terça-feira, 15 de agosto de 2017

Resistência

Con la rosa tra le labbra (1895) Ettore Tito 


Ninguém me castra a poesia
se debruça e me põe vendas
censura aquilo que escrevo
nem me assombra os poemas

Ninguém me apaga os versos
nem amordaça as palavras
na invenção de voar
por entre o sonho e as letras

Ninguém me cala na sombra
deitando fogo aos meus livros
me ameaça no medo
ou me destrói e algema

Ninguém me aquieta a escrita
na criação de si mesma
nem assassina a musa 
que dentro de mim se inventa


Maria Teresa Horta
in «Poesis», D, Quixote, 2017

domingo, 13 de agosto de 2017


Benito Cerna 

Evitemos as paixões tristes e vivamos com alegria para ter o máximo de nossa potência; fugir da resignação, da má-consciência, da culpa e de todos os afetos tristes que padres, juízes e psicanalistas exploram

Baruch Spinosa

Vicente Romero


Cada um lê com os olhos que tem. E interpreta a partir de onde os pés pisam. Todo ponto de vista é a vista de um ponto. Para entender como alguém lê, é necessário saber como são seus olhos e qual é sua visão de mundo. Isso faz da leitura sempre uma releitura. A cabeça pensa a partir de onde os pés pisam. Para compreender, é essencial conhecer o lugar social de quem olha. Vale dizer: como alguém vive, com quem convive, que experiências tem, em que trabalha, que desejos alimenta, como assume os dramas da vida e da morte e que esperanças o animam. Isso faz da compreensão sempre uma interpretação. Sendo assim, fica evidente que cada leitor é co-autor. Porque cada um lê e relê com os olhos que tem. Porque compreende e interpreta a partir do mundo em que habita.


Leonardo Boff
Jorge Botero Lujan 


Fui una letra de tango

para tu indiferente melodía.



Julio Cortázar
Question to the stars - Karl Wilhelm Diefenbach

Tudo passa – sofrimento, dor, sangue, fome, peste. A espada também passará, mas as estrelas ainda permanecerão quando as sombras de nossa presença e de nossos feitos se tiverem desvanecido da Terra. Não há homem que não saiba disso. Por que então não voltamos nossos olhos para as estrelas? Por quê?


Mikhail Bulgakov, The White Guard.



Gosto das palavras frágeis como gosto de ti
e a verdade é que também é frágil a minha forma de gostar-te.
Tudo o que me chega de ti, palavras, beijos, luzes, injustiças,
traz essa fragilidade das dunas que lembram o teu corpo
e esse código antigo decerto herdado da primavera,
antes mesmo de haver um tempo de celebração das flores.
Por vezes gostava de ser tu. Ser frágil e usar anéis
com as pedras raras da esperança, as insondáveis pedras
dos dias que hão-de vir. Mas vivo o exílio destes dias repetidos
sobre a efemeridade da pele, vogando como cisnes moribundos
em busca de uma última revelação, talvez a melodia tão pura
que possa transformar em pão não só as nossas rosas
mas também a própria liberdade. E é por isso que amo
as palavras frágeis, essas palavras nuas que me ofereces
e que são, assim, de tão frágeis, a minha imensa força
e o meu fatal deslumbramento.


Joaquim Pessoa 

Pause - Lena Sotskova

A música exprime a mais alta filosofia numa linguagem que a razão não compreende.


Arthur Schopenhauer


Anna Rose Bain 


"Quando Espinoza diz: o surpreendente é o corpo... ainda não sabemos o que pode um corpo... ele não quer fazer do corpo um modelo, e da alma, uma simples dependência do corpo. Sua empreitada é mais sutil. Ele quer abater a pseudo-superioridade da alma sobre o corpo. Há a alma e o corpo, e ambos exprimem uma única e mesma coisa: um atributo do corpo é também um expresso da alma (por exemplo, a velocidade). Do mesmo modo que você não sabe o que pode um corpo, há muitas coisas no corpo que você não conhece, que vão além de seu conhecimento, há na alma muitas coisas que vão além de sua consciência. A questão é a seguinte: o que pode um corpo? De que afetos você é capaz? Experimente, mas é preciso muita prudência para experimentar. Vivemos em um mundo desagradável, onde não apenas as pessoas, mas os poderes estabelecidos têm interesse em nos comunicar afetos tristes. A tristeza, os afetos tristes são todos aqueles que diminuem nossa potência de agir. Os poderes estabelecidos têm necessidade de nossas tristezas para fazer de nós escravos. O tirano, o padre, os tomadores de almas, têm necessidade de nos persuadir que a vida é dura e pesada. Os poderes têm menos necessidade de nos reprimir do que de nos angustiar, ou, como diz Virilio, de administrar e organizar nossos pequenos terrores íntimos. A longa lamentação universal sobre a vida: a falta-de-ser que é a vida...
Por mais que se diga "dancemos", não se fica alegre. Por mais que se diga "que infelicidade a morte", teria sido preciso viver para ter alguma coisa a perder. Os doentes, tanto da alma quanto do corpo, não nos largarão, vampiros, enquanto não nos tiverem comunicado sua neurose e sua angústia, sua castração bem-amada, o ressentimento contra a vida, o imundo contágio. Tudo é caso de sangue. Não é fácil ser um homem livre: fugir da peste, organizar encontros, aumentar a potência de agir, afetar-se de alegria, multiplicar os afetos que exprimem ou envolvem um máximo de afirmação. Fazer do corpo uma potência que não se reduz ao organismo, fazer do pensamento uma potência que não se reduz à consciência. O célebre primeiro princípio de Espinoza (uma única substância para todos os atributos) depende desse agenciamento, e não o inverso. Há um agenciamento-Espinoza: alma e corpo, relações, encontros, poder de ser afetado, afetos que preenchem esse poder, tristeza e alegria que qualificam esses afetos. A filosofia torna-se aqui a arte de um funcionamento, de um agenciamento. Espinoza, o homem dos encontros e do devir, o filósofo do carrapato, Espinoza, o imperceptível, sempre no meio, sempre em fuga, mesmo se não se move muito, fuga em relação à comunidade judia, fuga em relação aos Poderes, fuga em relação aos doentes e aos venenosos. Ele próprio pode ser doente, e morrer; ele sabe que a morte não é o objetivo nem o fim, mas que se trata, ao contrário, de passar sua vida a outra pessoa."


Gilles Deleuze, "Diálogos"
Karin Broos

Um dia o mundo inteiro vai ser memória
Tudo será memória
As pessoas que vemos transitar naquela rua,
as gentis ou as sábias, ou as más, todas,

todas.

E o mendigo que passa sem o cão,
o ginasta, a mãe, o lobo, o ético, a turista.
Deus, inclusive, regendo o fim das coisas
memoráveis, também será memória. Deus
e os pardais
E os grandes esqueletos de Museu Britânico.
Todo sofrimento será memória. Eu, sentando aqui,
serei só estes versos que dizem haver um eu

sentado aqui


Antonio Brasileiro


A felicidade é como a liberdade: a minha liberdade não acaba quando começa a do outro; acaba quando acaba a do outro. Se algum ser humano não for livre, ninguém é livre. Se alguém não for livre do descaso, do abandono, ninguém é livre. Assim também se alguém não for livre da discriminação, ninguém é. Portanto, tanto a noção de felicidade quanto a de liberdade são universais. É aí que elas se aproximam da ética no campo da própria universalidade.

Mário Sérgio Cortella, no livro "Nos labirintos da moral"

[32] Sinfonia de uma noite inquieta

Serge Marshennikov


Dormia tudo como se o universo fosse um erro; e o vento, flutuando incerto, era uma bandeira sem forma desfraldada sobre um quartel sem ser.

Esfarrapava-se coisa nenhuma no ar alto e forte, e os caixilhos das janelas sacudiam os vidros para que a extremidade se ouvisse. No fundo de tudo, calada, a noite era o túmulo de Deus (a alma sofria com pena de Deus).
E, de repente — nova ordem das coisas universais agia sobre a cidade —, o vento assobiava no intervalo do vento, e havia uma noção dormida de muitas agitações na altura. Depois a noite fechava-se como um alçapão, e um grande sossego fazia vontade de ter estado a dormir.


Bernardo Soares (heterônimo de Fernando Pessoa)
Livro do desassossego

A educação do ser poético

Daniel Gerhartz 

Será a poesia um estado de infância relacionada com a necessidade de jogo, a ausência de conhecimento livresco, a despreocupação com os mandamentos práticos de viver – estado de pureza da mente, em suma?

Acho que é um pouco de tudo isso, se ela encontra expressão cândida na meninice, pode expandir-se pelo tempo afora, conciliada com a experiência, o senso crítico, a consciência estética dos que compõem ou absorvem poesia.

Mas, se o adulto, na maioria dos casos, perde essa comunhão com a poesia, não estará na escola, mais do que em qualquer outra instituição social, o elemento corrosivo do instinto poético da infância, que vai fenecendo, à proporção que o estudo Sistemático se desenvolve, ate desaparecer no homem feito e preparado supostamente para a vida? Receio que sim.

A escola enche o menino de matemática, de geografia, de linguagem, sem, via de regra, fazê-lo através da poesia da matemática, da geografia, da linguagem.

A escola não repara em seu ser poético, não o atende em sua capacidade de viver poeticamente o conhecimento e o mundo.
Sei que se consome poesia nas salas de aula, que se decoram versos e se estimulam pequenas declamadoras, mas será isso cultivar o núcleo poético da pessoa humana?

Oh, afastem, por favor, a suspeita de que estou acalentando a intenção criminosa de formar milhões de poetinhas nos bancos da escola maternal e do curso primário.

Não pretendo nada disto, e acho mesmo que o uso da escrita poética na idade adulta costuma degenerar em abuso que nada tem a ver com a poesia.

Fazem-se demasiados versos vazios daquela centelha que distingue uma linha de poesia, de uma linha de prosa, ambas preenchidas com palavras da mesma língua, da mesma época, do mesmo grupo cultural, mas tão diferentes.

Se há inflação de poetas significantes, faltam amadores de poesia – e amar a poesia é forma de praticá-la, recriando-a.

O que eu pediria à escola, se não me faltassem luzes pedagógicas, era considerar a poesia como primeira visão direta das coisas e, depois, como veículo de informação prática e teórica, preservando em cada aluno o fundo mágico, lúdico, intuitivo e criativo, que se identifica basicamente com a sensibilidade poética.

Não seria talvez despropositado cuidar de uma extensão poética das escolinhas de arte, esta ideia maravilhosa que Augusto Rodrigues tirou de sua formação humana de artista para a realidade brasileira. Longe de ser uma fábrica alarmante de versejadores infantis, essa extensão, curso ou atividade autônoma, ou que nome lhe coubesse, daria à criança condições de expressar sua maneira de ver e curtir a relação poética entre o ser e as coisas. Projeto de educação para a poesia (fala-se hoje em educação artística no ensino médio, quando o mais razoável seria dizer educação pela arte).

A vocação poética teria aí uma largada franca, as experiências criativas gozariam de clima favorável sem que tal importasse na obrigação de alcançar resultados concretos mensuráveis em nível escolar.

Sei de casos em que um engenheiro, por exemplo, aos 30, 40 anos, descobre a existência da poesia…

Não poderia tê-la descoberto mais cedo, encontrando-a em si mesmo, quando ela se manifestava em brinquedos, improvisações aparentemente absurdas, rabiscos, achados verbais, exclamações, gestos gratuitos?

Alguma coisa que se bolasse nesse sentido, no campo da Educação, valeria como corretivo prévio da aridez com que se costuma transcrever os destinos profissionais, murados na especialização, na ignorância do prazer estético, na tristeza de encarar a vida como dever pontilhado de tédio.

E a arte, como a educação e tudo o mais, que fim mais alto pode ter em mira senão este, de contribuir para a educação do ser humano à vida, o que, numa palavra, se chama felicidade?


Carlos Drummond de Andrade (Transcrito do Jornal do Brasil, Rio de Janeiro – RJ, 20.07.74)

Epitáfio de navegadora




Se te perguntarem quem era
essa que às areias e gelos
quis ensinar a primavera;

e que perdeu seus olhos pelos
mares sem deuses desta vida,
sabendo que, de assim perdê-los,

ficaria também perdida;
e que em algas e espumas presa
deixou sua alma agradecida;

essa que sofreu de beleza
e nunca desejou mais nada;
que nunca teve uma surpresa

em sua face iluminada,
dize: "Eu não pude conhecê-la,
sua história está mal contada,

mas seu nome, de barca e estrela,
foi: "SERENA DESESPERADA".


Cecília Meireles
in Vaga Música