma comunidade em que é importante ser admitido porque ela tem o poder de recusar candidatos... Até os itinerários mais originais não podem ser mais do que listas de sucessivos portos de escala. "

"A pertença", como insinua Jean-Claude Kaufmann, é hoje "usada basicamente como recurso do ego". Ele adverte sobre pensar em "coletividades de pertença" como se fossem necessariamente "comunidades integradoras". É melhor concebê-las como acompanhamentos necessários ao processo de individualização; como uma série de estações, podemos dizer, ou pousadas ao longo da estrada, marcando a trajetória do ego em processo de autoformação e autorreforma. A noção de "comunidade integradora" foi herdada da agora antiquada era do "panóptico": refere-se a esforços organizados para traçar com nitidez e fortalecer a fronteira entre "nós" e "eles", os "de dentro" e os "de fora"; esforços para manter dentro os internos e impedir a entrada de estranhos, assim como evitar que os de dentro quebrem as normas e afrouxem os laços da rotina. Refere-se, no geral, à promoção da uniformidade e à imposição de uma camisa-de-força sobre a conduta. A noção sugere restrições impostas ao movimento e à mudança: uma "comunidade integradora" é essencialmente uma força conservadora (que atua para conservar, estabilizar, impor rotinas e preservar). Está à vontade num ambiente administrado, supervisionado e policiado de forma rigorosa - dificilmente no mundo líquido -moderno, com seu culto à velocidade e à aceleração, à novidade e à mudança apenas (ou principalmente) pelo prazer de mudar. 

As entidades supra-individuais a que os indivíduos "integrados" oferecem sua lealdade em algum estágio de seu itinerário de vida, apenas para retirá-la na próxima parada ou depois dela, podem ser tudo, menos as comunidades integradoras do passado: não monitoram o tráfego humano em suas bordas, não registram os que cruzam a fronteira nas duas direções e dificilmente tomam conhecimento de decisões individuais de "aderir" ou "sair" - e não administram escritórios que pudessem se engajar em toda essa ação de monitorar, registrar e gravar. Em vez de integrar os que atualmente "pertencem", essas entidades são criadas e "mantidas inteiras" (embora de uma forma reconhecidamente frouxa, facilmente suspensa e reversível) pelas decisões de indivíduos de "aderir" e "seguir o padrão" — do momento em que essas decisões começam a ser tomadas até que se iniciem as deserções em massa. Existe outra diferença seminal entre as formas e símbolos da "pertença" contemporânea e as "comunidades integradoras" ortodoxas. Citando Kaufmann mais uma vez, "grande parte do processo de identificação se alimenta da rejeição do Outro".16 O acesso a um grupo é simultaneamente um ato de renúncia ou retraimento em relação a outro: escolher um grupo como local de pertença torna alguns outros grupos territórios estranhos e potencialmente hostis: "Eu sou P" significa (ao menos implicitamente, mas muitas vezes de forma explícita) que "eu não sou Q, R, S etc". A "pertença" é um lado da moeda cujo outro lado é a separação e/ou oposição - com muita frequência alimentando o ressentimento, o antagonismo e o conflito aberto entre os grupos. Isso se aplica a todas as instâncias da "pertença", do acesso e das ofertas de fidelidade. Mas no curso da era moderna essa característica universal atravessou importantes modificações com a passagem da construção identitária a um processo de identificação por toda a vida e, para todos os fins práticos, interminável. A modificação mais importante talvez seja o declínio das ambições monopolistas da "entidade de pertença". Como foi assinalado acima, os referentes da "pertença", diferentemente do que ocorria nas "comunidades integradoras" ortodoxas, não têm instrumentos para monitorar a força da dedicação de seus "membros". Também não estão interessados em exigir e promover a plena lealdade e a fidelidade total de seus membros. Em sua versão contemporânea líquido-moderna, a "pertença" a uma entidade pode ser associada e compartilhada com a pertença a outras entidades em quase qualquer tipo de combinação, sem necessariamente resultar em condenação e provocar medidas repressivas de nenhuma delas. Os vínculos tendem a perder grande parte de sua intensidade, já que, como regra, muito de sua veemência e vigor, tal como o espírito militante dos "vinculados", é temperado por outras fidelidades simultâneas. Dificilmente algum tipo de "pertença" dos dias de hoje envolve "o eu total", já que cada pessoa a cada momento de sua vida está envolta, por assim dizer, em "múltiplas pertenças". Ser apenas parcialmente leal, ou, digamos, leal "à la carte", não é mais visto necessariamente como equivalente à deslealdade, muito menos à traição. Daí a atual reapresentação do fenômeno do "hibridismo" (cultural) - combinando traços específicos de espécies diferentes e distintas, e deles derivados: de algo simplesmente desaprovado ou explicitamente condenado como símbolo de déclassement a uma virtude e sinal de distinção. Nas escalas emergentes da superioridade cultural e do prestígio social, os "híbridos" (quer sejam "genuínos" ou autoproclamados) tendem a ocupar as posições mais elevadas, e a manifestação do "hibridismo" se torna uma ferramenta de mobilidade social ascendente amplamente aprovada. Ser autoconfinado ou perpetuamente condenado a um conjunto de valores e padrões comportamentais autocontidos, por outro lado, é cada vez mais visto como signo de inferioridade ou privação sociocultural. As "comunidades integradoras" agora são mais encontradas, talvez até exclusivamente, nos degraus inferiores da pirâmide sociocultural. Para a arte da vida, esse novo ambiente revela paisagens sem precedentes. A liberdade de autocriação jamais alcançou uma amplitude tão surpreendente, ao mesmo tempo excitante e assustadora. Nunca antes a necessidade de pontos de orientação e guias prestativos foi tão intensa ou dolorosamente sentida. Mas nunca antes houve tanta falta de pontos de orientação fidedignos e de guias confiáveis (ao menos em relação ao volume e intensidade da necessidade). Sejamos claros: há uma perturbadora carência de pontos de orientação firmes e fidedignos, assim como de guias confiáveis. Essa carência coincide (de modo paradoxal, mas absolutamente não-acidental) com uma proliferação inédita de sugestões tentadoras e ofertas de orientação atraentes, com uma onda sempre crescente de manuais e hordas cada vez mais amplas de consultores - tornando, contudo, ainda mais confusa a tarefa de atravessar a mata densa de proposições equivocadas ou simplesmente falsas para encontrar uma orientação capaz de realizar sua promessa... Nicolas Sarkozy, o presidente então recém-eleito da França, declarou numa entrevista televisiva em junho de 2007: "Não sou um teórico. Não sou um ideólogo. Oh, não sou um intelectual! Sou alguém concreto!"170 que ele quis dizer com isso? Com toda a certeza, não quis dizer que, diferentemente dos "ideólogos", ele não se apega firmemente a certas crenças, ao mesmo tempo em que rejeita outras resolutamente. Sabese, afinal, que ele é um homem de posições sólidas, que acredita firmemente "em fazer em vez de meditar" e que conclamou os franceses, durante sua campanha presidencial, "a trabalharem mais e ganharem mais". Ele disse muitas vezes aos eleitores que é bom trabalhar com mais vigor e por um número maior de horas para ficar rico (apelo que os franceses parecem ter achado atraente, embora estivessem longe da unanimidade na crença de que fosse consistente do ponto de vista pragmático: segundo uma pesquisa TBS-Sofres, em contraste com 40% que acreditam ser possível ficar rico com o trabalho, 39% dos franceses creem que é possível ficar rico ganhando na loteria). Tais declarações, desde que sinceras, preenchem todas as condições de uma ideologia e desempenham a principal função que se espera delas: dizem o que as pessoas devem fazer e garantem que isso trará resultados benéficos. Também manifestam uma postura agonística, militante, em relação a convicções alternativas - um traço normalmente percebido como marca registrada das ideologias. Uma única característica das "ideologias tal como as conhecemos até agora" talvez falte à filosofia de vida de Nicolas Sarkozy: uma visão da "totalidade social" que, como insinuou Émile Durkheim, "é maior que a soma de suas partes", e que (diferentemente de, digamos, um saco de batatas) não é redutível à soma total das unidades distintas que contém. Uma realidade social não pode ser reduzida a um agregado de indivíduos em busca de objetivos privados e guiados por desejos e normas igualmente privados. As repetidas declarações públicas do presidente francês sugerem, ao contrário, exatamente essa redução. Não parece que as previsões de "fim da ideologia", numerosas e amplamente aceitas até cerca de vinte anos atrás, tenham se concretizado ou estejam perto disso. O que estamos testemunhando é, em vez disso, o curioso desvio que ocorre atualmente com a ideia de "ideologia". Em desafio a uma longa tradição, a ideologia hoje defendida a partir de cima para uso popular é a crença de que pensar sobre uma "totalidade" e compor visões de uma "boa sociedade" são perda de tempo, já que irrelevantes para a felicidade individual e uma vida exitosa. A ideologia desse novo tipo não é uma ideologia privatizada. Essa noção seria um paradoxo, já que um suprimento de segurança e autoconfiança, que é o tour de force das ideologias e condição básica de sua capacidade de sedução, seria inatingível sem o endosso maciço do público. Ela é, em vez disso, uma ideologia da privatização. O apelo a "trabalhar mais e ganhar mais", dirigido a indivíduos e adequado unicamente ao uso individual, está repelindo e substituindo os apelos do passado a "pensar a sociedade" e "cuidar da sociedade" (de uma comunidade, nação, igreja, causa). Sarkozy não é o primeiro a tentar desencadear ou acelerar essa guinada; tal prioridade pertence ao memorável anúncio de Margaret Thatcher de que "não existe essa coisa de sociedade. Existem indivíduos, homens e mulheres, e existem famílias." Essa é uma nova ideologia para a nova sociedade individualizada, sobre a qual Ulrich Beck escreveu que os indivíduos, homens e mulheres, são agora exigidos, puxados e empurrados a procurar e encontrar soluções individuais para problemas socialmente criados, e a implementar essas soluções individualmente usando habilidades e recursos individuais. Essa ideologia proclama a futilidade (de fato, o caráter contraproducente) da solidariedade: de juntar forças e subordinar ações individuais a uma "causa comum". Ela ridiculariza o princípio da responsabilidade comunal pelo bem-estar de seus membros, depreciando-o como uma receita para um enfraquecedor "Estado-babá" e advertindo contra a preocupação com o outro, que levaria a uma repugnante e detestável "dependência". Essa é também uma ideologia feita sob medida para a nova sociedade de consumidores. Representa o mundo como um depósito de potenciais objetos de consumo, a vida individual como uma eterna busca por barganhas, seu propósito como a satisfação máxima do consumidor e o sucesso na vida como um acréscimo ao valor de mercado do próprio indivíduo. Amplamente aceita e firmemente abraçada, ela descarta as filosofias de vida concorrentes com um breve "Não existe alternativa". Tendo degradado e silenciado seus competidores, ela se torna, na memorável expressão de Pierre Bourdieu, verdadeiramente la pensée unique. 

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Não é por acaso que os programas do tipo Big Brother, extraordinariamente populares, são apresentados como "reality shows". Essa denominação sugere que a vida fora das telas, "a coisa real", é semelhante à saga televisiva dos competidores do Big Brother. Lá como cá, nenhum participante do jogo da sobrevivência tem garantia de sobreviver, a permissão para permanecer no jogo é apenas temporária e a lealdade à equipe é somente "até segunda ordem" - ou seja, não vai sobreviver à sua utilidade em promover o interesse individual. Não há dúvida de que alguém será excluído; a única pergunta é quem será esse alguém, e assim o que está em questão não é a abolição das exclusões (tarefa que favoreceria juntar forças e solidariedade na ação), mas afastar de si mesmo a ameaça de exclusão, lançando-a na direção dos outros (tarefa que estimula a preocupação pessoal, tornando ao mesmo tempo irracional, se não suicida, a solidariedade). No programa Big Brother, alguém deve ser excluído a cada semana: não porque, por alguma coincidência curiosa, regularmente, Toda semana, uma pessoa se revele inadequada, mas porque a exclusão foi inserida nas regras da "realidade" tal como a vemos na TV. A exclusão faz parte da natureza das coisas, um aspecto inseparável de nosso estar-no-mundo, uma "lei da natureza", por assim dizer - e portanto não faz sentido rebelar-se contra ela. O único assunto digno de que se pense sobre ele, e intensamente, é como evitar a possibilidade de ser o escolhido na rodada de exclusões da próxima semana. Pelo menos na parte próspera do planeta, o objetivo da acirrada competição individual não é mais a sobrevivência física - ou a satisfação de necessidades biológicas básicas exigida pelo instinto de sobrevivência. Tampouco é o direito de se autoafirmar, estabelecer seus próprios objetivos e decidir que tipo de vida se preferiria viver. Exercer esses direitos é, pelo contrário, considerado um dever de todo indivíduo. Considera-se, mais do que isso, que o que acontece ao indivíduo é consequência ou do exercício desses direitos ou de um fracasso abominável ou recusa pecaminosa em exercê-los. E assim o que ocorrer com o indivíduo será interpretado em retrospecto como outra confirmação de sua responsabilidade exclusiva e inalienável por sua situação individual - a adversidade assim como o sucesso. Uma vez classificados como indivíduos, somos encorajados a buscar ativamente o "reconhecimento social" pelo que havia sido pré-interpretado como nossas escolhas individuais: ou seja, pelas formas de vida que nós, os indivíduos, estamos praticando (seja por ação ou omissão). "Reconhecimento social" significa a aceitação de que o indivíduo que pratica essa forma de vida leva uma existência digna e decente e por isso merece o respeito devido e oferecido a outras pessoas dignas e decentes. A alternativa ao reconhecimento social é a negação da dignidade: a humilhação. Na recente definição de Dennis Smith, "o ato é humilhante se ignora ou contradiz vigorosamente a afirmação de determinados indivíduos ... a respeito de quem são e onde e como se encaixam";18 em outras palavras, nega-se aos indivíduos, explícita ou implicitamente, o reconhecimento que esperavam pela pessoa que são e/ou o tipo de vida que levam; e se lhes recusam as prerrogativas que lhes seriam concedidas ou continuariam a sê-lo após esse reconhecimento. Uma pessoa se sente humilhada quando alguém lhe "mostra brutalmente, por palavras, ações ou eventos, que ela não pode ser quem pensa que é ... A humilhação é a experiência de ser, injustamente e contra a vontade, empurrado para baixo, mantido embaixo ou atrás ou empurrado para fora."19 Essa sensação gera ressentimento. Numa sociedade de indivíduos como a nossa, essa é reconhecidamente a variedade mais venenosa e implacável de ressentimento que uma pessoa pode sentir, a causa mais comum e prolífica de conflito, dissidência, rebelião e sede de vingança. A negação do reconhecimento, a recusa do respeito e a ameaça de exclusão têm substituído a exploração e a discriminação como as fórmulas mais comumente usadas para explicar e justificar os rancores que indivíduos podem sentir em relação à sociedade, ou a partes ou aspectos da sociedade aos quais eles estejam diretamente expostos (pessoalmente ou pela mídia) e que vivenciem em primeira mão. Isso não significa que a humilhação seja um fenômeno totalmente novo, específico do atual estágio da história da sociedade moderna. Pelo contrário, é tão velho quanto a sociabilidade e o convívio humanos. Significa, porém, que na individualizada sociedade de consumidores as definições e explicações mais comuns e "mais reveladoras" da dor e indignação resultantes se afastaram atualmente, ou estão se afastando, das características relacionadas ao grupo ou categoria para caminhar na direção de referentes pessoais. E em vez de ser atribuído à injustiça ou disfunção do todo social, de modo que se pode buscar um remédio na reforma da sociedade, o sofrimento individual tende a ser cada vez mais percebido como resultado de uma ofensa pessoal e de um ataque à dignidade e à auto-estima pessoais, exigindo uma resposta ou vingança pessoais. Quando os indivíduos são conclamados a inventar e empregar soluções individuais para desconfortos produzidos socialmente, tendem a reagir da mesma forma. Aquilo a que reagem é uma rodada de eventos que devastam as expectativas sugeridas por uma ideologia focalizada na pessoa. Essa rodada de eventos é percebida e "entendida" pela mesma ideologia da privatização como uma afronta pessoal, uma humilhação pessoalmente endereçada (ainda que alvejada aleatoriamente); suas primeiras baixas são o respeito próprio e os sentimentos de autoconfiança e segurança. Os indivíduos afetados se sentem degradados e, já que a ideologia da privatização pressupõe a presença de um culpado por trás de cada caso de sofrimento ou desconforto, o sentimento de ser degradado se reflete na busca frenética pelas pessoas culpadas de perpetrar a degradação. O conflito e a inimizade, tal como o mal de que eles são acusados, são considerados pessoais. Os culpados devem ser localizados, expostos, publicamente condenados e punidos. Os "eles" designados pela ideologia da privatização são tão individualizados quanto o são aqueles que a ideologia chama de "nós". Como já foi sugerido, a ideologia em discussão está revestindo a questão da identidade. Quem sou eu? Qual é meu lugar entre os outros — entre aqueles que conheço, aqueles de que tenho informação e aqueles de que até agora nunca ouvi falar? Quais são as ameaças que tornam inseguro este meu lugar? Quem está por trás dessas ameaças? Que tipos de medidas defensivas deveria eu tomar a fim de desabilitar essas pessoas e assim me colocar a salvo de tais ameaças? É assim que as perguntas que as ideologias supostamente deviam (e devem) responder de maneira resoluta e impositiva estão sendo reformuladas para uso dos membros da sociedade individualizada. Essa nova ideologia é tão conservadora quanto Mannheim acreditava que fossem as ideologias (em contraste com as utopias). Ela eleva as experiências cotidianas do mundo que atualmente habitamos à condição de leis incontestáveis do universo, e o ponto de vista de indivíduos-por-decreto ao nível de única perspectiva a partir da qual se pode determinar o estado do mundo. Aqueles de nós que, graças a seus recursos e habilidades, sentem-se nesse inundo como peixes dentro d'água podem não perceber o verdadeiro abismo que separa as expectativas que a ideologia da privatização busca gerar em todos os indivíduos-por-decreto das probabilidades realistas para grande número de homens e mulheres que carecem dos recursos e habilidades sem os quais a elevação dos indivíduos de direito à condição de indivíduos de fato é inimaginável. Mas os indivíduos fracassados - destinados a sofrer a humilhação da inadequação e a cair abaixo dos padrões que outros, evidentemente, não têm dificuldade alguma em atingir, e ainda a humilhação de serem acusados e difamados por sua preguiça e indolência, se não por sua inferioridade de nascença -, estes não deixarão de perceber essa fenda ao caírem nela e constatarem sua profundidade abissal, como acontecerá mais cedo ou mais tarde. Essa ideologia, como todas as outras conhecidas, divide a humanidade. Mas também divide seus próprios fiéis, habilitando alguns e desabilitando o resto. Ao fazê-lo, exacerba o caráter voltado para o conflito da sociedade individualizada/privatizada. Ao esvaziar as energias e desabilitar as forças que poderiam minar seus alicerces, essa ideologia também conserva essa sociedade e turva as perspectivas de revisá-la. 

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• 3 • 

A escolha • 


Os filósofos da ética fizeram o possível para estabelecer uma ponte entre as duas margens do rio da vida: o autointeresse e a preocupação com outros. Como é de seu costume, os filósofos lutaram para reunir e articular argumentos convincentes que pudessem resolver, ou pelo menos assim se esperava, a aparente contradição e solucionar a controvérsia - de uma vez por todas. Os filósofos tentaram demonstrar que a obediência aos mandamentos morais é do próprio interesse de quem obedece; que os custos de ser moral serão recompensados com lucros; que outros lhes pagarão a gentileza com a mesma moeda; que cuidar de outras pessoas e ser bom para elas é, em suma, uma parte valiosa, talvez até indispensável, dos cuidados da pessoa consigo mesma. Alguns argumentos eram mais engenhosos que outros, alguns sustentados com maior autoridade, e portanto mais persuasivos, mas todos giravam em torno do pressuposto aparentemente empírico, embora não testado empiricamente, de que "se você for bom com os outros, os outros serão bons com você". Apesar, porém, de todos os esforços, a evidência empírica era difícil de obter - ou, de qualquer maneira, permanecia ambígua. O pressuposto não se enquadrava muito bem com as experiências pessoais de um número muito grande de pessoas, que com muita freqüência descobriam que eram as pessoas egoístas, insensíveis e cínicas que colecionavam todos os prêmios, enquanto as pessoas gentis, cheias de compaixão e de coração grande, prontas a sacrificar sua própria paz e conforto pelo bem dos outros, se viam muitas vezes tapeadas, desdenhadas e lastimadas, ou mesmo ridicularizadas pela credulidade e pela confiança imerecida (já que não mútua). Nunca foi muito difícil coletar amplas provas da suspeita de que muitos ganhos tendem a ir para quem cuida de si mesmo, enquanto os que se preocupam com o bem-estar de outros acabam, com muita freqüência, calculando suas perdas. Particularmente na atualidade, coletar essas evidências parece ficar mais fácil a cada dia. Como dizia Lawrence Grossberg, "é cada vez mais difícil encontrar lugares onde seja possível preocupar-se suficientemente com alguma coisa, ter bastante fé na importância disso, de modo a que se possa realmente comprometer-se e investir por inteiro nisso".2 Grossberg cunhou o termo "niilismo irônico" para designar a atitude das pessoas que, se pressionadas, poderiam ter relatado o raciocínio subjacente a seus motivos da seguinte maneira:  

Sei que estou enganando alguém e sei que é errado enganar, mas é assim que as coisas são, é essa a realidade. Sabe-se que a vida, e cada escolha, é uma fraude, mas esse conhecimento se tornou tão universalmente aceito que já não há alternativas. Todo mundo sabe que todo mundo engana, portanto todos enganam, e se eu não o fizesse, na verdade sofreria por ser honesto.  

Mas outras reservas, ainda mais importantes, foram apresentadas contra o pressuposto dos filósofos. Por exemplo: se você decide ser gentil com os outros porque espera uma recompensa pela gentileza, se a recompensa esperada é o motivo de suas boas ações, se "ser gentil e bom com os outros" é resultado do cálculo de seus ganhos e perdas prováveis, sua forma de agir é realmente uma manifestação de sua postura moral ou apenas mais um caso de comportamento egoísta mercenário? E uma dúvida ainda mais profunda, verdadeiramente radical: será que a bondade pode ser tema de argumentação, discussão, persuasão, convencimento, decidindo-se que "isso é razoável"? Será que a bondade para com os outros é um produto de decisão racional, podendo, portanto, ser deflagrada por um apelo à razão? A bondade pode ser ensinada?. Argumentos em favor de respostas positivas e negativas a essas perguntas têm sido apresentados, mas até agora nenhum deles é dono de uma autoridade incontestável. O júri ainda está deliberando...

Em seu importante estudo intitulado When Light Pierced the Darkness [Quando a luz rasgou a escuridão], Nechama Tec relatou os resultados de sua pesquisa destinada a localizar os fatores que levaram, ou pelo menos inclinaram, algumas testemunhas da destruição dos judeus poloneses a salvarem as vidas das vítimas arriscando as suas.3 Na Polônia, diferentemente da maior parte dos países europeus ocupados pelos nazistas, a morte era a punição prevista pelo crime de ajudar judeus a se esconderem - ou até por deixar de delatar à polícia quaisquer vizinhos culpados de tal crime. Muitas pessoas desafiaram os nazistas e seus ajudantes voluntários e preferiram arriscar suas vidas a observar passivamente as inenarráveis atrocidades praticadas contra homens, mulheres e crianças acusados de pertencer à "raça errada". Como seria de esperar de uma socióloga impecavelmente preparada e amadurecida, Tec calculou as correlações entre a disposição para ajudar e a presteza para o autosacrifício, assim como todos os fatores comumente considerados determinantes do comportamento humano - os quais, acredita-se, moldam as atitudes e valores individuais, a filosofia de vida e a probabilidade de se preferir um tipo de comportamento e não outro: fatores como classe, riqueza, educação, crenças religiosas e preferências políticas. Para a surpresa dela e de seus colegas sociólogos, não encontrou correlação alguma. Aparentemente não havia nenhum fator "estatisticamente significativo" que determinasse o comportamento moral. Tanto quanto podia opinar a sabedoria acumulada da sociologia, os ajudantes voluntários não eram diferentes do resto da população polonesa, ainda que o valor moral de sua conduta e a importância humana de suas consequências fossem radicalmente diferentes das reações da maioria. Em face das decisões humanas entre o bem e o mal, descobriu-se que a sabedoria sociológica nada tem a dizer... 

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(...)por que os ajudantes voluntários arriscaram unir-se às fileiras das vítimas em vez de trancar as portas e fechar as persianas para evitar a visão do sofrimento? A única resposta a passar no teste das evidências da história do Holocausto é que eles, diferentemente de muitas das pessoas da mesma categoria social, grau de instrução, fé religiosa e lealdade política, ou da maioria delas, não podiam agir de outra forma. Não conseguiriam seguir vivendo se deixassem de defender as vidas dos outros. Proteger sua própria segurança e conforto não compensaria o sofrimento espiritual causado pela visão de pessoas sofrendo. Provavelmente, nunca seriam capazes de se perdoar caso colocassem seu próprio bem-estar acima do bem-estar daqueles que poderiam ter salvado. Obter o perdão de outros provavelmente seria mais fácil que aplacar suas consciências. Na lei draconiana de outubro de 1942 que introduziu a pena de morte para os que "ajudas sem judeus", as pessoas consternadas pela visão da desumanidade podem ter encontrado, como tantas outras, uma desculpa (convincente!) para desistirem da ação: "Sinceramente gostaria de ter podido fazer alguma coisa para ajudar, mas não pude - teria sido morto ou enviado para um campo de concentração." Dizendo isso, apelariam ao bom senso da maioria de seus ouvintes - mas também afastariam, em vez de resolver, o dilema moral tentando tapar os ouvidos à voz de suas consciências. Para dizerem isso, teriam de já ter decidido que suas vidas mereciam mais cuidados que as vidas daqueles outros de cuja sobrevivência se recusaram a cuidar, ao mesmo tempo acreditando que seriam tranquilizados e reforçados na convicção de sua integridade pela aprovação explícita, ou pelo menos tácita, de sua escolha pelas miríades de indivíduos similarmente preocupados consigo mesmos. A voz da consciência, contudo, embora pudessem recusar-se a ouvi-la, não seria silenciada.

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a pessoa que me contou esse drama familiar e repetiu "o que podíamos fazer, não havia nada que pudéssemos fazer" não me olhou nos olhos. Sentiu que eu percebi a mentira, embora os fatos fossem verdadeiros.  

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 a moralidade tem sua própria lógica, e no tribunal da consciência os heróis das histórias têm poucas chances. Por que as pessoas reagem de modo tão diferente a situações aparentemente idênticas? Isso era e continua sendo um mistério que velhos e novos teólogos, filósofos e numerosos profissionais das ciências humanas e naturais, assim como teóricos e praticantes da educação, tentaram e continuam tentando desvendar - em vão. Apesar de resultados decepcionantes (ou talvez por causa deles), não parece que as tentativas venham a ser abandonadas. Os motivos para prosseguir com elas podem variar, mas todos são esmagadores e irresistíveis. Os teólogos precisam compreender o que é reconhecidamente incompreensível: a sabedoria da criação de Deus e da administração divina dos assuntos humanos, que (se entendida...) iria revelar e reafirmar o presumido elo, difícil de provar, entre, de um lado, a graça divina, a obediência aos mandamentos, a piedade e a virtude e, de outro, a vida feliz, e aquele outro elo entre uma vida de pecado e uma vida de miséria (neste ou no outro mundo). Os filósofos não podem nem vão aceitar fenômenos que fogem à explicação e desafiam a argumentação; não vão descansar até que se encontre uma lógica que os ridicularize como produtos da imaginação, ou que pelo menos explique sua presença obstinada. Os cientistas, em pleno acordo com os tecnólogos, seu braço executivo e cada vez mais uma fonte básica de estímulo, querem conhecer as leis que determinam o formato e a conduta de coisas animadas assim como inanimadas, na esperança de que conhecê-las signifique controlar esse formato e essa conduta, e que conhecê-las plenamente acabe significando controlá-las de forma completa. E os educadores, obviamente, sonham com alunos que sejam como um cravo bem-temperado, de modo que pressionar qualquer tecla produzirá regularmente os sons ditados pela partitura, nunca havendo uma nota dissonante. 

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Nossa escolha tem alguma importância? Em suma: na moldagem de nossas vidas, somos os tacos, seus portadores ou as bolas de bilhar? Somos jogadores ou somos jogados? 

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Emanuel Levinas, outro grande filósofo da ética do século passado, é conhecido por insistir em que a pergunta "Por que devo ser moral?" (ou seja, pedindo argumentos do tipo "Existe alguma coisa nisso para mim?", "O que ela ou ele faz para justificar minha preocupação?", "Por que eu deveria me preocupar se tantos outros não o fazem?" ou "Por que não seria outra pessoa a fazer isso em vez de mim?") não é o ponto de partida da conduta moral, mas um sinal de seu iminente colapso e morte. Toda amoralidade, na visão de Levinas, começou com a pergunta de Caim "Serei eu o zelador de meu irmão?", exigindo uma prova de que cuidar do irmão fosse realmente seu dever, e presumindo que esse cuidado só se tornasse um dever por interferência de um poder superior, presumivelmente dotado de sanções para punir o desobediente. 

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 Escolhas certas e erradas podem resultar da mesma condição de incerteza, indeterminação, indefinição e falta de coerção - tal como o impulso de correr covardemente para o abrigo obrigatoriamente fornecido pelas ordens oficiais de um poder capaz de conceder a absolvição e armado com sanções, e tal como a audácia de aceitar a responsabilidade pessoal por uma decisão de agir tomada apesar da tentação de transferi-la para outras agências, particularmente aquelas dotadas de poderes superiores. Sem se preparar para a possibilidade de escolhas erradas, não é provável que se persevere na busca pela escolha certa. Longe de ser uma grande ameaça à moral (é vista como uma abominação perturbadora por muitos filósofos da ética!), a incerteza é o ambiente familiar da pessoa moral e o único solo em que a moralidade pode brotar e florescer. 

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Seguindo fielmente, em seu livro amplamente lido e muito influente, publicado há algumas décadas, o complicado itinerário da "disposição pública", Colette Dowling declarou que o desejo de estar seguro, aquecido e bem-cuidado era um "sentimento perigoso".11 Ela advertiu as Cinderelas da era vindoura a tomarem cuidado para não caírem na armadilha: entre o impulso de cuidar dos outros e o desejo de ser cuidado por outros ronda o perigo assustador da dependência, de perder a capacidade de escolher a onda mais confortável a ser surfada no momento e de passar rapidamente de uma onda para outra quando a corrente mudar de direção

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O espírito comercial da vida íntima é constituído por imagens que preparam o caminho para um paradigma da desconfiança ... oferecendo como ideal um eu bem-defendido contra o sofrimento ... Os atos heróicos que um eu pode realizar ... são desligar-se, ir embora, depender e precisar menos de outras pessoas ... Em muitos livros modernos na moda o autor nos prepara para pessoas lá fora que não precisam de nosso carinho e para pessoas que não querem ou não podem nos dar carinho.12 As possibilidades de povoar o mundo com pessoas mais dedicadas e/ou induzi-las a se dedicarem mais não figuram nas paisagens pintadas na utopia consumista. As utopias privatizadas dos caubóis e cowgirls da era consumista ostentam em vez disso um "espaço livre" (para mim, é claro) amplamente expandido; um espaço vasto, mas também "cercado", vedado a visitantes indesejados e sem convite. Um tipo de espaço de que o consumidor líquido-moderno, inclinado a performances solo e apenas a elas, sempre precisa mais, nunca tem o bastante. O espaço de que os consumidores líquido-modernos necessitam e pelo qual foram aconselhados, estimulados e encorajados a lutar só pode ser obtido e desfrutado expulsando-se ou rebaixando-se outros seres humanos, mas particularmente aqueles que se preocupam e/ou podem precisar de cuidados. O mercado de consumo é que agora tomou da burocracia só-lido-moderna a tarefa da adiaforização: de espantar a repelente mosca do "ser para" da apetitosa sopa do "ser com". Tal como Emmanuel Levinas vislumbrou ao refletir que a "sociedade", em vez de ser, como sugeriu Hobbes, um mecanismo para tornar o convívio humano pacífico e amistoso acessível a egoístas natos cortando ou reprimindo suas inclinações egoístas, poderia ser um estratagema para tornar as preocupações "centrípetas" e uma vida autocentrada, autorreferencial e egoísta alcançáveis a seres éticos natos, reduzindo as infinitas responsabilidades pelos outros inevitavelmente disparadas pela face do Outro; com efeito, pelo fato inevitável da unidade humana. É extremamente importante saber se a sociedade no sentido atual do termo é o resultado de uma limitação do princípio de que os homens são predadores uns dos outros ou se, pelo contrário, ela resulta da limitação do princípio de que os homens existem para os outros. Será que o social, com suas instituições, leis e formas universais, resulta da limitação das consequências da guerra entre os homens ou da limitação da infinidade que se abre na relação ética de homem para homem?

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A alma americana (e não só americana) está dividida. Treinados, estimulados e aconselhados a procurar sempre novos prazeres, enquanto são expostos diariamente a novas promessas e tentações, os americanos (e não só eles) anseiam por êxtases gustativos ainda não experimentados, assim como por serem observados e admirados (não esqueçam o desejo de reforçar o ego!) no papel de gourmets e connoisseurs refinados e sofisticados pelos amigos, a polícia do estilo, os vigilantes da moda e outras pessoas relevantes. Treinados, estimulados e aconselhados a manterem seus corpos, esses receptáculos de prazeres passados, presentes e, ao que se espera, futuros, preparados para absorver novas delícias, mas advertidos diariamente contra gorduras, tóxicos e outros "inimigos internos" que ameaçam impedi-los disso caso se permita seu ingresso, os americanos (e não só eles) só podem olhar com suspeita as porções de comida que colocam nas bocas, contar as calorias de que deveriam se livrar se as porções fossem ingeridas e estudar os estranhos termos químicos que aparecem nas embalagens de alimentos na esperança de atingir o equilíbrio perfeito entre os benefícios esperados e os possíveis prejuízos. Um dilema inescapável, se algum dia houve algum; cenário clássico para uma personalidade dividida e tendente ao conflito, para, segundo o termo médico da moda (ainda que duramente contestado), a esquizofrenia. Cada passo dado ou contemplado exige um antídoto que elimine seus mórbidos efeitos colaterais. Viagra a noite, pílula anticoncepcional na manhã seguinte... 

Isso torna a anorexia e seu alterego, a bulimia, as filhas gêmeas da vida líquido-moderna do consumidor. As duas gêmeas (flagrantemente dessemelhantes) estão bem sintonizadas com uma vida condenada a infindáveis escolhas, forçando o artista da vida a navegar entre valores incompatíveis e impulsos contraditórios. Quando quer que persista a contradição, os esforços empreendidos para resolvê-la (e o conhecimento usado nesses esforços) tendem a ser considerados inadequados, e o ator, acusado de inépcia ou negligência. 


 A arte da vida / Zygmunt Bauman; tradução, Carlos Alberto Medeiros. - Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009.